As aparências enganam

Parece que quase todos os articulistas se renderam a escrever sobre a tragédia que envolveu a família de Isabella Nardoni – a menina, de 5 anos, jogada do sexto andar do prédio, onde passava o fim de semana com o pai e a madrasta –, dada a repercussão nacional do episódio. Há até mesmo os que tocam no assunto para dizer que se negam a abordá-lo, como Veríssimo hoje em O Globo. Ele tem uma neta e prefere pensar em tudo de bom que pode acontecer à menina. Mas há, no mesmo jornal, outros artigos e opiniões de especialistas nas diversas disciplinas que envolvem a família na sociedade. Inclusive uma reportagem de página inteira no primeiro caderno com o mesmo título que dei à penúltima postagem deste blog: os meus, os seus e os nossos.

É bom que a imprensa se aprofunde no sentido de desvendar a relação entre madrastas, padrastos e enteados, que desde a época do paz e amor disfarça, com o colorido festivo das comunidades hippies, uma realidade complicada por natureza. A esse fenômeno incorporou-se, nos anos 90, a mentalidade do politicamente correto e o meio de campo das famílias com filhos de vários casamentos ficou tão embolado que deu origem a iniciativas espantosas como a que criou a Associação de Madrastas e Enteadas de São Paulo, acredite se quiser.

Por outro lado, a mídia em geral está criando um clima de comoção perigoso, levando as pessoas a se manifestarem de maneira explosiva contra o casal indiciado. Nessas horas deve-se lembrar o caso da Escola Base – em que seis pessoas (inclusive os donos da escola) estariam envolvidas no abuso sexual de crianças.

No episódio, o delegado responsável divulgou à imprensa laudos preliminares explorados em uma série de reportagens que acabaram por promover o linchamento moral dos acusados, os quais chegaram a ser presos e torturados, além de ter a sua escola depredada. No entanto, por falta de provas, o processo foi arquivado e eles foram considerados inocentes. Agora, os ex-acusados são vítimas na batalha jurídica por indenizações. O governo de São Paulo e a Folha da Manhã já foram condenados. Faltam as TVs Globo e SBT e os jornais Folha de São Paulo, Folha da Tarde e Notícias Populares. Os advogados pedem que esses órgãos de comunicação paguem uma média de 3 milhões de reais para cada um dos seis acusados.

O caso da Escola de Base é tido como um dos maiores erros na história da imprensa brasileira e emblemático de como pode ser equivocada a relação entre a polícia e os meios de comunicação. Portanto, apesar de revolta que dá na gente só de pensar que uma criança possa ser vítima da própria família, seria bom que os formadores de opinião incentivassem o sentimento de cautela na população que, em última análise, terá sua representação na forma do juri popular. E antes de editar uma matéria lembrassem, eles mesmos, de que todas as informações devem ser muito bem checadas antes de publicadas porque, quase sempre, as aparências enganam.

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Faz sentido...

Sábado, à noite, eu fui fazer uma pesquisa de campo para um roteiro de longa-metragem que estou desenvolvendo. A história, em sua quase totalidade, se passa na Glória, com ações progressivas em bairros vizinhos como Santa Teresa, Lapa, Bairro de Fátima, e vai até São Cristóvão. Desta vez, eu tinha que ir à Lapa de madrugada. Pedi a ajuda de duas amigas e prometi pagar uma rodada de caipirinha em alguma casa noturna de sua preferência para convencê-las a chegar bem mais tarde que o convencional e ficar o máximo de tempo no lugar. Depois, teríamos que ir andando até a Glória, onde pegaríamos um táxi para voltar pra casa. Era justamente para esse "depois" que eu precisava de apoio.

