Uma História da Cidade

Passei a semana em São Paulo e não fui à reunião de eleitores com o candidato à prefeitura do Rio, Fernando Gabeira, no Hotel Novo Mundo. Uma pena, pois era a oportunidade de saber mais a respeito de como um de nossos mais respeitados parlamentares pretende enfrentar os desafios da administração pública num município com população acima de dez milhões de habitantes. Como a maioria das grandes cidades, o Rio tem graves problemas. Porém, muitos poderiam ser solucionados ou, pelo menos, minorados com uma administração honesta, não apenas no sentido de não ser diretamente corrupta, mas principalmente por respeitar os princípios fundamentais de cidadania. A começar pelo direito ao transporte rápido, seguro e barato, que permitiria ao trabalhador morar com mais dignidade em bairros mais afastados do centro ao invés de se submeter à tirania do tráfico ou milícias nas favelas da cidade. O problema é justamente saber até que ponto o sistema viciado de concessão de linhas de ônibus e vans pode ser enfrentado pelo prefeito bem intencionado e descomprometido com os interesses das empresas de transporte, tradicionais financiadoras de campanhas eleitorais em estados e municípios brasileiros e, por conseguinte, seqüestradora de corações e mentes nas câmaras municipais e assembléias legislativas do país.

Então, passemos à administração da ordem pública nas calçadas dos bairros, o mais comezinho e fundamental direito de quem paga IPTU. Não sei como anda a relação da população com os camelôs. Parece-me que vai indo, com se diz, até porque o carioca costuma aproveitar uma ou outra trégua do jogo de gato e rato entre ambulantes e Guarda Municipal para fazer a sua comprinha pirata, que nesta cidade ninguém é de ferro, vamos combinar. Mas, de volta às calçadas, acabaríamos por tropeçar na miséria personificada da população de rua. E aí, eu perguntaria ao candidato a alcaide qual a proposta dele para resolver essa questão que, a meu ver, requer muito menos dinheiro do que foi gasto com os Jogos Panamericamos, porém mais trabalho e uma dose bem maior de espírito público. A começar por montar uma equipe de profissionais qualificados que, sem VEDETISMO, fizesse um consistente levantamento quantitativo e qualitativo dessa população para poder atendê-la de maneira eficiente e humana.

Ora, sabemos que neste caso a administração pública tem que competir com as facilidades que a rua oferece como acesso a dinheiro e drogas. E aí é que está o busílis: como abordar e trazer para o amparo oficial uma criança que faz parte da segunda geração de moradores de rua, que nunca teve casa nem documentos, nem nunca foi à escola, assim como seus pais, conhecidos ou desconhecidos, porém jamais reconhecidos pelo Estado e pela Sociedade? É difícil, requer verba, trabalho e dedicação, mas tem solução. Um exemplo é dado pela Associação Beneficente São Martinho que atende anualmente cerca de 2000 crianças e adolescentes no Rio de Janeiro com abordagem de menores em situação de rua, apresentando alternativas a essa realidade; casas-residência, com atendimento para os que não tenham condições de conviver com a sua família; núcleos comunitários, com atividades sociais e educação complementar; cursos preparatórios para o Primeiro Emprego e centros de atendimento dos direitos da criança e adolescente.

Esse é um lado da moeda, o outro é o cidadão exigir que questões como a da população de rua sejam tratadas com responsabilidade social pelos governantes. Não adianta reclamar que a cidade está “infestada” de gente vivendo nas ruas e fazendo suas necessidades nas calçadas se não acompanharmos o que é feito delas quando retiradas do espaço público. Conversei recentemente com o Helano Monteiro do Centro de Formação de Pessoal da São Martinho e ele me contou que a maior dificuldade na abordagem de crianças na rua é o medo que elas têm do carro da prefeitura e que superada essa etapa o pessoal da associação consegue dar seqüência satisfatória a sua atuação. Quer dizer: tirar da rua é fácil, basta usar de violência. Agora, dar atendimento adequado a essa população,evitando que ela volte a mendigar, é outra história... Taí uma história que eu gostaria de contar pros meus netos.

