Um caso triste de desperdício

Assisti ontem ao filme Ó pai, ó em sua estréia do Canal Brasil, que vem ganhando audiência qualificada e se transformando em mais uma possibilidade de exibição para o cinema nacional. As estréias são sempre às segundas-feiras, às vinte e duas horas e, na primeira semana, a sessão do filme é seguida por seu making off. Mais uma oportunidade para assistir e ainda conhecer os bastidores de filmes brasileiros que ficaram muito pouco tempo em cartaz apesar de incontestavelmente bons. Não é o caso da película programada para esta semana. Ó pai, ó é um filme menor que não consegue dizer a que veio, principalmente por partir de um roteiro esquizofrênico no gênero: não sabe se é comédia ou dramalhão. E acaba se transformando em pastiche do que pretendia ser, se é que alguém consegue saber as intenções do filme e a premissa da história.
É sabido que os personagens de comédia são planos; não têm profundidade psicológica ou nuances de personalidade. Isto porque na comédia o que interessa é o momento da ação, que cresce em apelo na medida em que o tempo (timing) é usado em benefício do efeito cômico. Porém, a direção de Monique Gardemberg não consegue impor ao elenco as pausas necessárias ao bom ritmo do gênero, apesar de contar com um grupo homogêneo, ensaiadíssimo e com vocação para compor tipos, que ao final só consegue arremedar estereótipos e recitar suas falas.
O pior acontece ao protagonista Lázaro Ramos, por estar mais exposto à ruindade do texto. Na verdade, ele não tem como compor o personagem, não por falta de recursos técnicos e de talento que isso já provou possuir. Mas porque seu personagem sofre a ausência total de contorno, desperdiçando as possibilidades do ator que acaba apresentado no filme como uma figura inexplicavelmente “exótica”.
Os outros personagens de destaque na trama, como os interpretados por Dira Paes e Wagner Moura, são da mesma forma mal delineados num roteiro sem pé nem cabeça que ainda por cima tem um clímax inverossímil e esdrúxulo de drama social.
De resto, escapa ao filme - que tem como pano de fundo o carnaval da Bahia e como cenário, o Pelourinho - a possibilidade de envolver e transportar o espectador para a atmosfera mágica da cidade de Salvador, o que seria um atenuante para o desperdício maior dessa produção que é jogar dinheiro fora.

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Cinema Verdade e Paixão

A TV Brasil está de parabéns pela exibição da série Sertão Glauber. São documentários de uma hora, assinados pela filha de Glauber, Paloma Rocha e seu marido, Joel Pizzini; e vão ao ar à meia noite de terça à quinta feira. Só ontem (infelizmente) comecei a assistir ao programa que entrou na segunda semana em cartaz e que traz depoimentos de gente que trabalhou com o diretor e comenta seu processo de criação e realização, revelando inclusive as intenções de Glauber ao construir planos e seqüências considerados como momentos mágicos da história do cinema. O episódio dessa terça-feira foi sobre encenação, cenários e figurinos de O Dragão da Maldade, comentados por Hélio Eichbauer, Paulo Lima, Jânio de Freitas e José Celso Martinez Correa, entre outros. Eles contam como e porque cores, materiais, objetos de cena foram escolhidos e falam da conjuntura política que engendrou essas escolhas e que fazem do filme uma obra tropicalista por excelência.

A segunda parte do programa traz trechos de uma entrevista exclusiva com Martin Scorsese, que em 1991 comprou os diretos para recuperação e produção de cópias em 35 mm de Deus e o Diabo, Terra em Transe e O Dragão da Maldade. Nela, o diretor ítalo-americano conta que assistir a “Antônio das Mortes”, título internacional de O Dragão, foi uma experiência importantíssima para ele que nunca tinha visto uma combinação tão poderosa de estilos numa obra que consegue sobrepujar a política com verdade e paixão. Scorcese conta também que projetou o filme para o elenco e diretores de fotografia de Gangues de Nova York e Os Infiltrados como exemplo de integração de todos os elementos do filme em favor do desejo do realizador. Para ele, um cinema como o de Glauber deve ser mostrado aos atores que têm o desejo de fazer algo mais do que tomar parte do “star system” – um famigerado devorador de talentos –, como forma de forçá-los a desenvolver sua intuição. Reiteradas vezes na entrevista Marin Scorcese declara que a obra de Glauber Rocha é uma referência para ele.

