Roberto Carlos Querido

Para mim, este foi o natal mais movimentado dos últimos anos. Começou já na terça-feira, dia 23 de dezembro, com os preparativos para a ceia. Enquanto eu me encarregava das sobremesas, meu filho mais novo assava o peru, que ele mesmo escolheu, comprou, temperou e recheou com farofa de miúdos. É formidável notar como esses programas de “chefs” dos canais de TV a cabo estimulam os homens a ir para a cozinha. Pois meu filho acima de tudo surpreendeu com o resultado; o peru de natal foi o maior sucesso da nossa ceia do dia 24. Mesmo competindo lado a lado com outros pratos típicos desta época do ano que, seja pelas receitas especiais ou pelo capricho com que são preparados, costumam arrancar suspiros dos comensais. E como boa ceia de natal é sempre muito farta, no dia seguinte ainda teve o enterro dos ossos, que durou a tarde toda, entrou pela noite e só acabou quando saiu o último convidado, quase às dez e meia da noite. Aí, eu só tive tempo de tomar um banho e correr para ver o especial de fim de ano do Rei.


Cheguei a tempo de assistir ao melhor do programa: Roberto Carlos e Caetano Veloso esbanjando no palco seu charme irresistível de homens maduros, seguros, bonitos e muito bem tratados. Juntos interpretaram as belíssimas "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", que Roberto Carlos fez em homenagem a Caetano e entregou ao baiano quando foi visitá-lo no exílio, em Londres; e "Força Estranha", que Caetano compôs e deu para o Rei gravar. E ainda teve um tostãozinho de "Teresa da Praia", de Tom Jobim, com o duo afetando uma deliciosa malícia, meio cafajeste e tão carioca. Quanto talento, meu Deus! Como eles cantam bem, e compõem melhor ainda, ou seria o contrário? Tanto faz. Importa mesmo que os dois iluminaram a cena com sua cumplicidade brejeira. E demonstraram um carinho recíproco tão espontâneo e contagiante que, mesmo do lado de cá da tela, me fez sentir afagada...


E assim, quase em transe, lembrei-me de um episódio ocorrido há muitos anos, nesta mesma época, num balcão da antiga Mesbla, no Passeio. As filas dos caixas estavam quilométricas, depois de pagar, o cliente ainda deveria ir a outro balcão pegar as compras e a outro mais se as quisesse embrulhadas para presente. Pois justo na minha vez de ser atendida, chegando ao último estágio do sacrifício consumista natalino, começou a tocar no alto-falante da loja o novo LP do Roberto. A balconista então não teve dúvidas; largou minhas compras sobre as folhas de papel estampadas de Papai Noel, soltou os braços, levantou o rosto, fechou os olhos e, depois de um longo e profundo suspiro, declarou em alto e bom som: “Ah..., Roberto Carlos querido, como eu te amo”.


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Noite Feliz

Eu ontem fui ao cinema assistir a um filme que me tocou imensamente, “O menino do pijama listrado”. Tanto que me fez mudar de idéia quanto ao artigo que iria escrever para marcar a data de hoje, dia do Natal. Trata-se de uma fábula, sobre um dos mais horrendos acontecimentos da história da humanidade, contada com tal delicadeza que leva o espectador a enfrentar, desamparado, a brutalidade das situações apresentadas. O cenário é a Alemanha, em plena Segunda Guerra Mundial. A narrativa começa com a promoção e transferência de um oficial para um novo posto de comando. Com isso, sua família, que vivia numa confortável casa em Berlim, vai descobrir, na nova morada, e na própria pele, toda a monstruosidade do holocausto ignominiosamente disfarçada na ideologia do progresso e da superioridade de uns sobre outros.

A começar pela nova residência, nos arredores de Auschwitz, de arquitetura fascista, imponente e opressora, o filme - baseado no livro homônimo do irlandês John Boyne - narra de forma quase que alegórica as transformações na vida de Bruno, de oito anos. De índole aventureira, o garoto se põe a explorar as proximidades e descobre que há uma fazenda ali perto, onde vive uma gente que usa pijama listrado. Curioso, ele escapole com freqüência da vigilância da família para ir ter com o menino do título, que mora do outro lado da cerca de arame farpado. A partir daí, o curso dos acontecimentos irá mostrar que tanta crueldade só foi possível com o apoio da indiferença de uma maioria silenciosa.

Quando saí do cinema e me deparei com a cena corriqueira de uma família dormindo na rua, a metáfora de “O menino do pijama listrado” se materializou no meu íntimo. E a cerca de arame farpado se fez presente, ali, em plena Avenida Visconde de Pirajá. Entre mim e aquele garoto de aproximadamente oito anos, dormindo com a cabecinha no chão, havia um obstáculo intransponível, erguido pelo hábito da minha indiferença. O que fazer? Como viver num mundo com essa monstruosa desigualdade? Ainda mais agora que sabemos o quanto de dinheiro foi disponibilizado para resolver a crise financeira. Enquanto as crises humanitárias – como a do Zimbábue que já dura sete anos - são praticamente ignoradas.

Mas eu não quero ir tão longe. Aprendi que a preocupação com a fome em outro continente pode ser uma forma de escape. Em “Os irmãos Karamázov”, comentando os fundamentos da doutrina cristã, Dostoiévsky faz uma reflexão da maior relevância para nós aqui e agora. Entre outras belas e próprias digressões teológicas, o gênio da literatura russa comenta que amar o distante é fácil, difícil mesmo é amar o próximo. E o próximo não é a minha mãe, não são meus filhos, meus irmãos, meus sobrinhos e afilhados. Esses são os meus, assim como há os seus. Próximo é o garoto de rua da nossa rua; são os mendigos da porta do nosso escritório; é a população das favelas, com quem lidamos com irresponsável desdém. Assim, eu desejo a todos os que sabem o que significa uma Noite Feliz, um esforço para além da indiferença cúmplice. Vamos começar lançando ao nosso redor um olhar solidário. E tentar construir um mundo de paz e amor para os meus, os seus e o próximo.


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Pra dançar...

E lá fomos nós, um grupo de cinqüentões, assistir ao show da Madonna no Maracanã. Somos todos amigos de longa data e já dançamos muito ao som da cantora americana, desde os idos dos anos oitenta, nos tempos da explosão do videoclipe. Época em que sua imagem loiríssima invadiu telas e telões do mundo todo instigando imaginários femininos e masculinos com sua sensualidade agressiva, e abismando os puristas do rock com sua postura assumidamente pop. Ainda que nenhum de nós seja fã de carteirinha de Madonna, fomos todos influenciados de alguma maneira por seu discurso iconoclasta. Isto aconteceu antes da ditadura do politicamente correto, portanto, um tempo em que era permitida alguma transgressão, o que nos faz de certa forma cúmplices tardios da “Material Girl”.

Éramos cinco amigos entre mulheres e homens, e cada qual tinha comprado seu ingresso em dias e locais diferentes, portanto, quando nos encontramos para “esquentar os tamborins”, antes de partir para o estádio, foi que percebemos que os horários marcados nas entradas eram diferentes. Aí começou a cisão no grupo, estava na hora se o show fosse às oito da noite, porém cedo demais se o espetáculo só começasse às nove. Em nome do coleguismo todos cederam e depois de mais uma “saideira” nos enfiamos em dois taxis que nos deixaram em frente às filas, que andavam em sentidos contrários ao redor de todo o Maracanã.

O que parecia confusão era, na verdade, organização espontânea do público que seguia disciplinadíssimo para as arquibancadas. Essas, por sua vez, estavam divididas em 1 e 2, o que para o nosso grupo foi um transtorno inesperado. Acontece que, até então, nenhum de nós sabia que o ingresso da arquibancada 1 não daria acesso à arquibancada 2. E estaríamos irremediavelmente separados nas horas seguintes não fosse a farta venda de bilhetes em frente ao Maracanã. E não eram apenas os cambistas em ação, havia gente como um casal jovem que queria vender dois bilhetes por um quarto do preço original. Com jeitinho, conseguimos que eles trocassem os seus (de nº 1) pelos nossos (de nº 2) por uma gorjeta de vinte reais. E assim entramos todos juntos, agora com bilhetes iguais.

Ainda era cedo e deu para pegar lugar em baixo da marquise. O que foi muito bom porque, dez minutos antes do show, a chuva, que ameaçava cair desde as primeiras horas da tarde, despencou sobre o estádio e não deu trégua até Madonna deixar o palco, às dez e meia da noite. Não dá pra dizer que o mau tempo não atrapalhou. É claro que ter um assistente protegendo a cantora o tempo todo com um guarda-chuva tirou um pouco da magia cênica do espetáculo que é um pouco como o “Cirque du Soleil”. Mas com uma incansável Madonna capturando os sentidos do público, como um prestidigitador que transforma em ilusão a visão de toda uma audiência.

Nas duas horas de espetáculo a loura não parou em cena. Eu diria até que se há alguém no mundo capaz de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo deve ser Madonna. Como pode uma mulher de cinqüenta anos pular corda durante um tempão e sair cantando com o mesmo fôlego de antes, sem nem uma desafinadinha? Não que o show seja apenas um espetáculo de malabarismo. Também não é uma banda de rock. Mas tem atitude de sobra, pois Madona põe uma pitada de sacanagem em tudo o que faz. Quando a malícia não está explícita, vem no subtexto. Além disso, as projeções dialogam com a cantora o tempo todo; os efeitos visuais são deslumbrantes; os figurinos são de um tremendo bom gosto; os bailarinos são um show à parte e a música... ah, a música é pra dançar, ora bolas. E Madonna deu conta do recado: fez o público sacudir por duas horas sem parar. Ao final, fomos todos embora, inclusive o grupo dos cinqüentões, com alma de adolescentes.



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Al mare

Não sei se deu para perceber por outros textos deste blog que eu moro debruçada sobre a Baía de Guanabara. Vivo num décimo sexto andar, num ângulo tal da Avenida Rui Barbosa que o meu terraço, embora pequeno, funciona como um posto avançado sobre o mar. Daqui, vejo todos os dias a águas agitada do oceano entrar pela barra e vir calmamente se aninhar aos pés do Pão de Açúcar. Por isso, eu mesma tenho quase que como uma obrigação ir, a cada intervalo entre uma tarefa e outra, conferir o movimento no acidente geográfico mais bonito do Brasil. E como quase tudo desde esse ângulo privilegiado se transforma num acontecimento extraordinário - porque só a beleza da paisagem aqui já é um acontecimento extraordinário - , imagine você com o movimento dos barcos, os navios saindo e entrando na barra, as mudanças de luz, os efeitos climáticos e os fenômenos astronômicos.


E não é para me esquivar da inveja do leitor que vou me abster de descrever o espetáculo que a lua cheia resolveu fazer bem defronte da minha sacada neste final de semana. É principalmente porque o meu talento de escritora fica muitíssimo aquém do mínimo necessário para dar conta do recado. E também porque tenho agora uma coisa mais urgente pra contar.

Voltando ao meu posto avançado, faz tempo que venho observando o aumento da freqüência de barcos de passeio turístico às voltas pela Baía de Guanabara. Antes, havia apenas um que saía aos domingos e vinha apitar bem em frente aqui de casa, às dez da manhã em ponto. Era de amargar, para mim e todos os boêmios da vizinhança, porque madrugar num dia consagrado ao descanso deixa qualquer um de bofes virados. Mas, passado o mau humor involuntário (com devem ser todos os maus humores, suponho), eu ia para o terraço com a minha xícara de café e deslumbrada pela paisagem, começava a criar coragem para ultrapassar o dia internacional da angústia e tentar chegar, sem maiores danos, à segunda-feira.

Com o tempo, começaram a aparecer outros barcos desse tipo por aqui. Primeiro passavam apenas durante o dia, e isso nunca me comoveu de todo. Mas quando começaram os passeios noturnos, com música alta, feito festa de embalo, aí minha curiosidade se aguçou e tive uma vontade enorme de estar lá, nem que fosse como uma mosquinha, ou outro inseto qualquer que, por sua característica insignificância, pode bisbilhotar nos meios mais impróprios. E aí, eu podia estar aqui escrevendo, ou conversando ao telefone, ou distraída nas páginas de um romance qualquer que, bastava ouvir o som da festa no barco, ia correndo lá pra fora devanear com o que poderia estar acontecendo naquela que eu imaginava uma orgia de prazeres sem igual.