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Terno Novo

Foi só ouvir o nome dela para o coração bater descompassado. Não era um nome comum. Ninguém a chamava assim. Para todos era Clozinha a boneca de pernas roliças e axilas despudoradamente côncavas por onde enfiava a cabeça, primeiro o cocuruto, depois a testa e ia virando as narinas bem abertas até intoxicar a alma com o cheiro misto de suor e alfazema. E chegava em casa sempre antes do banho dela, antes que fossem pelo ralo, diluídos na água do chuveiro, indícios de traição, fragmentos de desvios lúbricos, rastros inconfundíveis de luxúria, provas do adultério adivinhado a cada dia de trabalho.

Maldito trabalho. Rival covarde e inimigo traiçoeiro que se esgueira pelas vias da virtude e vai, enfatiotado de dignidade, levar para os braços de alguém a mulher do próximo. Perverso trabalho, a infringir-lhe todos os dias o flagelo da desconfiança. “Quantas visitas foram hoje?, com quantos homens subiu e desceu elevadores?, em quantas salas se sentou, a valise das amostras sobre o colo, sobre a fronteira vertiginosa entre a saia miseravelmente curta e o início das cochas rosadas?” Era quase física a dor de imaginar Clozinha metida em consultórios “com algum médico tarado a deitar-lhe olhos fúlgidos de fera enjaulada, sequiosos de carne farta e fresca.”

E o tormento começava logo cedo. À mesa do café, esperava Clozinha sair do quarto vestida para o trabalho. “Teria esquecido a calcinha?” Apertava os lábios temendo, num rompante, revelar os legítimos cuidados. Esperava silencioso o fim da refeição para passar-lhe a mão na bunda na hora da despedida. Seguro da compostura íntima, deixava-a sair e se embrenhar pelas ruas da cidade. Logo inventava itinerários escabrosos, imaginando-a em visitas suspeitas por edifícios mal-afamados. Salteava saídas de incêndio, galgava escadas propícias a práticas escandalosas. Penetrava labirintos de corredores insidiosos, com portas vazando nas frestas o fedor das sevícias consentidas.

Um lampejo de lucidez mostrou-lhe a loucura à espreita. Era pegar no batente ou botar fora o próprio negócio. Chegou tarde ao escritório. Mergulhou na contabilidade e embaralhou aos números a idéia de por fim à vida dela. Ter Clozinha só para si era o céu. Se não podia atingir as alturas, condenava os dois ao inferno. Certeza de ser traído não tinha, tampouco estava certo do contrário. Argumentos de valor absoluto nas contas de um facínora imaginário. O diabo era ter que pagar pelo crime, ou dar fim à própria vida. Sofria ao admitir-se covarde. Arrancou-o do martírio o alvoroço do contínuo dando conta do sinistro num motel da redondeza.

Na sala ao lado, o rádio berrava as últimas notícias: “...vazamento de gás matou o casal que se hospedara pela hora do almoço. Fulano de Tal, comerciário, branco, casado, tinha trinta e oito anos. A mulher era Clotilde...” E mais não pode ouvir, ensurdecido que ficou com as batidas do coração que vinham desabaladas, subindo por dentro do peito. Pegou o paletó e foi pra rua. Misturou-se aos transeuntes com desenvoltura. Ligeiro atravessou a avenida, cruzou duas travessas, cortou em diagonal a praça e foi tomar um chope no balcão apinhado de gente. Bebeu tudo de uma só vez, as duas mãos apertando a caneca.

No segundo chope, lembrou-se que não bebia na hora do expediente. No terceiro, sentiu o mundo afrouxar. A voz do garçom chegou amiga oferecendo mais um, veio o burburinho do fundo do bar, o barulho do trânsito, o apito do guarda, as sirenes, os sinos da Ave Maria... Era corno, sim. Sempre soubera. Vingado pela justiça divina, estava livre de sentir-se covarde e ainda redimido de qualquer intenção dolosa. Sem cometer desgraça maior, chegara ao desfecho triunfal. E no enterro da infame, haveria mais que fingidos pesares. Receberia dos amigos contidos cumprimentos de louvor. Da família, o abraço em regozijo pelo ente vingado. Foi comprar um terno novo.

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