Bem, por tudo isso, Sertão Glauber nos possibilita um mergulho ainda mais profundo e saboroso no universo glauberiano, além de constituir informação e entretenimento de qualidade para quem gosta, não só de cinema, mas de arte e cultura em geral. Mas a grande relevância do programa é oferecer parâmetros para que o espectador rejeite as tentativas de fazer do cinema brasileiro um arremedo de cinematografias forasteiras, que podem ser muito boas no original, porém não devem se impor num país que tem uma tradição de cinema como esse nível de poesia, invenção e vigor estético.


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Sapatilha nova nos pés

O tio piscou pra mim, depois veio ao meu encontro, pegou a minha mão e, juntos, atravessamos o salão até a porta do apartamento, deixando para trás a família reunida. Os adultos, entretidos em conversas animadas por fartas dozes de uísque com gelo ou guaraná, discutiam, exaltados, um mundo de soluções para tirar o país da crise. Os meninos se esgueiravam por entre os mais velhos para alcançar nas mesinhas, repletas de copos suados e cinzeiros entulhados, as tigelinhas de amendoim, munição por excelência para os ataques, primeiro entre eles e em seguida contra as meninas. Elas disputavam com certo recato o melhore lugar na janela que dava para a praia de Copacabana. Do décimo segundo andar, viam lá embaixo a Praça do Lido coalhada de gente. Todos pareciam esperar um grande acontecimento.
E a nossa escapulida ninguém nunca percebeu. De mãos dadas, cruzamos o hall do elevador na direção da escada. Subimos lado a lado, minha cabeça na altura da perna do tio. Presa ao cinto, a bolsinha de couro marrom que ele abriu num clique, tirou dali os óculos escuros e colocou-os no rosto sem largar a minha mão. Coisa estranha, pensei.
No fim da escada, o céu. A luz sobressalente inundou meus olhos. Aos poucos me dei conta do espaço ao meu redor. Antenas de televisão por toda a parte, as máquina dos elevadores, o pára-raios e muitos, muitos pombos no chão, nos telhadinhos, na fiação, nas menores reentrâncias do terraço do edifício. De tudo eu queria saber, e a tudo o tio respondia com paciência de tio. Os pombos eu já conhecia, só quis saber por que tantos e nunca mais quis saber de pombos. O tio levantou a voz e, parecendo zangado, disse que eram bichos imundos, verdadeiros ratos voadores que, infestados de piolhos, levavam doença para onde quer que fossem. “Uma praga”, repetia brandindo uma das mãos, com a outra me puxou pra mais perto dele.
De mãos dadas cruzamos o terraço em direção ao grupo de pessoas que observava preparativos de evidente importância. De novo, um brilho intenso ofuscou minha visão. Apertei os olhos para ver melhor a enorme motocicleta refletindo na superfície cromada as múltiplas cores do dia. Entendi que um grande espetáculo iria mesmo acontecer, mas tudo me parecia meio fora do lugar. O tio percebendo meu embaraço de pronto me levou ao colo e, do parapeito, apontou para o cabo de aço esticado dali até o terraço de outro edifício, do outro lado da praça. Vi, então, o enorme vão entre os dois prédios, riscado no ar, o caminho da morte. Abracei forte o pescoço do tio. No chão, ele pegou a minha mão e não largou mais. Todos falavam muito, falavam alto e ao mesmo tempo quando chegou o moço de botas de couro e calça justa. Vestia camisa branca de mangas largas bufantes. Era magro e menor que o tio. Na testa, o topete lustroso.
Atrás dele veio a moça de maiô vermelho brilhante, sapatilha nova nos pés. O cabelo negro puxado para o alto era preso num rabo de cavalo que descia desenhando-lhe nas costas brancas um longo ponto de interrogação. Na mão direita, a sombrinha. No rosto, estampado o pavor. Parecia muito frágil, com um tremor percorrendo todo o seu corpo, como se vibrasse apenas com a brisa vinda do mar. Os dois falavam baixinho, como marido e mulher. Calaram. E tudo se calou. Da praça, o alto-falante anunciava o espetáculo. Ele montou primeiro e fez roncar o motor. Ela, em pé na garupa, levou entre as pestanas grossas uma lágrima equilibrista. Minha garganta doeu. Quis saber tantas coisas, mas não soube perguntar. Apertei a mão do tio.