Pois na sexta-feira eu mesma era um dos convidados da festa num barco que sairia às dez da noite da marina da Glória e seguiria seu itinerário num passeio pela orla da Baía de Guanabara até as duas e meia da manhã. Foi a festa de final de ano de uma empresa para seus clientes e fornecedores do Rio e de São Paulo. Eu fiz parte da turma dos amigos do dono que, naturalmente, contribuiu para tornar o ambiente a bordo menos formal. Se bem que num barco, em fim de ano (e um ano desses!), não há formalidade que resista a três rodadas de uísque. E assim foi que saiu uma lua do tamanho de um bonde sobre nós e a festa rolou com dança e jantar e muito papo, e a confraternização foi geral entre paulistas e cariocas, e às quatro da manhã estávamos desembarcando na marina os cerca de cem convidados mais alegres que eu já vi. Foi uma festa careta, como vocês puderam perceber. E isso é muito legal porque eu não precisei ser mosca pra comparecer, bastou um longuinho de jérsei, uma pashimina e uma rasteirinha pra me divertir a valer. E o melhor: não teve marchinha de carnaval!
Ainda bem, porque o fim de semana é de Madonna, e eu vou ficando por aqui, pois devo estar no Maracanã as oito horas em ponto. Até lá, torço para o tempo firmar!

Governo ou desgoverno?

Não sou chegada a uma sessão nostalgia, nem acredito muito nessa história de que recordar é viver. Mas quando vi no jornal, na semana passada, a fotografia de uma dona-de-casa lavando roupa na laje, no topo do Dona Marta, tendo ao fundo o corcovado redentor, senti uma tremenda saudade da cidade que o Rio de Janeiro foi um dia. Nem tanto o Rio que eu vivi, mas o Rio do meu imaginário, o “Rio, 40 Graus”, o Rio de “Orfeu do Carnaval”, o Rio dos anos dourados... da época do lotação... quando os porteiros mais antigos eram verdadeiras instituições na redondeza, e os mendigos eram poucos e folclóricos, cada bairro tinha o seu. Uma cidade na qual menino de rua era um status desconhecido da população. Tanto na Zona Sul quanto na Zona Norte, porque a Zona Oeste nem tinha propriamente população. Enfim, um Rio que não existe mais.

Saí do devaneio saudosista por um lampejo de otimismo trazido por outras notícias tão auspiciosas quanto a da ocupação que livrou o Dona Marta do tráfico de drogas. Uma foi o lançamento no Complexo do Alemão do projeto Território da Paz, com o objetivo de afastar os jovens da criminalidade e aproximar a polícia do dia-a-dia da comunidade. Outra é o esforço da Secretaria de Segurança para acabar com o crime organizado na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, e devolver a comunidade aos moradores de bem. Segundo dados da própria Secretaria, a operação, com início em 11 de novembro, já mostra uma diminuição pela metade, em média, dos crimes cometidos no bairro da Zona Oeste em relação ao mesmo período do ano passado.

Seria muito bom que esse estado de coisas se efetivasse, tanto para os moradores das favelas quanto para os dos bairros adjacentes. Porém há fatores a serem examinados, porque a ocupação social que deve substituir a policial só está prevista para o morro de botafogo, bem menor do que as outras comunidades supracitadas. Ora, o sucesso da operação no Dona Marta, com população de 4.500 pessoas, é resultado de um trabalho de inteligência que reuniu agentes das Polícias Federal e Militar combinado com patrulhamento ostensivo. No entanto, para ocupar as 700 favelas do Rio e Região Metropolitana seriam necessários 70.000 policiais, segundo Milton Corrêa da Costa, um especialista na área de segurança.

Não sei qual é o efetivo a PM hoje, mas com certeza é consideravelmente menor do que o indispensável para vencer a luta contra a violência na cidade. Logo, para dar prosseguimento à política de enfrentamento, o governo do estado já teria que estar concursando e treinando policiais a toque de caixa e em número expressivo. Além de promover programas de capacitação e implementar um plano habitacional para garantir aos policiais o acesso à casa própria - como forma de valorizar a profissão. Porém, nada vai funcionar sem que seja costurado um pacto entre executivo e judiciário no sentido de promover uma limpeza em regra nas forças policiais civis e militares do Rio de Janeiro, afastando os elementos corruptos e punindo-os de forma exemplar. Pois o que há de mais preocupante agora – e seria desolador para o carioca - é a possibilidade do governo tirar o tráfico das comunidades para entregá-las de mão beijada às milícias.

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Ménage à Trois

Se estivesse almoçando com minhas amigas num restaurante em Ipanema e o assunto surgisse, começaria por dizer que a-do-ro Woody Allen. Como já devo ter feito algumas vezes, ainda mais incentivada por taças e taças de Puilly-Fumé gelado, que um Sauvignon Blanc desses leva a gente ao exagero. E não estaria mentindo, mas cometendo o pecado da heresia, pois, segundo a minha avó – que a-do-ra-va cortar a minha onda –, adorar só a Deus. E graças a Deus as admoestações de vovó serviram para ajuizar minhas avaliações e me fazer levar em conta que quando a gente escreve, faz mais do que lançar palavras ao vento nas esquinas chiques da Visconde de Pirajá.

Então, voltando ao assunto, gosto muito dos filmes de Woody Allen, mas este último, Vicky Cristina Barcelona, é menos que uma bobagem. Vamos combinar que há bobagens e bobagens adoráveis, como “Bananas”, no qual Allen satiriza tanto a CIA quanto o ativismo político de esquerda. E “O Dorminhoco”, uma crítica hilária aos governos autoritários e à submissão do homem à tecnologia. E esta é justamente a grife do diretor: além de diálogos brilhantes, um olhar inusitado e crítico sobre os temas abordados em seus filmes. O meu preferido é “Noivo neurótico, noiva nervosa”, um tratado genial sobre os relacionamentos amorosos. Mas há outros ótimos disponíveis em DVD, para assistir no aconchego do lar, em boa companhia e, quem sabe, saboreando um Pinot Noir do Vale de Casablanca.

Agora, de volta ao xis da questão, menos que uma bobagem, “Vicky Cristina Barcelona” é uma chatice feita de encomenda para divulgar o turismo na região da Catalunha. Se bem que para apreciar as deslumbrantes locações da fita vale uma ida ao cinema numa quarta-feira, quando a entrada custa metade do preço. Já que o diretor colocou seu reconhecido dom de revelar fotogenias metropolitanas a serviço da cidade do título. E fez a arquitetura inspirada de Gaudí e a arte de Miró contracenar com atores bonitos que bebem vinho o tempo todo. Dá até vontade de abrir um ALTO, de Ribera Del Duero, aquele tinto com gosto de férias na Espanha.



De resto, o filme mostra uma gente que consome muito, e coisas caras. São hotéis de luxo, iates, carros conversíveis e até avião particular para contar a breve história de um triângulo amoroso pouco convincente. Pode-se dizer que Javier Barden dá conta do recado ao encarnar um pintor blasé dependente de companhia feminina. Scarlett Johansson (linda de morrer) faz o que pode para dar algum brilho à superficialidade da jovem americana em busca de aventuras mediterrâneas. Já Penélope Cruz (muito linda também), no papel da ex-esposa neurótica, consegue apenas fazer a caricatura da artista espanhola de sangue quente.

Pena que Woody Allen tenha desperdiçado a sua vez de abordar um tema que já foi tratado com maestria por alguns dos grandes cineastas. Para escolher apenas um, fico com Jules e Jim, de François Truffaut, com Jeanne Moreau na pele de Catherine, uma mulher para dois. Passado na Paris do início do século XX, o filme narra com poesia a evolução de um triângulo amoroso antes e depois da Primeira Guerra Mundial. E evoca, em menos de duas horas de projeção, desde as frivolidades da belle époque até as cicatrizes do pós-guerra. Não é só mais uma historinha de ménage à trois, como “Vicky Cristina...”. Ao contrário, é uma bela homenagem ao amor e à amizade. E os personagens de Truffaut, saídos do romance de Henri-Pierre Roché, não são feitos apenas de aparência e hedonismo. São alegres, sim, porém controvertidos, e capazes de sentimentos de renúncia e compaixão. Porque a vida é mais do que um pilequinho de Dom Pérignon num sarau ao luar.

Espetáculo carioca

O sol, enfim, apareceu para colorir as águas plácidas da Baía de Guanabara. O Pão de Açúcar despontou da neblina, enigmático e liso. Qual esfinge bruta, a pedra monumental montou guarda sobre a entrada da barra... Um cargueiro preguiçoso apitou sua chegada . A manhã já vinha alta. O horizonte limpo revelou a curva branca de Niterói para o Rio, que há dias jazia imerso em nuvens carregadas.

O albatroz cortou o céu de brilho transparente e convidou-me para um passeio à beira-mar. Aceitei o chamado da alegria e deixei todo o resto para depois. Vesti um biquíni estampado e fui sentir de perto o espetáculo carioca.

Atravessei o parque por entre as árvores de restinga... No deque da praia, o grupo dos mais velhos saudosos de sol cocoricava excitado, como fazem no terreiro as aves de vôo curto. Na primeira curva enrocada, encontrei Mara Mineira, catadora de mariscos, com sua cavadeira e luvas de operário. Ela me disse que entrava na briga das pedras contra o mar, contando tirar a féria de uma semana no primeiro dia de calmaria.

Caminhei pela beirinha, a água salgada gelando meus pés... Fui de um lado para outro vendo as crianças brincar... Passei pelo pescador de primeira viagem lutando com um caniço que teimava em esticar uma linha de todo má. Desviei rápido, para fugir da degola, e fui me esticar sobre a canga bem junto ao mar. Deitei de bruços e deixei maresia entrar pelos sete buracos da minha cabeça. Um avião riscou o céu levando meus pensamentos para Havana. Escrevi com a ponta do dedo o nome dele na areia, a onda veio e lambeu as quatro letrinhas de amor.

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Evolução dos costumes

Um amigo meu contou que um amigo dele foi fazer um programa com uma garota num desses prédios do tipo balança mais não cai, onde as paredes são tão finas que se pode ouvir o som da televisão no apartamento vizinho. Lá, durante a transa, a moça começou a falar cada vez mais alto: “Gostoso, gostoso...” Ao que ele, receoso de um escândalo, pediu: “Fala baixinho.” Ela então não teve dúvida; e emendou aos berros: “Baixinho gostoso, baixinho gostoso...”

É sabido que as mulheres têm essa capacidade quase instintiva para agradar aos homens visando alguma recompensa pecuniária, social, ou afetiva. Não raro, testemunhamos manifestações de adulação exemplares, como a piada aí em cima, ainda que em circunstâncias diferentes. Outro dia, num jantar para poucos convidados, ouvi a jovem namorada de um sessentão declarar que chegou a chorar num show de Michel Legrand, ao qual os dois assistiram juntos para comemorar o aniversário dele. Se ainda fosse a Edit Piaff, vá lá. Mas é difícil acreditar que alguém da geração que se esbaldou ao som de Madonna agüente duas horas da música hiper-sentimental do compositor mais meloso do cinema, ao ponto de verter lágrimas de emoção.

Pode ser que a prerrogativa feminina para fingir prazer sexual seja automaticamente estendida a outras facetas da relação com o sexo oposto. Oposto, sobretudo, nesse quesito, em que o homem, ao contrário da mulher, é limitado pela própria natureza.
Talvez o aspecto fisiológico combinado à pesada repressão da mulher no curso da História tenha impedido a prostituição masculina de se desenvolver e estabelecer. Porém, acredito que, com a crescente emancipação feminina, exista hoje uma demanda cada vez maior por serviço sexual masculino. Já que há cada vez mais mulheres sem disponibilidade, circunstancial ou não, para investir em relacionamentos onde teriam que modelar suas personalidades para se ajustar aos pretendentes.

Umas porque já são obrigadas a proceder desta forma no trabalho, e trabalham justamente para não serem submissas na vida pessoal. Outras porque pagaram um preço tão alto por sua independência que não suportariam capitular nessa altura do campeonato apenas para ter um homem pra chamar de seu. E há também as solteiras convictas ou viúvas que acreditam ter uma vida plena ao se dedicar em tempo integral à profissão, à família e aos amigos. Esperando ou não o parceiro ideal, mas sem fôlego para investir em aliança de compromisso, elas poderiam, no entanto, ter uma vida sexual ativa.

