Pirata de Confiança

A odalisca cruzou o terraço em minha direção. Meneava os quadris em ondas sucessivas, redesenhando no ar as calçadas de Copacabana. Era uma visão das mil e uma noites com os cabelos negros e soltos sobre os ombros de cetim, seios fartos e ondulantes como as dunas do Saara e o umbigo tão perfeitamente redondo no centro do ventre carnudo que um paraíso com trezentas virgens não valeria mais do que um giro pelo salão atracado àquelas ancas.

Chegou mais perto e pregou os olhos nos meus. Agora vinha devagarzinho, marcando com o andar a cadência da marcha-rancho amplificada. Levantei-me num pulo e me precipitaria em sua direção não fosse o sorriso meia lua e a ponta da unha vermelha indicando o seu lugar ao lado do xeique árabe, meu patrão. Afastei o corpo e abri espaço às fantasias proibidas. Não o bastante, nem o prudente, pois a odalisca riscou com o sutiã rebordado em pedrarias meu peito aberto de pirata.

Aluguei a fantasia em cima da hora, como foi o convite para a mesa da presidência. Planejara passar o feriado em brancas nuvens, nos braços da Nercília, minha doce namorada. Mas o Matias, diretor financeiro, proibiu-me a desfeita. E para completar, encheu-me os miolos de cobiça, descrevendo toda a pompa e circunstância dos salões do Copacabana Pálace em baile de carnaval. Lindas mulheres brancas, negras e eurasianas, com muito brilho e pouca roupa; orquestras se revezando no palco; bateria de escola de samba e champanhe de chafariz. Inventei uma desculpa pra Nercília.

Agora estava metido naquela sinuca de bico, ao lado do patrão e de frente pra odalisca de os olhos enviesados na minha direção, enquanto cochichava em francês com a melindrosa ao seu lado. O idioma eu conhecia das aulas no Pedro II, não dava para ouvir tudo, mas com certeza falavam de mim. E o xeique de araque, baforando um charuto na minha cara, contava conquistas extraordinárias no setor empresarial. Eu tentava mostrar inteligência, a despeito da bateria martelando no meu cérebro em linha direta com o meu coração. Salvou-me a volta da orquestra atacando um pot-pourri de marchinhas. Foi ouvir Linda Morena pra odalisca implorar ao marido que a levasse pra dançar. Sobrou pra mim, pirata de confiança.

Deixamos a mesa afetando indiferença, cruzamos o terraço com prudência calculada, entramos no Goldem Room com as mãos entrelaçadas, mergulhamos no salão trocando beijos de refrão. A odalisca nos guiava por entre os foliões eufóricos, ninguém nos conhecia, nem reconheceria a própria sogra; todos cegos para com as convenções. Fomos para o tapume atrás da orquestra e ali fizemos amor do jeito que amor é feito em noite de carnaval. Voltamos ao salão como dois colegiais, cantando sem resguardo um clássico samba-enredo.

Entorpecido de prazer, fui levado pelas mãos da odalisca de volta ao terraço, onde tudo começou. Tentei ainda prolongar a fantasia, pedindo um beijo que ela, intransigente, negou. O número do telefone? Coisa fora de questão. Marcar um encontro, quem sabe? Nem pensar na ousadia. Soltou minha mão anunciando o fim da brincadeira. Negava amor ao pirata? Tanto quanto ao marinheiro, no carnaval que passou.

Voltei pro Engenho de Dentro com cara de palhaço. Na Presidente Vargas, já vinham as primeiras pastoras arrastando as anáguas fartas com sutil dignidade. Na Praça Onze, flanavam clóvis equívocos tentando surpreender transeuntes com a alegria desengrenada dos que chegam muito cedo ou então já voltam bem tarde. Na altura de Vila Isabel, cruzei integrantes da Escola cantando a vitória antecipada das cores azul e branco, as mesmas da manhã que então se anunciava.

Passei pelo portão rezando pro cachorro não fazer alarde. Encontrei meu prato feito na mesa bem arrumada. Comi com gosto o repasto fazendo carinho no gato. Fui me deitar sem descobrir a gaiola dos passarinhos. Abri a porta do quarto com cuidado redobrado e me enfiei na cama quente do corpo de Nercília. A namorada se remexeu, resmungando um óbvio inaudível. Puxei-a pra mais perto, envolvi-a num abraço e encostei o meu nariz no seu dorso perfumado. O costume se sobrepôs ao avançado das horas, pois Nercília se aninhou no meu corpo com a insuspeitada cordialidade dos dois pezinhos colados.