Extrema delicadeza

Foi bonita a pré-estréia de Atabaque Nzinga, ontem, no território livre da Lapa, para uma platéia que em sua maioria mostrava na cor da pele a ancestralidade africana, despertada também no espírito da minoria branca na medida em que teve os sentidos seqüestrados pelo ritmo, pela música e a dança que ambientam a narrativa. Digo ambientam porque, apesar de Octávio Bezerra ter filmado em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro (além das imagens de arquivo da África), a ação se passa nesse espaço mítico, onde estão cravadas as raízes da cultura negra no Brasil, o verdadeiro umwelt do filme.
E quem nos guia nessa aventura sensorial é a batuta do mestre Naná Vasconcelos, um gênio da percussão e diretor musical da produção na qual se apresentam ainda o talento de Paulo Moura, Carmem Costa, Nelson Sargento, Lia de Itamaracá, Noca da Portela, Carlinhos 7 Cordas, e as performances contagiantes do Afoxé Ilê Aiê, Maracatu Estrela Brilhante, Balé da Cultura Negra do Recife, Neguinho do Côco e Jongo da Serrinha entre muitos outros nomes não menos importantes. São eles que tecem a trama por onde se embrenha a protagonista Ana (Tais Araújo). Com a bênção da Rainha Nzinga, que reinou na Angola do século XVI, a jovem, recolhida ainda menina num centro de Candomblé, empreende uma viagem em busca da sua identidade. Tal qual a Dorothy na ventura pelo mundo de Oz, acompanhamos Ana através do imaginário afro-brasileiro, compartilhando suas dúvidas, sonhos e desejos com os sete buracos da nossa cabeça. E com ela chegamos ao clímax de extrema delicadeza da história que começa em Angola e tem seu desfecho no Rio de Janeiro.
Ao final da projeção, num telão em baixo dos Arcos, havia menos gente do que no início da festa, quando o grupo de dança afro “Corpo e Ritmo” se apresentou, e agradou em cheio a audiência, levando as crianças a dançar no centro da praça, até altas horas, imitando os passos e a ginga dos bailarinos. Mas agora era possível sentir ainda melhor o quanto espetáculos de afirmação da cultura brasileira são bem-vindos para o verdadeiro grande público, ali presente em amostragem social. Além dos muitos meninos de rua que assistiram atentos todo o tempo do espetáculo – com um comportamento exemplar, diga-se de passagem –, havia os jovens boêmios freqüentadores da Lapa, os casais de mais idade vindos dos bairros adjacentes, os muitos casais com filhos pequenos, e até os mendigos fizeram a sua torcida organizada.
Para mim, o evento de ontem foi um bom exemplo de que, ao contrário do que pensa a grande mídia, a maioria do público brasileiro quer assistir aquilo que lhe diz respeito, de forma afirmativa e original. E foi justamente isso que Atabaque Nzinga mostrou com um filme que não apenas fala a nossa língua, mas, sobretudo, pesa na nossa língua, o português do Brasil.