Não estou aqui fazendo a apologia da prostituição, bem entendido. Penso, contudo, que assim como há homens que não se sentem à vontade com o contrato comercial que o sexo profissional exige, há mulheres que, ao contrário, gostariam simplesmente de poder usufruir de tal conforto. Mulheres independentes e desimpedidas que por motivos conjunturais ou de temperamento mesmo preferem satisfazer seus desejos e fantasias sem envolvimento afetivo. Nada mais justo. Além disso, a igualdade de opção para ambos os sexos só pode gerar maior equilíbrio na relação entre eles. E aí, as insuspeitadas afinidades eletivas é que mais contribuiriam para a decisão de os dois juntarem os trapinhos. Até porque não é toda mulher que agüenta passar os fins de semana ouvindo free jazz se o negócio dela for samba na veia.


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Aconteceu? Virou Manchete!

Acabo de receber um e-mail de um amigo querido que mora em Israel, o Salomão Azaria, comentando sobre o livro “Os Irmãos Karamabloch”, do Arnaldo Bloch, sobre a ascensão e queda da Manchete e a saga da família do seu fundador Adolfo Bloch. Mas antes de dizer que “pelo que escreveram parece um livro interessante”, Salomão faz a ressalva cuidadosa: "sei que eles ainda devem a você".

Fico agradecida pela delicadeza do amigo, mas devo dizer para o bem da verdade que quem me deve (e apenas dinheiro) é a empresa que ficou com o espólio da antiga emissora. Coisa que raramente me lembro por estar o processo caminhando na lenta justiça trabalhista brasileira. Processo que entreguei a Deus e aos meus advogados; e ponto final. Agora, quanto à Manchete, tenho as melhores lembranças dos anos em que trabalhei lá. Talvez, alguns dos melhores da minha vida.

Para começar, aprendi a escrever com o Justino Martins, grande jornalista e editor-chefe da revista Manchete na qual eu trabalhava como editora de moda. Toda semana, fechávamos juntos as cinco páginas de matéria assinadas por mim. Justino era um gentleman, corrigia meu texto com grande generosidade, dando-me ótimas dicas e incentivando minhas aspirações profissionais.

O ambiente era ótimo nos prédios gêmeos da Editora Bloch. Duas torres de mármore, assinadas por Oscar Niemeyer, de frente para a Baia de Guanabara. Os funcionários tinham livre acesso aos donos da empresa, almoçávamos todos no mesmo restaurante, num espaço deslumbrante, à beira da piscina, em mesas redondas de jacarandá e tampo de carrara, com talheres de prata e bufê do Severino. O mesmo chefe que fazia as festas da família e que supervisionava pessoalmente o serviço dos garçons, os quais, impecáveis, vinham às mesas servir água gelada em pesadas jarras de prata. E Severiano ficava por ali, o tempo todo observando se a refeição estava do nosso agrado.

Da família Bloch em geral, tenho ótimas lembranças. De alguns tenho muitas saudades. A minha maior amiga era a divertidíssima Eveline, filha do Oscar e da Inês, de quem fui madrinha de casamento, numa cerimônia digna da mais autêntica realeza. Eveline já se foi, deixando um cantinho vazio e triste no meu coração. Assim como a irmã dela, Cláudia, de quem eu gostava muito também. De Carlinhos, o irmão, guardo um terno carinho.

Além da casa do Oscar e da Inês, freqüentei o apartamento do Adolfo e da Anna Bentes, no edifício Chopin. Eles me convidavam sempre para jantares em pequenos grupos onde pontificavam mulheres bonitas e homens inteligentes. Algumas dessas noites foram memoráveis.

Já na televisão, me aproximei mais do Jaquito, pois o Adolfo não gostava nem de pisar no quarto andar, onde funcionava o jornalismo da emissora. Diziam que ele dizia que na televisão só tinha ladrão. Mas se para a maioria dos funcionários o sobrinho do dono era uma pessoa complicada, para mim era um camarada. Nossa relação era firmada na base de respeito e consideração. Lembro de ter ido um dia tomar café da manhã na casa dele, no apartamento da Avenida Atlântica. Lá, com a Dóris, sua esposa, e toda a família à mesa, inclusive o pequeno Boris, o caçula, conversamos sobre as dificuldades pelas quais já passava a Manchete, com o atraso dos nossos salários e tudo o mais. Era desta forma que os Bloch tentavam resolver as coisas.

Depois rolou muita água por baixo da ponte. A empresa fechou e eu me mudei para Curitiba. Fui trabalhar na CNT, onde estava feliz, ganhando bem e, exatamente por isso, não quis voltar quando a Manchete reabriu. No mais, guardo a melhor lembrança daqueles anos dourados e dos grandes colegas que me ajudaram a conquistar um enorme sucesso junto ao público e à crítica.

De todos, destaco a generosidade de Ronaldo Rosas, um estupendo apresentador de telejornal e uma das companhias mais agradáveis que tive na vida. Nunca flertamos, mas também, nunca nos estranhamos. Tínhamos a mesma posição político-partidária e nos intervalos das matérias nossas críticas e opiniões eram de uma coincidência impressionante. Acho até que a nossa amizade era alvo de ciúmes dos diretores de jornalismo e alguns colegas de trabalho.

Outro companheiro inestimável foi o Miele. Homem de elegância singular, tem o dom de transformar o trabalho em prazer. Foram dois anos de programa juntos e eu só vi o Miele (que também era o diretor) se zangar com a equipe uma única vez. Em seguida ele foi ao meu camarim se desculpar de algum mau modo que por ventura tivesse feito na minha presença. Ele e sua Anita formam um casal adorável que sempre me encanta rever.

Por tudo isso, só posso agradecer um dia ter conhecido a família Bloch, e desejo um grande sucesso para o livro do Arnaldo, que foi meu colega de redação na TV Manchete e que é hoje, na minha opinião, um dos melhores colunistas da imprensa brasileira.

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Seu João e a eleição americana

Quando na manhã da quarta-feira passada, depois de uma noite acompanhando a evolução das eleições nos Estados Unidos, abri a porta para o entregador do mercado entrar com as minhas compras, pensei: em que a vitória de Barack Obama vai mudar a vida deste homem? Seu João é brasileiro, negro e pobre. Não tem casa própria, não teve educação formal, sabe quando muito escrever o próprio nome, não tem carteira assinada e muito menos dinheiro na bolsa de valores. Que lhe importa se o presidente dos Estados Unidos saberá ou não lidar com uma economia em colapso se seu João vive do trabalho informal e se mantém na esperança de que pior do que está não pode ficar? Quando muito seu João se preocupa com a saúde da família. Aqui, ele votou no candidato que prometeu unidade de atendimento na favela onde mora. Os dois filhos do seu João não precisam mais de creche e a escola pública ele sabe que não vai faltar. Mesmo que eles não aprendam muito vão passar de ano e sempre saberão mais que seu João e a mulher, que lava roupa pra fora e faz diária em casa de família duas vezes por semana. Grandes drogas também para o seu João se o homem que vai governar os Estados Unidos é contra ou a favor do terrorismo. Logo pra ele que tem apenas uma vaga noção de que a torres existem para comandar os aviões e, se houve desastre, decerto foi com essa coisa de aquelas serem gêmeas, que isso sempre dá confusão. Ser contra ou a favor da proliferação nuclear também não diz respeito ao entregador do mercado, pois por mais que se esforce não consegue entender nem pronunciar os dois nomes em seqüência. Às vezes seu João está tão aporrinhado com o pouco dinheiro, a péssima condução, a magreza das crianças e a feiúra da mulher que quer mais é que o mundo se exploda. Seu João acha também que a mudança na política ambiental não lhe diz respeito, pois não dá a mínima se a exploração da indústria madeireira está acabando com a floresta tropical na Indonésia, não se preocupa com o aquecimento global e muito menos se a Monsanto ameaça a segurança alimentar do planeta. Seu João já vive no sufoco para garantir o arroz com feijão na hora da janta, e transgênico para ele é coisa de quem quer virar a mão. Acima de tudo seu João está se lixando para o fim das guerras americanas, pois a única guerra que tem a ver com o seu João é a do tráfico, que vez por outra o impede de chegar em casa depois de duas horas sacolejando num ônibus, ao cabo de um dia inteiro carregando peso e levando bronca do patrão. Além do medo de ver um dia os filhos metidos na bandidagem, de arma na mão.

Enquanto eu via na minha cozinha aquele homem, negro retinto, retirando produtos orgânicos do engradado de plástico verde, pensei em lhe dizer que pela primeira vez na história um casal com a cor da pele igual a dele, com duas crianças da mesma idade das dele, iria morar na Casa Branca, e seria recebida nos mais belos e ricos palácios do mundo, e estaria protegida pelo maior aparato de segurança do planeta, e com isso transformaria para sempre o imaginário universal, seu João levantou a cabeça e me deu o sorriso humilde de sempre. E eu pensei que a melhor coisa que poderia fazer com a minha euforia era caprichar na gorjeta do seu João.

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Publicado no Jornal do Brasil em 9/11/2008

Conexões Urbanas

A expressão “visão suburbana” com conotação pejorativa pinçada de uma conversa particular do candidato foi parar nos jornais e o crivo ideológico do politicamente correto vetou qualquer possibilidade de justificativa para o que não tem mesmo conserto. No entanto, pela votação maciça que teve nas regiões mais abastadas, dá para concluir que esse eleitorado tratou com indulgência o velho cacoete de menosprezar o povo que mora “do outro lado” da cidade. Ainda bem que a qualidade do homem público foi avaliada pelo conjunto da obra e não por um momento fortuito de desabafo mal humorado e mal-educado. Pois está certo que a biografia de Fernando Gabeira, entre outras características louváveis da sua campanha, pesou no resultado da eleição mais disputada do Rio de Janeiro.

Mas o soluço de preconceito, amplamente divulgado pela imprensa, e explorado de maneira previsível pela campanha adversária, calou fundo no coração do subúrbio e, na reta final, prejudicou o desempenho do candidato que já não era o do seu coração. E não poderia ser diferente, pois os moradores das regiões que mais sofrem com o abandono do poder público também se ressentem com a má vontade com que costumam ser recebidos na orla da Zona Sul. Via de regra, como aqueles que vão invadir sua praia. Daí para descontar nas urnas o sentimento – geralmente camuflado, mas nesse caso insuflado – de vítimas de segregação foi um pulo.

O flerte com o apartheid social existe mesmo e é realimentado sempre que representantes das comunidades carentes reverenciam modas e modismos das regiões mais abastadas. Um fluxo incrementado pelo poder que têm os formadores de opinião, invariavelmente instalados ali. Por isso, vale investir cada vez mais no refluxo, que ocasionalmente acontece de maneira espontânea, como no caso da música que sai dos guetos e ganha o mercado. Agilizar a troca de informação entre os dois lados do front com o objetivo de transformá-la em via de mão dupla é a tarefa a que se dedica o novo programa de TV originário da vontade de incluir as comunidades de baixa renda e o subúrbio carioca nos roteiros dos grandes eventos da cidade.

Idealizado e apresentado por José Júnior, líder do Afro Reggae, “Conexões Urbanas” foi definido por ele como um braço televisivo do movimento sócio-cultural que quer juntar e fortalecer os movimentos surgidos nas comunidades. Agora, com a divulgação na TV a cabo (todas as segundas-feiras, às 21.45h, no canal Multishow), o AfroReggae dá mais um passo em direção à integração cultural, no Brasil e no mundo, pois o programa ultrapassa as fronteiras nacionais para mostrar iniciativas de transformações sociais bem-sucedidas na América Latina, Europa e Ásia.

A realidade da periferia de regiões tão diferentes mostrada por quem fala do assunto com propriedade – José Junior lidera mais de 70 projetos sociais do Grupo Cultural AfroReggae, no Brasil e no exterior – deve funcionar como antídoto para o preconceito que quase sempre nasce da desconfiança pela falta de conhecimento do outro, do diferente. Além disso, ajuda a entender que pode estar dentro de nós parte do problema que atormenta a todos, e romper com a indiferença é uma das maneiras de começar a resolvê-lo.

Acima de tudo, “Conexões Urbanas” é bom entretenimento. Tem projeto gráfico atraente, assim como roteiros bem construídos e coerentes com a proposta do programa. Apresenta experiências relevantes de resgate da cidadania em ações sociais alternativas, e mostra que o fenômeno da “cidade partida” não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, mas um reflexo perverso da desigualdade econômica e social espalhada por todas as regiões do planeta. O conteúdo é valorizado pela qualidade técnica, e há criatividade na captação de imagens dispostas em edição ágil.