A primeira parte do programa foi no Carioca da Gema, e aí não tem erro, é diversão garantida. Nem sei o que mais gosto daquela casa, talvez o fato de que uma mulher possa entrar lá desacompanhada e se sentir inteiramente à vontade. E essa é uma sensação de independência de valor inestimável. Eu sempre defendi a tese de que o movimento feminista levou as mulheres da cozinha para a sala de visitas, mas não promoveu uma emancipação tal que lhes permitisse o livre acesso à rua. Ou melhor, à noite, que é quase a mesma coisa no imaginário popular. E até o advento da Lapa contemporânea não havia casa noturna no Rio de Janeiro (imagine o resto do país) onde uma mulher pudesse chegar sozinha, tomar seu drinque, se divertir e ir embora sozinha sem se sentir constrangida, ou mesmo estigmatizada.

Na Lapa, há vários lugares com esse perfil libertário. Não que não haja assédio. Há sim, graças a deus, que ninguém quer patrulha contra a azaração. Quer é poder sair apenas a fim de se divertir, sem preconceito. E se aparecer alguém que lhe interesse, tudo bem. Se não, você mesma vai ao bar ou pede ao garçom sua bebida, não precisa mesa para ser bem servida, pode entrar sozinha, assistir ao show sozinha e dançar sozinha que naõ vai se sentir excluida e sim parte de uma multidão de gente diferente entre si que canta a mesma música, dança o mesmo ritmo e, provavelmente, está num nível etílico igual ao seu. Por que isso não acontece em boates da Zona Sul e da Barra da Tijuca, eu não sei. Eu não sei muitas coisas e com essa última visita à Lapa, acrescentei outro mistério ao meu cabedal de curiosidades.

Foi durante o passeio, anteriormente combinado, que incluiria rua principal, transversais e paralelas. Ainda na Mem de Sá, quase na esquina do Asa Branca (onde há seguidos inferninhos), vi o menino, de seus 12 anos, mulambento, descalço, perambulando em ziguezague no meio das pessoas que lotavam a calçada. Ele parecia bastante alterado, soltava uns grunhidos lamentosos, se esfregava pelas paredes, espiava pelas frestas das portas de vidro quase babando, e trazia com sigo uma garrafinha de refrigerante vazia, que vez por outra levava à boca para aspirar. A cena indicava um pivete cheirando cola no meio dos transeuntes que seguiam indiferentes àquele drama pessoal e social. Como tudo se parecia bastante com uma seqüência que eu havia escrito no argumento do filme (já apresentado e devidamente registrado na BN), segui-o de perto _ a despeito dos protestos das amigas que se mantiveram afastadas _ puxando conversa com ele até a esquina da Sala Cecília Meireles. E não é que o garoto não estava drogado. Ao contrário, conversou comigo numa voz limpa, respondendo com evasivas como qualquer um que fale com estranhos, mas com certa lógica. Seus olhos não estavam injetados e ele andava com passo firme. Além disso, não me pediu um tostão e, decidido a não responder mais ao meu inquérito, deu meia volta e se dirigiu calmamente ao palco central da Lapa enquanto reconstruia o personagem de pivete cheirando cola na rua.

Intrigadíssima, tive que seguir agora o plano traçado com minhas acompanhantes. Fomos a pé pela Joaquim Silva até a rua da Glória, onde descobri o Motel Ouro Preto, que só existe durante a noite, e cobra 30 reais a diária com café da manhã. Conversei ainda informalmente com um dos travestis que faziam ponto por ali. Ela foi muito simpática e me ajudou a checar horários e informações sobre o ritmo do movimento durante toda a noite. Confirmei ainda hábitos e costumes com um motorista de táxi parado mais adiante, fiz anotações, tirei fotografias e viemos embora.