Acordei com o café fumegando tranqüilidade. Arrisquei um bom dia, mesmo já sendo de tarde. Nercília abaixou o jornal e lançou-me um olhar indecifrável. Perguntei sobre as notícias, puxando assunto genérico. Bailes, desfiles e blocos, quase tudo o mesmo de sempre, mas o horóscopo, este sim, trazia grandes novidades. Fiz-me de interessado, sabendo que a moça considerava o assunto da maior seriedade. Dizia a astróloga, de prestígio na cidade, que para os nossos signos a fantasia ideal era a de marido, de esposa ou de casal. Marquei a data do matrimônio.

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Viver a vida em paz

“ Necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais...” , canta o urso Balu, no adorável “Mogli, o menino lobo”, longa metragem de animação produzido pela Disney, em 1967. Baseado no “Livro da Selva”, de Rudyard Kipling, o filme conta as aventuras de um menino criado por lobos em sua jornada rumo à civilização. A canção, na qual o urso bonachão procura transmitir sua filosofia de vida para tentar ajudar Mogli a sobreviver na selva, reflete, de certa forma, o ideário dos movimentos alternativos do início da década de 60, que pregavam a revisão dos valores constituídos e denunciavam a existência vazia numa sociedade movida pelo desejo de consumir.

Foi o tempo das grandes transformações de comportamento, do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e homossexuais, que lançaram sobre a Terra a ideologia do Paz e Amor. Pena que uma semente assim delicada não tenha encontrado terreno fértil para se desenvolver. Ao contrário, mirrou nas tormentas das crises do petróleo, no estio do individualismo crescente e na aridez humanitária da política neoliberal. Nem mesmo a prosperidade dos últimos anos pode ajudá-la a se transformar numa árvore frondosa de sombra e frutos para todos, pois acabou desperdiçada numa tremenda concentração de renda. Não fosse a luta dos movimentos ecológicos e a tenra plantinha, símbolo de um estilo de vida simples, sem desperdícios nem excesso de luxo e de lixo, sucumbiria de vez.

Mas acabou-se o que era doce e a crise global veio, entre outras coisas, proclamar uma nova era de austeridade, promover a mudança dos hábitos de consumo, dar fim à mentalidade perdulária vigente e apontar para a mais nova tendência da estação: o despojamento está na moda.

Nesta nova ordem, perde sentido tudo o que simbolize status e desperdício, como, por exemplo, esses carrões utilitários de alto consumo de combustível que, além de contribuírem para o aquecimento global, são totalmente inadequados para o tráfego nos centros urbanos. E, acima de tudo, estão associados à arrogância da lei do mais forte, à ansiedade de chegar na frente e ao desdém pelo outro.
Bacana agora é andar de bicicleta, ainda mais em cidades com engarrafamentos permanentes. Legal é descartar o supérfluo e viver com mais tempo. Supimpa é promover uma revisão dos hábitos de consumo e substituir a gastança pelo comedimento. Ninguém precisa mais mostrar que é melhor que o outro porque tem mais dinheiro. Essa mentalidade já era. E não dá para duvidar da urgência de uma mudança de comportamento quando ela já se anuncia entre os mais conceituados economistas do mundo. Na semana passada, reunidos do Fórum Econômico Mundial, em Davos, eles tentavam entender como, em apenas 36 horas, foram queimados 600 bilhões de dólares nas bolsas de valores ao redor do planeta e, em vez do caviar e lagosta costumeiros, contentaram-se com o trivial queijo com presunto nas recepções do evento.

É bom mesmo que os economistas sintam a crise na pele e tratem de queimar a mufa para resolver a equação que se lhes apresenta na atual conjuntura. Pois se continuarmos comprando nos mesmos padrões de antes, pomos em risco a sobrevivência do planeta. Por outro lado, um freio no consumo representa redução da atividade econômica, desemprego e agravamento da crise. Para mim, a saída passa pela redistribuição de renda com redução do carga de trabalho e, consequentemente, o aumento da oferta de emprego e maior inclusão no mercado consumidor. Seria apenas o começo, para que um dia a gente possa imaginar todas as pessoas compartilhando o mundo todo, como queria John Lennon. E desfrutando tempo bastante para as coisas boas da vida, como prega o urso Balu:
“...necessário, somente o necessário / Por isso é que esta vida eu vivo em paz.”

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