Por tudo isso, torço para que “Conexões Urbanas” seja bem-sucedido e lhe desejo vida longa. Só faço uma sugestão para reforçar seu espírito de congraçamento: em vez de escolher um local ícone de uma turminha descolada da Zona Sul, como aconteceu na festa de lançamento do programa, que a próxima data comemorativa seja festejada em uma das inúmeras casas noturnas da Lapa.

Porque o tradicional bairro boêmio está localizado na região central da cidade, onde há transporte coletivo para todos os bairros e outros municípios que formam o Grande Rio. Característica que proporcionou ao lugar se transformar em berço do hip hop carioca; que ali se misturou ao samba, ao reggae e ao rock, conferindo-lhe a legitimidade necessária para representar a conexão simbólica entre as pontas mais afastadas deste nosso sonho feliz de cidade.

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Publicado na Gazeta Mercantil em 7 de novembro de 2008

Eleições e o Santo das Causas Impossíveis

A semana foi de rescaldo. Contaram-se mortos e feridos da campanha derrotada, avaliaram-se erros e acertos dos postulantes, e coube ao vencedor a batata quente de cumprir 86 promessas sob a vigilância acirrada de metade do eleitorado carioca (a vitória foi por menos de 1% dos votos válidos). Encontro-me entre eles e, apesar de desejar que o próximo prefeito faça uma boa gestão, ainda estou lambendo as feridas, de olho nas reportagens e analises do resultado das urnas.

Ontem mesmo soube que, de todos os bairros da Zona Sul, Gabeira foi mais bem votado em Laranjeiras e Cosme Velho (75,82%). Não me surpreendi. Já havia percebido o perfil interessante da gente que mora ali. Desde um ensolarado feriado de primeiro de maio, há alguns anos, pouco depois que me mudei de Santa Teresa para o Flamengo e passei a caminhar diariamente pelo Aterro. Naquele dia, uma quarta-feira, o parque estava mais vazio. Notei também que o público era diferente do que costuma freqüentar o lugar nos finais de semana; em geral pessoas do centro e da Zona Norte da cidade, que vêm em turmas grandes ou famílias numerosas, fazem churrasco, jogam bola e lotam a areia da praia. Estes eram jovens casais de classe média aproveitando, com os filhos pequenos, o amplo espaço gramado e a beleza incomparável do paisagismo de Burle Max.

Fiquei intrigada. Mas logo tive um encontro esclarecedor. Cruzei com um conhecido, a mulher dele e dois filhos pequenos. Ele é dono de um sebo no Centro e me contava, naquela manhã, que costuma ir de bicicleta de Laranjeiras, onde mora, para o trabalho pela mesma ciclovia onde caminhávamos agora. Vários casais passaram por nós. Alguns pararam para conversar. Aproveitei para observar aquela rapaziada com estilo próprio, sem a ostentação e a padronização típicas da Zona Sul. Na atitude segura, no jeito despojado de se vestir, na conversa variada, e na atenção para com o outro, via-se que eram pessoas mais preocupadas em ser do que em ter. Mais interessadas em sentir do que em se exibir. A maioria morava em Laranjeiras. Fiquei encantada.

Dali em diante, aproveitei toda oportunidade que tive para passear pelos bairros dos mais tradicionais do Rio. Fui pesquisar filmes brasileiros na cinemateca das Casas Casadas; vi a exposição de Nássara, no Espaço Cultural Trem do Corcovado; ouvi MPB no Mercado São José; assisti à peça de formatura da turma de teatro da Cal (Casa das Artes de Laranjeiras); tomei cerveja ao luar, na Praça São Salvador; comi feijoada e dancei na roda de samba da Casa Rosa Cultural (antigo prostíbulo da Rua Alice); levei meu amigo francês para conhecer o deslumbrante conjunto arquitetônico colonial do Largo do Boticário... E foram tão bons os programas - todos com algum apelo artístico ou cultural - que me tornei habitué das Laranjeiras.

Tanto que não perdi a bênção de ontem, na igreja de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis. Foi uma festa popular de toda a cidade. A fila para acender vela na gruta mais visitada do Cosme Velho ia até quase a entrada do túnel Rebouças, mas andava rápido. As pessoas levavam pequenos arranjos de rosas vermelhas com ramos de trigo dourado nas mãos. Ao longo da rua das Laranjeiras havia muitos ambulantes vendendo flores, velas, santinhos, flâmulas, fitas vermelhas e camisetas estampadas com a imagem do santo. Logo na entrada, um funcionário da igreja mergulhava uma brocha em um balde e mandava uma esguichada de água-benta na cara dos fiéis, lá dentro havia missa com preces e cânticos.

Eu assisti à missa em homenagem a São Judas Tadeu. Cantei e rezei pelo Rio de Janeiro. Também levei um banho de água-benta. E pedi ao Santo das Causas Impossíveis que não deixasse Eduardo Paes lotear os cargos da administração pública entre os treze partidos da aliança que o elegeu, não cedesse à pressão do deputado ligado à milícia que o apoiou e, principalmente, não colocasse em 2010 a máquina da prefeitura a serviço da reeleição do governador.

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Amanhã será outro dia

O Rio não amanheceu cantando, nem os namorados foram pra rua em bando, contrariando a idílica imagem de Braguinha para a primavera na cidade. Ao contrário, desde o fim da tarde de ontem, o lado mais festivo da cidade emudeceu, recolhendo-se em seguida, como se quisesse fazer um ato de contrição. Não por arrependimento de não ter sido mais agressivo na campanha do seu candidato à prefeitura da cidade, que esse foi um dos muitos pontos pacíficos entre os eleitores de Fernando Gabeira.

É mais fácil acreditar que os cariocas dos bairros que formam a região do Centro, Zona Norte e Zona Sul estavam concentrados na reflexão sobre o grade passo que foi dado em direção a uma política maior, mais comprometida com valores como fraternidade e respeito às diferenças do que com preconceito e promessas difíceis de cumprir. Talvez porque menos carente do básico, esse eleitorado pode almejar padrões mais elevados de honestidade e probidade administrativa.

A fim de dirimir minhas dúvidas, fui logo cedo dar uma volta no bairro para os afazeres que costumo deixar para as tardes, mais frescas. Queria colher uma mostra do sentimento das ruas e para tanto conversei com a dona da tinturaria, a mãe do sapateiro, a caixa do supermercado e o farmacêutico da esquina. Outros fregueses ao redor também entraram no assunto, o que me fez estender a saída da costumeira meia hora para mais de uma hora e meia.

Valeu, pois de tudo o que foi dito, percebi que maior do que o desapontamento de ter perdido por tão pouco há, pelo menos entre os moradores do Flamengo, a certeza de terem plantado uma semente de mudança no jeito de fazer política na cidade. E como o Rio é caixa de ressonância, ficou a confiança de que o novo paradigma poderá ser replicado nos pleitos futuros em todo o Brasil.

E mais, que triste mesmo ficaria o eleitor se apreendessem no comitê de Gabeira 90 mil panfletos de propaganda negativa contra seu adversário, como foi divulgado nos jornais de hoje. Ou se assistisse no YouTube a um vídeo do seu candidato defendendo a atuação das milícias, como no caso de “Dudu Duas Caras e as Milícias”, no endereço:

http://www.youtube.com/watch?v=qEhHo8wkoq0

E por tudo isso, pude concluir que, se o carioca dormiu desenxabido, acordou mais confiante de que amanhã será outro dia.


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Samba da vitória

Minha primeira lição na faculdade de comunicação foi em tom de anedota. O professor de jornalismo, Nilson Lage, contou-nos, já na aula inaugural, a história do editor de um jornal que encomenda ao repórter uma matéria sobre Jesus Cristo. Ao que o subordinado, após ajuizada aquiescência, pergunta: contra ou a favor?

Assim, aprendia-se, ao entrar na faculdade, que um jornalista deve desenvolver a versatilidade verbal e treinar malabarismos retóricos para se firmar na profissão até, quem sabe?, conquistar seu espaço próprio de opinião. No livro “O Anjo Pornográfico”, biografia de Nelson Rodrigues por Rui Castro, o autor conta que, por algum tempo, Otto Lara Resende foi o editorialista de dois jornais com posições antagônicas, sendo um matutino e outro vespertino. Profissional competentíssimo, Lara conseguia a proeza de, pela manhã, escrever um editorial apoiando determinada idéia ou posição que, à tarde, derrubava sem piedade.

Esta época de eleições é pródiga em artigos que investem na habilidade do proselitismo político. E até quem não se especializou em nessa área aproveita a onda para dar suas cacetadas. Afinal, o assunto é o mais veiculado em todos os espaços de comunicação; do jornal impresso às conversas na praia e nas mesas de bar, passando pela internet e até pelo telefone celular. Então, é quase que obrigatório falar no assunto e, dependendo do acirramento da disputa, sente-se também obrigado o colunista a tomar partido, qualquer que seja a posição do (seu) jornal.

Com uma coluna recente no Jornal do Brasil e na Gazeta Mercantil, senti-me de certa forma compungida a expressar opinião a respeito da disputa pela prefeitura do Rio. Porém, optei por abordar o assunto de forma indireta, tratando de coisas como a identidade carioca, a segurança e a qualidade de vida na cidade, a relação da violência com a educação e exemplos de iniciativas bem sucedidas em âmbito municipal em outras partes do mundo. Porque credito acima de tudo na prática da reflexão, que resulta em mobilização para as transformações sociais.

Porém, ainda ontem, num jantar na casa de amigos, fui cobrada por não ter declarado meu voto nem ter escrito sobre o porquê da minha decisão. Então, antes tarde do que nunca. Aproveito o imediatismo da internet para dizer em alto e bom som que Vou De GABEIRA PARA PREFEITO DO RIO DE JANEIRO, esta cidade maravilhosa que, apesar de tanto desmando, continua abençoada por Deus e bonita por natureza. E para não ficar devendo explicações, passo à lista das vantagens do meu candidato. O que significa, nessa altura do campeonato, uma compilação de tudo o que o seu adversário não tem.

Gabeira não cogita armar a Guarda Municipal. Gabeira não vai lotear as secretarias municipais entre uma miríade de partidos políticos com programas e posições ideológicas antagônicas. Gabeira já declarou que seu secretariado será escolhido por critério meritório entre técnicos e especialistas com nível de excelência em suas áreas de atuação. Gabeira não aceitou o apoio de representantes do caciquismo populista mais atrasado do nosso estado. Gabeira faz uma campanha limpa em todos os sentidos. Gabeira não apela para falsos valores éticos como a exaltação da família nuclear que redunda em preconceito contra outras opções de vida. Gabeira é a favor da reforma da polícia, como primeiro passo para resolver o problema da violência na cidade. Gabeira não se opõe a discussão sobre a legalização da maconha. Gabeira mostrou coerência ao longo de toda a sua vida política e representa a restauração da credibilidade nos políticos. E se isso não bastasse, Gabeira ainda revela a essência de sua formação progressista quando diz que se preparou a vida inteira para a vida inteira.

Portanto, no próximo domingo, vou vestir uma camiseta verde e votar no número 43. E assim que sair a pesquisa de boca-de-urna, zarpo para o território livre da Lapa, que não é Zona Norte, nem Subúrbio, muito menos Zona Sul, mas o lugar onde a cidade diuturnamente se encontra para comemorar com samba a vitória do Rio de Janeiro.

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Festival do Rio

Mesmo atrasada, vou falar dos filmes que assisti no Festival do Rio, que começou na última semana de setembro e terminou na semana passada. O atraso se deve a um evento muito triste que menciono apenas para dividir com vocês – queridos leitores deste blog e grandes incentivadores da minha escritura – um pouco da dor imensa que sinto. Meu pai, que caíra doente no meio do ano, morreu no início de outubro, deixando no meu coração um enorme vazio da sua figura heróica*, seu espírito alegre, sua índole companheira e seu coração amoroso...

Alguém me disse, durante as cerimônias fúnebres, que “a vida continua...” É um tremendo lugar comum; mas é a pura verdade. Então, entre um gole de vinho e um soluço de saudade, levo-os de volta ao Festival do Rio.