É claro que vou ter que voltar lá – algumas vezes, espero – para continuar a pesquisa. Além disso, surgiu esta nova questão, com uma série de perguntas que preciso responder. Por que raios um pivete fica tirando onda de pivete drogado. Será que faz parte de algum golpe. E quem estaria por trás da trama e por quê. Ou será que se trata apenas de um artista de talento inato, índole autônoma e espírito independente, que vê a noite no bairro boêmio como a montagem de um grande espetáculo do qual quer ser um dos personagens principais, num esforço de imaginação para sentir-se de alguma forma incluído nesse teatro do absurdo que é a nossa cidade. Cidade esta que gasta muitos milhões num Pan pra favorecer a muito poucos, que guarda muito dinheiro em caixa, mas não tem hospitais nem postos de saúde suficientes para atender a população, e que, entre outras mazelas, já matou este ano mais de 50 pessoas de dengue, a maioria criaças. Pra mim, a segunda suposição faz um bocado de sentido.


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Os meus, os seus e os nossos

É com certa angustia que acompanho o noticiário sobre as investigações do assassinato da menina Isabella. Principalmente por conta das muitas reviravoltas, de provas e depoimentos, impedindo que se mantenha uma opinião formada a respeito por mais de vinte e quatro horas. Também tento, há dias, escrever sobre esse fato e acabo desistindo. Mas hoje, ao acordar, mais cedo, ansiosa por saber se surgira alguma nova prova ou depoimento definitivo para a elucidação do crime, percebi que era inevitável tocar no assunto. Ainda mais que as notícias davam conta do enorme aparato policial armado para proteger de um provável linchamento o pai e a madrasta da menina, principais suspeitos do assassinato. Então, pensei, a comoção é geral. E é mesmo revoltante e parece incompreensível que um pai possa matar ou ser cúmplice da madrasta no assassinato da própria filha, uma criança de cinco anos, tendo ainda dois outros filhos menores com esta mulher.

No entanto, esse pode ser mais um episódio da história das paixões humanas que se reproduz ao longo da própria história da humanidade. Nós todos sabemos, de maneira intuitiva ou intelectualmente elaborada, da capacidade que tem uma mulher de arrancar das camadas mais profundas e obscuras o que há de mais bárbaro na alma de um homem. Sabemos também que o homem primitivo é mais macho do que pai, sendo a mulher jurássica mais mãe do que fêmea. Juntem-se, então, na mesma casa, filhos de ambos os lados e está feita a desgraça, no mínimo, a confusão. E não venham me dizer que sórdidos abusos não ocorrem a toda hora. Não ao extremo, talvez. Mas de forma ligh, são freqüentes até nas melhores famílias.

Ao longo da vida assisti a muitos relacionamentos de casais com filhos de casamento anteriores e tenho um punhado de exemplos de como uma madrasta pode ser mesquinha e o próprio pai cruel. Uma vez, durante todo um final de semana, no campo, vi a dona da casa negar à enteada -sem motivo aparente - , um pouco do sorvete guardado na geladeira. A menina gozava de plena saúde, mas o pai era um grande paspalho e não esboçou reação. O próprio presidente Lula tem uma história similar envolvendo sorvete, a guloseima preferida de nove entre dez crianças. Ele conta que, ainda menino, veio do nordeste para São Paulo e saiu, pela primeira vez, para passear com o pai e os dois filhos do segundo casamento deste. A certa altura, eles pararam numa sorveteria e o pai deu sorvete apenas para os dois irmãos menores. Um deles estranhou o fato de o pai não comprar um sorvete também para o meio-irmão. O pai respondeu que não precisava porque o Lula era um matuto e não sabia o que era um sorvete. O presidente nunca mais esqueceu da crueldade paterna, tanto que conta essa história.

Temos todos nossas fraquezas, nossas emoções negativas, próprias da natureza humana. Por isso mesmo devemos fazer um esforço constante para tentar superá-las e contribuir tanto individual quanto coletivamente para um mundo mais justo ao nosso redor, no âmbito familiar e, sobretudo, no âmbito social. Principalmente quanto à criança que, sendo o lado mais fraco, é sempre a maior vítima na sociedade enquanto deveria ser protegida, não só como indivíduo, mas como entidade; para que se construa uma mentalidade universal de proteção ao nosso futuro. E assim, os seus, os meus e os nossos filhos e netos seriam favorecidos como um todo. Infelizmente ainda estamos longe deste ideal de fraternidade. Até mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente é, em muitos casos, omisso.

