Festival do Rio

Mesmo atrasada, vou falar dos filmes que assisti no Festival do Rio, que começou na última semana de setembro e terminou na semana passada. O atraso se deve a um evento muito triste que menciono apenas para dividir com vocês – queridos leitores deste blog e grandes incentivadores da minha escritura – um pouco da dor imensa que sinto. Meu pai, que caíra doente no meio do ano, morreu no início de outubro, deixando no meu coração um enorme vazio da sua figura heróica*, seu espírito alegre, sua índole companheira e seu coração amoroso...

Alguém me disse, durante as cerimônias fúnebres, que “a vida continua...” É um tremendo lugar comum; mas é a pura verdade. Então, entre um gole de vinho e um soluço de saudade, levo-os de volta ao Festival do Rio.

Sobre o filme de Bruno Barreto, “Última parada 174”, que abriu a mostra, já falei na postagem anterior. O encerramento foi com “Um homem bom”, de Vicente Amorim, diretor do ótimo 2000 Nordestes (2001) e “O caminho das nuvens” (2003). Vicente é filho do ministro das relações exteriores Celso Amorim, o que garantiu a presença na platéia do Odeon de autoridades e personalidades ligadas à cultura nacional. Presente também o ator Viggo Mortensen, protagonista do filme, que conta mais uma história de holocausto. Mas conta bem, pela narrativa atraente, qualidade técnica e sensibilidade, a história de um professor universitário que inadvertidamente passa a colaborar com o nazismo, aceita as benesses do regime e só percebe seu grande equívoco quando seu maior amigo, um psicanalista judeu, começa a ser perseguido. No fundo, é uma discussão sobre livre-arbítrio; tal como o filme de Barreto, que abriu o festival.

Na mostra Panorama do Cinema Mundial, teve o divertidíssimo thriller português “Call Girl”, de António-Pedro Vasconcelos. A trama gira em torno da contratação de uma garota de programa para seduzir o político que pode facilitar a vida de uma empreiteira que, por sua vez, quer construir um empreendimento turístico no imenso bosque de uma cidade do interior. A trama é bem engendrada e muito bem contada, os atores são extraordinários e a protagonista é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. E trabalha direitinho a danada da Soraia Chaves, apesar de seu talento competir o tempo todo com seu corpo deslumbrante, em cenas bastante eróticas, mas nunca deselegantes. Porém, o melhor de Call Girl é mesmo o roteiro, o qual surpreende o tempo todo pelas tiradas mais óbvias possíveis. E aí eu passei a entender melhor a sutileza do humor português. Imperdível!

Outro filme imperdível da mostra Panorama é “Valsa para Bashir”, de Ari Folman. A animação de longa-metragem feita em co-produção de Israel, França e Alemanha, parte de um encontro num bar de Tel Aviv entre o diretor do filme e um velho amigo que lhe conta um sonho recorrente, no qual é perseguido por 26 cães raivosos. Veteranos da Guerra do Líbano, nos anos 80, eles concluem que o sonho está ligado à experiência deles no exército israelense. Como não consegue se lembrar desse período, Ari procura outros companheiros de armas para tentar resgatar sua memória, e acaba por descobrir a verdade do terrível massacre de Sabra e Shatilla (campo de refugiados palestinos no Líbano).

Tudo isso é contado numa técnica de animação que nos remete ao melhor do cinema noir. Ótimos diálogos e texto e subtexto que não subestimam a inteligência do espectador. Como eu disse acima, é um filme imperdível. Para quem se interessa por política internacional, ou não.

Entre os documentários da mostra competitiva vale destacar “Palavra (En)cantada”, de Helena Solberg, que propõe uma reflexão sobre a relação entre poesia, literatura e música popular no Brasil. Para tanto, a diretora alterna depoimentos com números musicais e faz dessa costura o fio condutor da narrativa do seu longa-metragem. Como não podia deixar de ser, Chico Buarque é a melhor figura em campo. Mas tem também a participação, entre outros, Adriana Calcanhoto, Maria Bethania, Martinho da Vila, Arnaldo Antunes e Lirinha. No entanto, são os depoimentos de Lenine e Tom Zé que traçam as melhores considerações sobre o tema. Enfim, “Palavra (Em)cantada é um belo trabalho de investigação da alma brasileira que tem na cultura oral e musical sua âncora de identidade.

Apesar de ter assistido aos dois filmes de Ficção mais festejados pela mídia (com certeza, por serem dirigidos por atores globais), não vou comentar “Feliz Natal” , de Selton Mello; nem “A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergaele. Digo apenas que como diretores, os dois são ótimos atores.

E, por último, chamo atenção para o filme de David França Mendes, o melhor da Mostra Hors-Concours. Para este seu primeiro longa-metragem de ficção, David – que fez dobradinha de sucesso com Vicente Amorim em “2000 Nordestes” e “O Caminho das Nuvens” – escolheu se basear no livro de Sérgio Sant’Anna, “Um Romance de Geração”. E fez uma obra que lembra muito “Ricardo III”, de All Pacino. Ou seja, construiu sua narrativa a partir da leitura e ensaios da peça. A diferença está na escalação de três atrizes para o papel feminino. E aí reside o único defeito do filme: o espectador tem que agüentar ver algumas das cenas repetidas com cada uma delas. É dose. Acontece que o texto é muito bom e a presença do sempre brilhante Sérgio Sant’Anna no elenco valoriza a discussão sobre a relação entre Carlos Santeiro (Isaak Bernat), o escritor que não escreve, e a jornalista que chega no início da peça para entrevistá-lo (Nina Morena, Suzana Ribeiro e Lorena Da Silva). Todos estão ótimos em seus papéis, mas Isaak tem uma atuação notável. Mas quem levou o troféu Redentor de melhor ator do Festival do Rio foi Daniel de Oliveira, por seu trabalho em " A Festa da Menina Morta". Um grande equívoco, pois Oliveira faz uma caricatura demasiado estriônica do seu personagem. E compõe um homosexual que não fala, mas berra; não tem subjetividade, apenas trejeitos. Quem se lembra da interpretação de William Hurt no papel de Molina, no "Beijo da Mulher Aranha", sabe do que estou falando.


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* Meu pai, Luiz Gonzaga Moura, foi herói da Segunda Guerra Mundial. Ferido duas vezes em combate, era o comandante do Batalhão de Reconhecimento do Regimento Sampaio. Major da Força Expedicionária Brasileira, na campanha da Itália, foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul.
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