Sobre o filme de Bruno Barreto, “Última parada 174”, que abriu a mostra, já falei na postagem anterior. O encerramento foi com “Um homem bom”, de Vicente Amorim, diretor do ótimo 2000 Nordestes (2001) e “O caminho das nuvens” (2003). Vicente é filho do ministro das relações exteriores Celso Amorim, o que garantiu a presença na platéia do Odeon de autoridades e personalidades ligadas à cultura nacional. Presente também o ator Viggo Mortensen, protagonista do filme, que conta mais uma história de holocausto. Mas conta bem, pela narrativa atraente, qualidade técnica e sensibilidade, a história de um professor universitário que inadvertidamente passa a colaborar com o nazismo, aceita as benesses do regime e só percebe seu grande equívoco quando seu maior amigo, um psicanalista judeu, começa a ser perseguido. No fundo, é uma discussão sobre livre-arbítrio; tal como o filme de Barreto, que abriu o festival.

Na mostra Panorama do Cinema Mundial, teve o divertidíssimo thriller português “Call Girl”, de António-Pedro Vasconcelos. A trama gira em torno da contratação de uma garota de programa para seduzir o político que pode facilitar a vida de uma empreiteira que, por sua vez, quer construir um empreendimento turístico no imenso bosque de uma cidade do interior. A trama é bem engendrada e muito bem contada, os atores são extraordinários e a protagonista é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. E trabalha direitinho a danada da Soraia Chaves, apesar de seu talento competir o tempo todo com seu corpo deslumbrante, em cenas bastante eróticas, mas nunca deselegantes. Porém, o melhor de Call Girl é mesmo o roteiro, o qual surpreende o tempo todo pelas tiradas mais óbvias possíveis. E aí eu passei a entender melhor a sutileza do humor português. Imperdível!

Outro filme imperdível da mostra Panorama é “Valsa para Bashir”, de Ari Folman. A animação de longa-metragem feita em co-produção de Israel, França e Alemanha, parte de um encontro num bar de Tel Aviv entre o diretor do filme e um velho amigo que lhe conta um sonho recorrente, no qual é perseguido por 26 cães raivosos. Veteranos da Guerra do Líbano, nos anos 80, eles concluem que o sonho está ligado à experiência deles no exército israelense. Como não consegue se lembrar desse período, Ari procura outros companheiros de armas para tentar resgatar sua memória, e acaba por descobrir a verdade do terrível massacre de Sabra e Shatilla (campo de refugiados palestinos no Líbano).

Tudo isso é contado numa técnica de animação que nos remete ao melhor do cinema noir. Ótimos diálogos e texto e subtexto que não subestimam a inteligência do espectador. Como eu disse acima, é um filme imperdível. Para quem se interessa por política internacional, ou não.

Entre os documentários da mostra competitiva vale destacar “Palavra (En)cantada”, de Helena Solberg, que propõe uma reflexão sobre a relação entre poesia, literatura e música popular no Brasil. Para tanto, a diretora alterna depoimentos com números musicais e faz dessa costura o fio condutor da narrativa do seu longa-metragem. Como não podia deixar de ser, Chico Buarque é a melhor figura em campo. Mas tem também a participação, entre outros, Adriana Calcanhoto, Maria Bethania, Martinho da Vila, Arnaldo Antunes e Lirinha. No entanto, são os depoimentos de Lenine e Tom Zé que traçam as melhores considerações sobre o tema. Enfim, “Palavra (Em)cantada é um belo trabalho de investigação da alma brasileira que tem na cultura oral e musical sua âncora de identidade.

Apesar de ter assistido aos dois filmes de Ficção mais festejados pela mídia (com certeza, por serem dirigidos por atores globais), não vou comentar “Feliz Natal” , de Selton Mello; nem “A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergaele. Digo apenas que como diretores, os dois são ótimos atores.

E, por último, chamo atenção para o filme de David França Mendes, o melhor da Mostra Hors-Concours. Para este seu primeiro longa-metragem de ficção, David – que fez dobradinha de sucesso com Vicente Amorim em “2000 Nordestes” e “O Caminho das Nuvens” – escolheu se basear no livro de Sérgio Sant’Anna, “Um Romance de Geração”. E fez uma obra que lembra muito “Ricardo III”, de All Pacino. Ou seja, construiu sua narrativa a partir da leitura e ensaios da peça. A diferença está na escalação de três atrizes para o papel feminino. E aí reside o único defeito do filme: o espectador tem que agüentar ver algumas das cenas repetidas com cada uma delas. É dose. Acontece que o texto é muito bom e a presença do sempre brilhante Sérgio Sant’Anna no elenco valoriza a discussão sobre a relação entre Carlos Santeiro (Isaak Bernat), o escritor que não escreve, e a jornalista que chega no início da peça para entrevistá-lo (Nina Morena, Suzana Ribeiro e Lorena Da Silva). Todos estão ótimos em seus papéis, mas Isaak tem uma atuação notável. Mas quem levou o troféu Redentor de melhor ator do Festival do Rio foi Daniel de Oliveira, por seu trabalho em " A Festa da Menina Morta". Um grande equívoco, pois Oliveira faz uma caricatura demasiado estriônica do seu personagem. E compõe um homosexual que não fala, mas berra; não tem subjetividade, apenas trejeitos. Quem se lembra da interpretação de William Hurt no papel de Molina, no "Beijo da Mulher Aranha", sabe do que estou falando.


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* Meu pai, Luiz Gonzaga Moura, foi herói da Segunda Guerra Mundial. Ferido duas vezes em combate, era o comandante do Batalhão de Reconhecimento do Regimento Sampaio. Major da Força Expedicionária Brasileira, na campanha da Itália, foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul.
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Método & Disciplina

Bruno Barreto mostrou confiar no seu taco de diretor ao decidir fazer o filme “Última parada 174”, depois do grande sucesso do documentário de José Padilha sobre o mesmo tema. Digo isso, porque, por mais que difiram na forma, os dois longas-metragens seriam fatalmente comparados. No entanto, Barreto partiu justamente de um dos depoimentos de “Ônibus 174” para desenvolver a história de Sandro do Nascimento, o sobrevivente da Chacina da Candelária que, sete anos depois, em junho de 2000, tomou como reféns onze passageiros do coletivo da linha Gávea- Central do Brasil, o 174.

O testemunho da doméstica que decidiu adotar Sandro, já quase adulto – e que foi a única pessoa presente ao seu enterro, inspirou o fio da trama que percorre a biografia romanceada do rapaz. O filme começa no dia em que Sandro, aos nove anos, vê sua mãe assassinada a facadas no chão do seu próprio bar, em São Gonçalo. A partir daí, ele foge da casa da tia, ganha as ruas, entra nas drogas, cai no crime, passa por instituições de menores, apaixona-se, vira assaltante e morre no desfecho trágico do seqüestro que paralisou, por cinco horas, a Zona Sul do Rio de Janeiro.

Jean-Luc Godard disse, certa vez, que, para ser bom, um documentário deve parecer um filme de ficção, e vice-versa. Aí reside a desvantagem da obra de Bruno Barreto na comparação entre as duas produções. Padilha montou imagens do seqüestro (gravadas por emissoras de televisão), depoimentos de especialistas e entrevistas com pessoas que conviveram com Sandro de forma que seu documentário seguisse a curva dramática da narrativa do gênero policial. Desta forma, ao apostar na tensão da evolução dos fatos, ele mantém o suspense do seqüestro enquanto traça o perfil do seqüestrador. Já Bruno Barreto adota o desenho da narrativa linear para contar a vida de Sandro do Nascimento. Desta forma, dilui a carga dramática de uma história que, apesar de real, não surpreende. Até mesmo porque tem um final amplamente conhecido.

Há também no filme de Barreto algumas associações desnecessárias, como um copo quebrado toda vez que Sandro vai se “dar mal” (como aconteceu no dia em que ele viu a mãe morta). É um recurso precário para alcançar a dimensão psicológica do personagem, e acaba por esvaziar o impacto da brutalidade que cerca o cotidiano de um menino de rua.

Mas esses são pecadilhos não chegam a comprometer “Última parada 174”. Pesa mais a favor do filme o olhar humano que o diretor lança sobre a questão da violência que, no Rio de Janeiro, e nesse caso específico, transborda da favela para o asfalto. Quase sempre provocando reações irracionais, quando não raivosas, do lado de cá da cidade.

Ao desprezar o preto no branco das explicações simplistas para problemas complicados, e observar nuances no enfoque de personagens marginais, Bruno Barreto mostra sensibilidade social e atenção ao mundo que o cerca, dando um belo exemplo de não-indiferença. Ao adotar um ritmo que favorece a reflexão, ele esmiúça a condição existencial de um garoto que, como tantos outros, não perdeu uma única oportunidade de fazer a coisa errada.

Contada desta forma, sem se arrogar o direito de apontar para o que é certo e o que é errado, a história de Sandro do Nascimento por Bruno Barreto focaliza a gênese de um tipo de delinqüência que, pelas circunstâncias invariavelmente adversas, grassa nas áreas mais carentes da cidade: a combinação de baixa escolaridade com alto consumo de drogas.

A título de ilustrar essa teoria, lembro a resposta de Mick Jagger para o repórter que quis saber como ele conseguiu ultrapassar, sem grandes derrapadas, a fase de excessos de sexo e drogas que costuma vir junto com o sucesso no mundo do rock’n roll. O bardo inglês respondeu que teve uma infância muito simples, beirando mesmo a pobreza, mas que recebera como herança um legado de valor inestimável. Seus pais, professores primários, deram-lhe, desde cedo, método e disciplina.

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Um homem superlativo

Conheci Fausto Wolff em Búzios, num verão do final dos anos 70. Estávamos hospedados na casa de um amigo em comum, na Praia do Canto; ele sozinho, eu com marido e dois filhos pequenos. A primeira impressão que tive de Wolff foi de um homem muito grande, com um rosto muito bonito, e a voz muito rouca. Um homem superlativo, como eu iria constatar depois. Era também o mais velho da turma. De resto, bem parecido com os outros amigos do dono da casa, todos muito falantes, cada qual querendo saber mais do que o outro.

Pela manhã, todos dormiam até tarde, menos eu e as crianças, que cedo queriam tomar banho de mar. Um dia, eu as vigiava enquanto tentava ler um livro, debaixo de um flamboaiã, bem junto à areia da praia. Fausto Wolff veio sentar-se ao meu lado e me perguntou o que eu estava lendo. Mostrei-lhe o livro “Pensamentos”, de Sully Prudhomme, que pegara ao acaso na biblioteca da casa, e que me interessou principalmente por trazer na contracapa a informação de que o autor fora o primeiro laureado com um Prêmio Nobel de literatura.

“Ah... Prudhomme. Um intelectual de direita!”, foi o que ele disse. Confesso que fiquei bastante intimidada com aquela afirmação categórica, pois se tratava de um assunto que eu não dominava e, por temperamento, não gosto de falar sobre o que não sei. Com sensibilidade bastante para perceber um misto de desconforto e curiosidade na jovem que largara os estudos muito cedo para casar e ter filhos, Fausto Wolff passou a vir ao meu encontro, pelas manhãs, durante toda a temporada, para conversar sobre literatura e política. Conversar, não, na verdade ele falava e eu era toda ouvidos, interessadíssima no breve curso de verão.

Nunca mencionamos nossos encontros matutinos para os outros hóspedes. Não que fosse segredo. Era apenas alguma coisa singela demais para ser comentada entre gente tão esperta, sabichona, e com fôlego (e sede) bastante para discutir qualquer assunto até altas horas da madrugada. Seguiram-se, assim, tranqüilamente, várias manhãs de prosa literária até que a temporada teve fim, votamos todos ao Rio de Janeiro, e eu nunca mais encontrei Fausto Wolff. Mas com certeza sob sua influência decidi ser jornalista, pouco tempo depois fiz vestibular e entrei para a Escola de Comunicação da UFRJ, onde me formei.

Essa história estava guardada naquele cantinho escondido que tem dentro de cada pessoa, como diz a música de Marisa Monte. Veio à tona em fevereiro deste ano, quando li o texto “Meus super-heróis”, na coluna de Fausto Wolff, no JORNAL DO BRASIL. É que em tempos frívolos como o nosso – em que até participante de BBB vira herói, e editoria de cultura dá agenda de modelo –, ser apresentada a um questionário sobre personalidades da cultura universal é alentador.

Pois naquele dia, Wolff propunha ao leitor que tentasse acertar qual figura ilustre das letras ou artes plásticas viveu os momentos de privação e infelicidade descritos por ele no texto. Com a intenção clara de lembrar-nos que nem sempre os mais brilhantes tiveram seu valor reconhecido a tempo de desfrutar as benesses do sucesso. Desta forma, contou breves histórias das desventuras de Edgard Allan Poe, Vincent Van Gogh, Lima Barreto e Auguste Rodin. Ora, estava ali uma lição com a impressão digital do meu fortuito professor.

Não fui ao velório de Fausto Wolff, nunca mandei uma carta para o jornal elogiando sua coluna, nem mesmo lhe enviei um simples e-mail de congratulações. E só conto essa história agora movida pela emoção de quem chegou tarde demais para o reencontro, tentando imaginar uma situação mais ideal do que aquela, à sombra de um flamboaiã.


Artigo publicado na Gazeta Mercantil e no Jornal do Brasil em 26/27/10/2008

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Questão de Fé

Confesso que andava desconfiada dessa história de pré-sal, achava as estimativas do volume das reservas pra lá de exageradas e os valores correspondentes estratosféricos demais para jazidas tão profundas. Foi quando li nos jornais que o presidente da república teme uma investida dos Estados Unidos sobre o nosso recém-descoberto tesouro submerso. Lula se preocupa com a Quarta Frota da Marinha americana que, segundo ele, “está aí, quase em cima do pré-sal”, e promete reforçar as Forças Armadas para fiscalizar o nosso patrimônio.

Então comecei a acreditar que o negócio é sério e o dinheiro é muito, e resolvi repassar os números divulgados para saber exatamente o que nos renderia em volume de recursos o suposto butim dos ianques. São reservas que nos levariam a um total de 27 bilhões de barris de petróleo, e o país já poderia exportar, em 2015, o equivalente a 400 mil barris, gerando uma receita de 16 bilhões de dólares anuais. As previsões nos transformam num país cada vez mais rico, até a exportação de petróleo render ao Brasil, em 2030, 182 bilhões de dólares por ano.

Você vai dizer que viabilizar a produção desta reserva gigante, localizada a 6 mil metros da superfície marinha, com uma camada de sal de até 2 mil metros de espessura no meio do caminho, iria nos custar um caminhão de dinheiro, coisa difícil de conseguir em tempos de colapso de sistemas financeiros, de crise de crédito e patati-patatá... Eu ponderei da mesma forma, até saber que o Lula vai, pessoalmente, buscar crédito para que a “gente possa antecipar ao máximo a retirada do petróleo do Pré-sal”. E aí, meu amigo, se isso não é garantia de poder contar com o ovo dentro da galinha, eu naõ sei o que mais pode ser.

Desta forma, decidi embarcar na canoa do Pré-sal, e fui pro aniversário da Carminha vislumbrando um futuro abonado para todos nós. Chegando na festa, botei logo o assunto na roda, que foi ficando animada na medida em que cada convidado expunha a sua teoria sobre qual a melhor maneira de se gastar a dinheirama que vem por aí.

A dona da casa falou primeiro e, politicamente correta, alegou que a renda do Pré-sal é das gerações futuras e em nome delas deveria ser feita uma super poupança para recuperar nossas florestas, nossos mares, nossos rios, a qualidade da terra, a fixação do homem no campo e etc e tal..., e afirmou, inclusive, que naquele instante tomava a decisão de se tornar vegetariana para sempre e assim nunca mais seria responsável pelo sofrimento de um ser vivo.

O Máximo, marido da Carminha, declarou apoio incondicional à esposa depois de virar o copo de cerveja de um gole só e pedir-lhe que trouxesse mais um pratinho de presunto cru, que estava uma delícia. Nisso, o Zé Edgar tomou a palavra para discordar da parcimônia da aniversariante e declarar que, ao contrário, quer começar a gastar por conta, pois a sua geração foi a mais sacrificada com sucessivos planos econômicos. Ele mesmo um exemplo, pois teve a grana da venda do apartamento de dois quartos em Laranjeiras (presente do sogro) confiscada pela “louca” da Zélia, enquanto procuravam um imóvel maior para a chegada da Heleninha, a segunda filha do casal.

Esse papo comoveu a todos, menos ao Maurício, o cunhado. Já calibrado no uísque, ele replicou que sua irmã foi morar num quarto e sala no Catete porque o pai da Heleninha votou no Collor, igual a uma porção de otários que se encantou com o Caçador de Marajás e depois ficou chorando pelo leite derramado, além de continuar dirigindo uma "carroça". Nessa hora, quase que a vaca foi pro brejo, ali, no meio da sala. Salvou-nos o Lauro - que já foi padre, preso político, e defensor da teologia da libertação – com a sua serenidade de claustro, alegando que o dinheiro do pré-sal deveria ser usado para erradicar a pobreza do país, multiplicando-se o Bolsa Família na mesma proporção dos recursos advindos da exploração do petróleo recém-descoberto.

Nisso, o Cunha discordou. Brizolista doente, ele fez primeiro sua tradicional defesa dos CIEPS para depois anunciar que se o caudilho tivesse vivo iria lutar para transformar essa verba extra numa onda de escolas de turno integral que inundaria as periferias de todo o Brasil com atividades recreativas nos fins de semana e alimentação reforçada para atrair a garotada, além de ... Mas aí, nem deixaram o Cunha terminar, pois um sentimento de potência contaminou os ânimos e foi um turbilhão de soluções para as mazelas do país que trouxe de roldão a transposição das águas do São Francisco, a usina nuclear de Angra III, o rombo da previdência, a demarcação das terras indígenas, a saúde, a segurança..., e todos falando ao mesmo tempo até que a Luciana, dona de uma franquia de lingerie, chamando o povo à razão, declarou em alto e bom som que a sua parte, ela queria em Botox...

A gargalhada foi geral, a mãe da aniversariante aproveitou a deixa para apagar a luz e trazer o bolo espetado de velinhas faiscantes, todos relaxaram e cantaram o parabéns, felizes, como se cada um tivesse ganhado um prêmio na loteria federal. E eu, vendo aqueles olhinhos brilhantes ao redor, percebi o quanto pode render politicamente a um presidente adotar a doutrina bíblica da fé, que nada mais é do que se ter já o que ainda se espera.

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Anacoluto

Há males que vêm pra bem é um ditado popular no qual eu sempre levei fé. Outro dia mesmo eu pude confirmar o quanto há de verdade nessa proverbial contradição ao cruzar, no saguão do cine Odeon, com uma moça que não via há alguns meses. Nosso último encontro fora numa ilha de edição para finalizar um curta-metragem do qual nós duas participávamos. Estávamos ali agora para assistir a um ciclo de debates sobre filosofia e cinema que abriria com a exibição do filme “Di-Glauber", do cineasta baiano. Minha surpresa foi enorme ao revê-la transmudada, assim, em tão pouco tempo. Pra começar, a moça estava mais magra uns quinze quilos. Não fosse o tom alegre da voz e o largo sorriso com que me saudou, teria pensado o pior.

Pior só doença, em sua própria opinião, que ainda me corrigiu garantindo ter perdido, mais precisamente, doze quilos. Quis saber o que acontecera. Sem hesitar por um segundo, num desabafo relâmpago, ela declarou protagonizar um caso de separação muito pouco amigável. Fiquei consternada, pois ela e o marido formavam um casal aparentemente adorável e separação, convenhamos, é quase sempre má notícia. Para mim que sou romântica, que acredito no casamento como a melhor maneira de viver uma relação de amor, botar aliança no dedo é sinônimo de final feliz.

Como o evento demorava a começar, e percebendo que a moça precisava com urgência falar mais sobre as agruras do rompimento amoroso, convidei-a para um café. Nesta altura do atraso, mais gente teve a mesma idéia e acabamos por dividir a mesa do bar contíguo ao cinema com dois renomados cineastas. A conversa girou em torno do filme no qual Glauber Rocha registra o funeral de Di Cavalcanti - que foi ganhador do Prêmio Especial do Júri em Cannes, em 1977, apesar de ter a exibição no Brasil proibida por muitos anos a pedido da família do pintor. No meio do papo, entre um palpite e outro, vi que a minha amiga, antes uma pessoa tímida, evoluía suas opiniões com desenvoltura. Era visivelmente movida por um impulso de se “colocar”, que de forma alguma me pareceu inconveniente.

Pelo contrário. Na verdade ela adquirira um charme antes insuspeitado. E parecia mais leve de corpo e alma, ainda que radicalizando na transformação. Pra começar, tirou a jaqueta e apresentou uma deslumbrante tatuagem de flores que lhe cobria o ombro esquerdo. “Novíssima”, contou-me, afirmativa, sem buscar aprovação. Os óculos também novos, ou melhor, velhos porque comprados em brechó, eram do tipo gatinho, com estampa de onça pintada pra ficar mais descolado. E o assessório redundante ia muitíssimo bem com o seu rosto mais afilado. A lente, transparente, mostrava as olheiras colhidas, como diria o poeta, num jardim de sofrimentos recentes; e até a voz, talvez pelo uso excessivo, soava com requintada rouquidão.

Mas que mudança! Pensei. Ou seria uma questão de reconstrução de auto-estima? Pois sendo o marido professor universitário e ainda por cima um gato, é provável que ela tenha se espremido para caber-lhe na sombra, e acabou por transbordar em peso o que teve de conter na afirmação da sua personalidade. Estava, assim, com os meus botões, quando ouvimos o vozerio comentando que a sessão iria enfim começar. Fomos, então, todos alegres e contentes para a sala de projeção assistir a cenas de velório e sepultamento.

Uma contradição que se explica pela oportunidade de ver a homenagem de adeus a um dos maiores artistas plásticos do modernismo na lente de um cineasta genial.

Já no caso da minha amiga, os fatos confirmam o anacoluto lá em cima, pela desconcertante constatação de que, em determinadas circunstâncias, até que um desgosto cai bem.

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Uh, lá lá !

Paris é sempre bom. Melhor com céu azul e temperatura amena, como em meados de agosto, quando passei uma semana lá. Já fui a Paris com algum dinheiro, com muito pouco dinheiro, apaixonada e também curtindo a maior dor de cotovelo, mas nunca me diverti tanto quanto dessa última vez, graças a ele..., que é alegre, popular, tem consciência ecológica e ainda faz bem à saúde. Quer mais? Apesar de muito jovem é confiável, nunca deixa você na mão, funciona noite e dia e ainda leva a gente pra dançar. Sacou? É ele mesmo, o “Vélib”, sistema público de bicicletas de aluguel, de iniciativa privada, lançado há um ano pelo prefeito parisiense.
Quase tudo o que está aí em cima, você provavelmente já sabe; se não conferiu in loco, leu alguma das inúmeras reportagens veiculadas nos meios de comunicação de todo o mundo. E dizer que o “Vélib” leva a gente pra dançar, foi apenas um estratagema para atrair a sua atenção. A verdade, porém, é que, como o sistema público de aluguel de bicicleta leva o usuário vinte e quatro horas por dia a qualquer lugar dentro da cidade, leva também para as margens do Sena, onde, nas noites de verão, funcionam espaços de dança a céu aberto.
Nas três arenas construídas rentes ao rio, com arquibancada em forma de anfiteatro, a prefeitura promove bailes gratuitos de salsa, dança de salão e tango. O anfiteatro do tango é bem em frente ao ponto onde o Bateau Mouche faz a volta de 180 graus para retornar ao cais. Então, de repente, você está dançando e, entre um compasso e outro, leva um banho da água levantada pela manobra radical do barco de turistas. Aí, todos gritam “Uh, lá lá”. E Paris fica ainda mais Paris.
Mas o melhor da festa é ao final, pouco depois da meia-noite, quando a maioria dos freqüentadores monta em suas bicicletas e, numa alegria contagiante, vai embora pedalando pelas ruas da cidade. Pensei na hora como pegaria bem no Rio de Janeiro, onde é verão quase o ano inteiro, investir na possibilidade de substituir cada vez mais o carro pela bicicleta. E promover recreação gratuita em locais estratégicos a fim de incentivar o movimento noturno ao longo de toda a ciclovia.
É claro que existe a questão da segurança, que passa por um acordo entre governo estadual, poder judiciário e administração municipal, no sentido de depurar a polícia do Rio de Janeiro, pra começar. Por enquanto, é possível fortalecer o efetivo da Guarda Municipal e investir num código de conduta cidadã de respeito às leis que os próprios usuários de bicicleta divulgariam promovendo campanhas, maratonas e passeios coletivos. Além disso, a prefeitura poderia desenvolver um projeto para levar a ciclovia até a Central do Brasil e de lá adaptar uma linha de trem para uso exclusivo e permanente de ciclistas, atendendo a todo subúrbio carioca. Em Bogotá foi feito um esforço nesse sentido e hoje a cidade conta com 300 quilômetros de ciclovias, usadas principalmente por estudantes e trabalhadores.
Declarar guerra aos automóveis é tendência globalizada contra a poluição e o trânsito caótico das grandes cidades. Economizar fontes de energia hoje é questão, no mínimo, de boa educação. Governar para a maioria é uma imposição da atualidade. E como proporcionar diversão ao ar livre sempre foi vocação da Cidade Maravilhosa, não vejo porque perder a oportunidade nestas eleições de exigir que os candidatos a prefeito apresentem idéias e soluções para elevar a qualidade de vida da população e apurar o ar que o carioca respira. Assim, como os parisienses fazem agora, acabaríamos por recuperar nosso bom humor e, quem sabe, voltaríamos a saudar até os percalços da vida. Ou não é essa a nossa verdadeira índole?




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Uma correção: o Mar Morto está a 412m abaixo do nivel do mar.

Mar Morto

O Mar Morto povoou meu imaginário de criança desde os filmes bíblicos que via na televisão, nas tardes mornas de Semana Santa. Eram histórias impressionantes, cheias de malícia – talvez até impróprias para menores, se inseridas em contexto mais mundano – como as de Sodoma e Gomorra, cidades que teriam existido naquela região e desapareceram, punidas com a ira divina pela corrupção moral e perversão sexual de seus habitantes.

Assim, quando me convidaram para o Festival de Cinema Brasileiro em Israel, vibrei, acima de tudo, com a possibilidade de conhecer o mar da antiga Galiléia. Depois, fui correndo acessar o Google Earth para ver a exata localização do acidente geográfico na crosta do globo terrestre. E lá estava ele, um grande e misterioso retângulo negro encravado na divisa entre Israel e Jordânia. Cliquei na descrição técnica e li que o Mar Morto é na verdade um lago de 80 quilômetros de comprimento por 18 de largura, e fica a 280 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. É extremamente salgado ao ponto de matar instantaneamente peixes e outras formas de vida que chegam a ele pelo rio Jordão; daí o nome sinistro e o motivo de ninguém afundar nas águas que cobrem o ponto mais baixo do planeta Terra.

Mas, ao contrário do que possa parecer, a crueza das informações prévias não diminuiu o impacto de estar lá, em carne e osso, alguns dias depois. Ao vivo, a visão do Mar Morto correspondeu inteiramente às minhas expectativas infantis, ao revelar-se uma das paisagens mais bonitas que já vi; cercada de penhascos escarpados, mesclados em tons derivados do branquíssimo calcário ao vermelho do arenito, surge a imensa superfície lisa, rivalizando em azul com um céu pleno de luz e vazio de nuvens.

E para melhorar o que já estava bom, ali perto fica o Parque Nacional Qumran, uma antiga colônia essênia, onde foram encontrados, entre 1947 e 1956, os manuscritos do Mar Morto. Passeando pelas escavações arqueológicas, penetrando grutas e cavernas, onde pastores beduínos acharam os primeiros pergaminhos escondidos em jarras de barro por quase dois mil anos, minha fantasia de criança foi superada e, como não há interferência de civilização ao redor das escavações, acabei por fazer, em pleno deserto da Judéia, uma fantástica viagem no tempo, imaginando no cenário épico ações em Cinemascope.

Delírios turísticos à parte, o passeio acabou por despertar minha curiosidade sobre a descoberta fantástica, no Mar Morto, de cerca de 850 documentos, inclusive textos do Antigo Testamento. Pesquisando, aprendi que eles têm valor inestimável para os israelenses. Escritos em hebraico, entre o século II a.C. e o primeiro século da era cristã, os pergaminhos são praticamente os únicos documentos bíblicos judaicos existentes daquela época. E, além de explicar o contexto político e religioso do início do cristianismo, revelam a validade do esforço de um grupo de judeus para resgatar a língua de seus antepassados.

O “Great Isaiah Scroll”, o mais bem preservado e completo manuscrito bíblico do Mar Morto, está em exibição especial, neste verão, no Museu de Israel, pela primeira vez em 40 anos. “Nação não deve levantar a espada contra nação, e ninguém mais deve aprender a guerrear”, diz uma passagem do texto de 2.100 anos, que pode ser lido por gente comum que visita o “Santuário do Livro”, salão do museu onde os documentos estão expostos.

Dois séculos depois dessa mensagem de paz ser escrita, a história judaica se dispersou, os judeus foram para o exílio, e o hebraico deixou de ser falado nos mil e setecentos anos seguintes. Seu renascimento representa um dos maiores feitos do sionismo e foi capitaneado por Eliezer Bem-Yehuda, um lituano que emigrou para a Palestina em 1881. As escrituras clássicas continham palavras para conceitos como justiça, perdão, amor e ódio, mas foi Bem-Yehuda que começou a atualizar o hebraico, inventando palavras novas - como meias e escritório, por exemplo – colhidas de raízes bíblicas e padrão arcaico.

O projeto de reviver a língua da Torah despontou, então, rapidamente na Palestina e, em 1914, pioneiros sionistas tomaram a decisão de adotar somente o hebraico nas escolas judaicas. Quando o estado de Israel foi fundado, em 1948, uma geração inteira de israelenses já falava o hebraico como língua nativa.

Hoje, o moderno hebraico é a primeira língua de milhões de israelenses que entendem o valor inestimável da conexão lingüística com o passado para o sentimento de identidade nacional. Não é pouco, num país que vive em estado constante de insegurança quanto a sua sobrevivência.


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México Urgente

A tarde estava quente como tarde de verão. Apesar do vento seco que levantava a poeira nas ruas do centro da cidade, o clima era ameno entre as pessoas que formavam grupinhos para conversar, na esquina da Alfândega com a Primeiro de Março, enquanto aguardavam a última notícia do palestrante que estava quase quarenta minutos atrasado e, àquela altura, já teria chegado ao aeroporto Santos Dumont.
Do lado de dentro do prédio, no auditório da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, filmes de alunos eram projetados para uma platéia formada pelos poucos que resolveram esperar sentados pela chegada do escritor e roteirista Guillermo Arriaga. Entre eles, alunos e ex-alunos, cineastas, produtores, atores e atrizes.
Zanzando de um lado para o outro – empunhando o celular, e atenta para o movimento na entrada do lobby – só Irene Ferraz, a diretora da escola e responsável pelo evento; indispensável, em sua opinião, para a formação dos alunos de cinema. Porque Irene é assim, mais beneditina do que jesuíta, investe mais na formação do que na excelência. E por conta disso, está sempre empenhada em trazer para a escola tudo o que contribua para dilatar a sensibilidade dos alunos e estimular seu potencial artístico.
O roteirista de “21 gramas” chegou com uma hora de atraso, acompanhado pelo colega Marçal Aquino, mediador do debate. Depois das desculpas devidas e aceitas, o brasileiro fez a apresentação do colega mexicano e contou que Arriaga estava no Brasil para divulgar seu novo livro, O Esquadrão Guilhotina, editado pela Gryphus, a mesma de seus outros dois romances, O Búfalo da Noite e Um Doce Aroma de Morte.
Na conversa que se seguiu, o tema principal foi o novo trabalho de Arriaga como diretor de cinema (“The Burning Plain”, com Charlize Theron e Kim Basinger). Isso ensejou o papo sobre a relação, em Hollywood, entre diretores e produtores. Esses últimos, segundo Arriaga, sempre presentes em duas ocasiões: “a de ajudar o diretor a fazer um filme melhor e a de não deixar o diretor fazer uma besteira.”
Quanto à diferença entre o trabalho solitário do roteirista e a atividade no set de filmagem, ele disse que não há nada mais divertido do que dirigir um filme “com uma grande equipe, mais de 150 pessoas, e muitas mulheres bonitas”.
Quando perguntado até que ponto um diretor autoral é respeitado pela indústria cinematográfica norte-americana, o roteirista de “ Os Três Enterros de Melquiades” foi taxativo:
_ Tudo em Hollywood depende de como você se vende. Se você se vender como diretor autor, vão te comprar como tal e respeitar seu trabalho autoral.
Nessa altura, eu perguntei a Arriaga se era verdade que seu roteiro de “Amores Brutos” havia sido reescrito 27 vezes antes de ser filmado. Ele não só confirmou a informação como disse que costuma reescrever até 50 vezes uma página de roteiro, e confidenciou ao público ali presente que a primeira página do seu primeiro romance foi reescrita OITOCENTAS vezes.
Exagero ou não, o fato é que essa declaração valorizou ainda mais, em minha opinião, a pessoa e a literatura de Gullermo Arriaga; por ele declarar, dessa forma, que não se considera um “gênio da raça”, mas um dedicado operário da arte de escrever.
Ao fim do debate, bem impressionada, levei ao escritor meu exemplar de seu novo romance para ser autografado. Quando me vi frente a frente com o roteirista de “Babel”, contei-lhe da viagem maravilhosa que fiz à Cidade do México no ano passado e conversamos um pouco sobre as diferenças e semelhanças entre nossos dois países. Poucos minutos depois, despedi-me de Guillermo Arriaga ainda mais bem impressionada. Nem tanto pelo dedo de prosa agradável que ele me dedicara, quanto pela beleza singular de seus grandes olhos azuis.

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Sobre Jerusalém

Jerusalém é a Disneylândia dos místicos. Foi a idéia que me ocorreu quando estive pela primeira vez na capital israelense, no mês passado. Em apenas um quilômetro quadrado, cercado pelas muralhas milenares da Cidade Velha, as três religiões monoteístas disputam corações e mentes de fiéis de todo o mundo que chegam à Terra Santa para reverenciar a memória dos principais personagens ou visitar os lugares mais sagrados da Bíblia e do Alcorão.
Localizada nas montanhas da Judéia, entre o mar Mediterrâneo e o mar Morto, Jerusalém – atualmente sob a jurisdição de Israel – tem uma história que remonta a 1004 a.C., quando foi fundada pelo rei Davi – o rapaz franzino que enfrentou e venceu o gigante Golias e depois unificou e transformou em nação as 12 tribos dos hebreus. Desde então, a cidade sofreu invasões, destruições, êxodo e retorno do povo judeu. O Muro das Lamentações é uma relíquia dessa história. Foi o que restou do Templo de Salomão – incendiado pelos romanos nos primórdios da era cristã. Para os judeus ainda há que visitar o Monte Sião, onde está o túmulo de Davi; o Monte das Oliveiras, com um antigo cemitério judaico; e o Monte do Templo, lugar em que os ortodoxos se recusam a pisar para não profanar a sua santidade.
A romaria dos cristãos à antiga Jerusalém busca percorrer o caminho do Calvário que leva à igreja do Santo Sepulcro, erguida sobre o local onde Cristo ressuscitou depois de crucificado, morto e sepultado. No Monte das Oliveiras, Jesus se reunia com os apóstolos. O salão no qual foi realizada a última ceia está intato até hoje. E os devotos ainda podem rezar sobre o túmulo da Virgem.
Terceira cidade mais sagrada para os islâmicos, depois de Meca e Medina, Jerusalém é o lugar da mítica viagem noturna de Maomé e da sua ascensão ao céu. Ali está o Pátio das Mesquitas, com a mesquita de Al-Aqsa e o Templo de Omar, além da impressionante Cúpula do Rochedo – onde reina a pedra que teria dado origem ao planeta.
Com tal concentração de monumentos e sobreposição de espaços sagrados para o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, fica difícil, mesmo para o melhor guia, evitar que o turista sem muito conhecimento das três religiões acabe por fazer na cabeça um samba do crioulo doido. Melhor seria que a cidade fosse explicada por camadas históricas em ordem cronológica, sem privilegiar uma ou outra crença. Como isso não acontece, o sucesso da visita a Jerusalém vai depender da afinidade entre a religião do grupo e do guia escolhido. Se não, o passeio vira uma batalha ideológica, com cada qual puxando a brasa para a sua sardinha. Mais ou menos o que tem acontecido na Cidade Velha, no decorrer do tempo, principalmente nos campos santos para os cristãos, onde diferentes ordens da Igreja Católica, como a dos franciscanos e beneditinos, construíram templos e capelas em lugares contíguos ou quase sobrepostos e que ainda têm que disputar o espaço exíguo com católicos ortodoxos.
Para mim, talvez fosse melhor ver os lugares santos preservados, sem a intervenção da Igreja, exatamente como aparecem nos filmes bíblicos de Cecil B. DeMille. Mas para a maioria das pessoas é diferente; elas se emocionam a cada metro quadrado, dispostas a verterem lágrimas sobressalentes quando uma simples coincidência torna a experiência de estar na Terra Santa algo quase sobrenatural.
Foi o que aconteceu com o nosso grupo que, atrasado, acabou por ficar preso na Igreja do Santo Sepulcro, exatamente às seis da tarde, quando os franciscanos vêm em procissão, de vela na mão, para a missa da Ave Maria. Neste momento as portas do templo se fecham, cai uma forte penumbra, e ninguém entra nem sai. Foi quando começou a tocar um órgão magnífico... Exaustos, decidimos nos sentar no chão e ali ficamos por um longo tempo, mergulhados em misticismo, afogados de emoção.

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Matéria da Gazeta Mercantil

A pedido dos que não conseguiram acessar as páginas do Caderno de Cultura da Gazeta Mercantil da última sexta-feira, vai aí a matéria publicada:


Haifa - A abertura da oitava edição do Festival de Cinema Brasileiro em Israel foi animada por um conjunto de bossa nova. O público que compareceu à Cinemateca de Tel Aviv comprou ingressos com antecedência e teve direito ao coquetel de abertura do evento, regado a caipirinha e guaraná de exportação gelado. Cinéfilos mais desinibidos chegaram a tentar alguns passos desengonçados de samba, minutos antes de ocupar os 700 lugares da sala de projeção para assistir ao filme “Tropa de Elite”. Muitos já tinham visto o trailer que apresenta o Rio de Janeiro como “a cidade mais violenta do mundo”, mas isso não diminuiu o impacto da estréia do longa-metragem de José Padilha que aqui, como em outros países onde foi exibido, dividiu opiniões. Ao final da sessão, metade da platéia aplaudia com entusiasmo a produção sobre a violenta atuação do BOPE no combate ao tráfico de drogas nas favelas cariocas, enquanto a outra parte demonstrava certa contrariedade. Yael Goren, de 22 anos, que acaba de dar baixa do serviço militar, foi à sessão com a mãe, Nimra Goren, advogada de 55 anos. Elas sabiam que o filme era violento, mas não esperavam que fosse tanto e disseram ter tido dificuldade de ficar até o final da projeção. Na saída da cinemateca, Yael declarava uma antiga vontade de conhecer o Brasil, porém, ao contrário de Israel, não acredita que se sentiria segura num lugar onde a polícia atua com tamanha truculência:
_ Aqui é diferente. Muitas vezes eu ando de ônibus ao lado de um soldado com a metralhadora encostada na minha perna, mas sei que ele é muito bem treinado e só usaria a arma para me defender.
Já Heror Cohen, estudante de cinema na Universidade de Tel Aviv, gostou do filme e fez um paralelo entre a situação do Rio de Janeiro atual e o holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial:
_ Ainda é muito forte entre nós a memória de uma época, como a dos meus avós que morreram na Alemanha entre 1944 e 1945, em que a vida humana não valia nada, assim como acontece hoje com vocês.
“Tropa de Elite” também foi selecionado para abrir o festival na Cinemateca de Jerusalém, um belo prédio com quatro salas de projeção e um acervo de mais de 35 mil títulos, que vão desde as raridades dos primeiros registros de imagens em movimento do final do século XIX até os dias de hoje, cobrindo inclusive toda a história do jornalismo no século XX. O coquetel de abertura aconteceu nos jardins da cinemateca, de frente para a muralha da cidade velha, para um público mais formal que o de Tel Aviv, com menos jovens na platéia. Mesmo assim, muitos permaneceram em seus lugares depois da projeção, decididos a participar do debate com o ator André Ramiro, o tenente Matias do filme.
De tudo o que viram na tela, o que mais impressionou aos israelenses parece ter sido o fato de policiais envolvidos em corrupção e abuso de poder não ser devidamente punidos. Outros quiseram saber se no Rio de Janeiro existe um monumento para as vítimas da violência. Os brasileiros, em maioria na platéia do debate, mostravam-se indignados com a divulgação negativa que filmes com mesma temática de “Tropa de Elite” fazem do Brasil no exterior. Muitos chegaram a criticaram o apoio da embaixada brasileira ao festival.
Ao final do debate, na saída da cinemateca, ainda havia gente disposta a continuar discutindo o filme. Numa roda de amigos, Netanel, empresário de 28 anos, que não quis revelar o sobrenome, dizia ver os traficantes como terroristas que precisam ser eliminados da sociedade. Para ele, é inevitável que haja vítimas inocentes nesse tipo de guerra:
__Quando eu atuava no Exército de Israel, no combate ao terrorismo, ficava muito impressionado. Algumas vezes via o rosto de um jovem inocente morto no conflito por dois meses. Mas, você acha que podemos deixar os terroristas agirem livremente?
A pergunta pairou por alguns segundos no ar, até que o próprio Netanel continuou, desta vez contando que a coisa que mais lhe impressiona é saber que, apesar de tudo, o Brasil é um lugar de pessoas felizes. Ele disse se lembrar da dança de Ronaldinho Gaúcho para comemorar os gols no Barcelona e terminou levantando outra questão difícil de responder:
_ Como essas pessoas podem viver tão contentes rodeadas de tanta pobreza e violência? Como essas duas coisas podem vir juntas?
Em Haifa, a reação ao longa-metragem de José Padilha não foi muito diferente das outras cidades israelenses que abrigam o festival. Aqui, a platéia também ficou dividida e as questões discutidas ao final da projeção refletiam a oposição ideológica entre conservadores e progressistas na associação direta que fazem entre a luta contra os terroristas em Israel e os traficantes de drogas no Brasil. Enquanto os primeiros reiteravam o apoio à ferocidade das forças de segurança israelenses como fato inevitável do conflito com os palestinos, os outros criticavam a violência e os excessos cometidos em nome do combate ao terrorismo. Mas houve quem propusesse uma reflexão diferente. O filósofo Alon Ronit, de 60 anos, criticou o filme por supervalorizar as cenas de ação e negligenciar a condição existencial dos protagonistas:
_ O filme fica muito voltado para as coisas que acontecem do lado de fora e deixa de contar as transformações internas dos personagens, muito mais importantes para o bem-estar do homem a evolução do sentimento de humanidad

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Ainda Tel Aviv 2

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Faltou contar que o hotel onde nos hospedamos foi o primeiro cinema de Tel Aviv, construído nos anos 30, na melhor tradição do estilo Bauhaus. O prédio foi recentemente restaurado para se transformar num charmoso hotel-butique, mas como é histórico e tombado guardou as características originais, principalmente a fachada. Também foi mantida a bonita escadaria original, com desenhos geométricos em preto e branco, os lustres e arandelas de bronze e cristal, os cartazes de filmes antigos, e até mesmo (parece coisa de Woody Allen) algumas poltronas de madeira da sala de projeção com o “histórico” chiclete grudado. Além disso, vira e mexe, ao transitar pelas dependências do hotel, o hóspede se depara com uma velha câmera de cinema apontada em sua direção. A atmosfera única criada com toda a ambientação do lugar, mais o posicionamento estratégico dessas verdadeiras relíquias cinematográficas, acaba por tornar desnecessário o alerta:
Sorria, você está sendo filmado!

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Ainda Tel Aviv

Tel Aviv tem aproximadamente trezentos e setenta mil moradores, em grande parte jovens da segunda geração de israelenses, além da moçada que vem de todo o mundo para aperfeiçoar aqui o hebraico, ajudar na construção do país, ou mesmo – os de origem mais ideológica – alistar-se no serviço militar.
A cidade nasceu no início do século passado a partir da criação do sionismo; o movimento de caráter nacionalista que instou o povo judeu a construir uma pátria na região onde viveram seus ancestrais. Portanto, a Tel Aviv já existia quando foi fundado o Estado de Israel, em 1948, e guarda características da arquitetura modernista da primeira metade do século vinte. O bairro Branco é reminiscente dessa época. Ele é cortado pelo belíssimo bulevar Rothchild, com um largo canteiro central ornamentado de tamareiras e flamboaiãns, ladeado em toda a sua extensão por prédios de até quatro andares – todos brancos – construídos no mais puro estilo Bauhaus. Muitos dos prédios estão em obras de restauração, pois a região vem passando por um processo de revitalização dede que há mais ou menos uma década foi descoberta e invadida pelos artistas seguidos de gente rica e sofisticada, agora disposta a pagar uma nota preta para morar ali. Com a valorização imobiliária vieram os investimentos em lazer e serviços que transformaram a região no mais transada da cidade. Com quiosques chiquérrimos espelhados pelos canteiros centrais do bulevar, bares e restaurantes cheios de bossa e até champanheria. E tudo na maior descontração, com muita gente relax, conversando e bebendo pelas calçadas à noite e de dia, sentada com seus laptops nos inúmeros cafés que além de ar-condicionado, oferecem wi-fi de livre acesso para os fregueses. Pra mim, é um lugar próximo do paraíso (lembrando que a praia é logo ali).
Nosso hotel fica mais ao centro, numa área que deveria ser ainda mais valorizada, dada a proximidade com a orla de areia alva e o azul místico do Mediterrâneo. No entanto o que se vê no caminho até a praia são prédios de poucos andares em péssimo estado de conservação. À noite, durante jantar com o embaixador do Brasil em Israel, Pedro Coelho, comentei com sua esposa e secretária cultural da embaixada, Moira Coelho, o quanto aquele fato me intrigara. Ainda mais sendo esta a região dos melhores hotéis na cidade, como o Renaiscence e o Shaeraton. Moira, uma adorável carioca disposta a fazer com que a delegação brasileira tivesse a melhor acolhida em sua estada em Israel, prontamente me contou que, no início do sionismo, famílias judias da Europa compravam em quantidade pequenos terrenos nesta região para ter “pedacinhos da Terra Prometida.” Aconteceu que o Holocausto da Segunda Guerra Mundial acabou por dispersar esses proprietários e seus descendentes, os quais nunca apareceram para reclamar seu legado e dificilmente são encontrados agora pelos advogados especializados e empenhados em promover transações imobiliárias em Tel Aviv. Portanto, a maioria desses prédios é habitada por quem não tem interesse econômico no imóvel. Por um lado é uma pena, pois a região poderia ser muito mais bem conservada aproveitando o seu charme natural. Por outro, freou a especulação imobiliária que tiraria, principalmente, da avenida beira-mar a aparência adorável de uma Copacabana dos anos 50.

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Tamareiras

Tel Aviv - A viagem do Brasil para Israel é uma estirada e tanto. São mais de 24 horas, se contarmos do momento em que se chega ao Galeão até a hora do desembarque no Aeroporto Internacional de Tel Aviv, que por sinal é amplo e tem uma bela arquitetura moderna de máximo aproveitamento da luz solar. Cansadíssimos e resignados com a rigorosa revista que nos aguardava na imigração, fomos surpreendidos pelo trâmite sem demora e sem ostentação de forças de segurança nas áreas onde os passageiros transitam. O funcionário do Itamaraty que foi nos receber no início do desembarque me disse que, além dos cuidados da organização do festival para que não tivéssemos o menor transtorno em nossa chegada, o serviço de segurança israelense tem investido mais na estratégia de inteligência do que na de ação ostensiva. Assim, ainda segundo ele, agentes disfarçados se juntariam aos passageiros já na saída do avião, e seguiriam com eles, investigando qualquer atitude suspeita que imediatamente seria repassada para a segurança do aeroporto tomar as atitudes de praxe nesses casos, como a revista rigorosa e até a detenção para averiguação. Imagino que nossa bagagem também tenha passado por raio X, mas nenhum de nós quis saber mais desse assunto no caminho do aeroporto para o centro da cidade, banhado da luz dourada do entardecer e cercado em todo o trajeto pelas típicas tamareiras do oriente.

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