Um exemplo foi a fotografia estampada, esta semana, na primeira página dos jornais mais importantes do Rio. Nela, víamos um menor de rua, vestido só de bermuda, agachado entre as botinas altas de dois policiais militares. A legenda dizia “está dominado” e a matéria tratava de uma operação de combate à desordem urbana na Zona Sul. Nada contra ações para melhorar a qualidade de vida dos que pagam mais impostos. É justo. O que não pode é mostrar a foto de uma criança feito um bicho caçado nas ruas da cidade e exibido como troféu. Vale lembrar que, mesmo com o rosto desfocado, a imagem de uma criança simboliza a infância como um todo; tanto a abandonada pela família, pelo estado e pela sociedade, quanto a protegida pelo dinheiro e posição social.

Eu não sou de citar a Bíblia, mas nesse caso vale uma exceção. Lá está escrito que quem escandaliza uma criança deve ser lançado ao mar com uma pedra amarrada ao pescoço. É justo, também. E que esse crime hediondo contra uma menina de cinco anos, que tanto nos angustia e revolta, sirva, ao menos, para sensibilizar nosso olhar sobre todas as crianças da terra.


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O que é a arte?

Nos últimos dias, houve uma troca frenética de cartas entre amigos e admiradores em comum de Glauber Rocha. De todas, escolhi esta para publicar aqui, por reconhecê-la como definitiva sobre o assunto do insulto à obra do cineasta. É assinada pelo poeta, ensaísta e crítico literário Alexei Bueno, um dos mais conceituados intelectuais de nosso tempo. Aproveitem!

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PEQUENA REFLEXÃO SOBRE GLAUBER

O que é a arte? perguntou Tolstoi num famoso e estranho livro da sua fase mística. Para que serve a arte? não para os outros, o que é muito claro, mas para os que a criam, e num país pleno de energúmenos como o nosso, pergunto eu? Glauber Rocha, recentemente chamado de "uma merda" por um palhaço, fez Deus e o Diabo na Terra do Sol aos 24 anos de idade. Esse filme, para além da sua beleza indescritível, é uma síntese da nacionalidade que não só abarca todo o passado como chega - o famoso dom "profético" de Glauber - até nossa contemporaneidade, assim como passará além dela. É impossível, a não ser para os cegos, não ver o retrato do irracionalismo popular dividido entre a religião e a violência que há no filme, e não perceber que o Beato Sebastião e o Corisco que nele estão se transformaram no Bispo Macedo e no Fernandinho Beira-mar da nossa triste conjuntura. Aos 27 anos, Glauber fez Terra em transe, o maior filme sobre política da história do cinema, no caso sobre o subdesenvolvimento político e a tragédia dos que, conscientes, vivem nele. Mas, ora, ninguém o entendeu, qualquer flashback, e ainda mais um filme que é inteiro um flashback, é demais para a astúcia dos nossos conterrâneos, inclusive intelectuais que lêem com a maior naturalidade o mais arrevesado romance de vanguarda, mas saem de um filme no meio se ele tiver a mais ínfima inversão de ordem direta na narrativa. Aos 29 anos fez Glauber O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, fecho dessa trilogia genial, filme de uma precisão de mise-en-scène coletiva em planos-seqüência como só vi um tanto semelhante no Oito e meio de Fellini. Um importante e inteligente articulista disse recentemente que o filme era chato, essa grande reflexão estética. Já vi indivíduos dizerem que a Odisséia era chata, o Dom Quixote era chato, que a Divina Comédia era chata, que a Quarta Sinfonia de Brahms era chata, que o Grande sertão: veredas era chato, que a Missa em si-menor de Bach era chata, etc. etc. Conheci mesmo um que dizia - e era comunista, membro do Partidão - que o Encouraçado Potiônkim era chatíssimo. Uma merda deveria ser de fato Eisenstein para conseguir fazer um filme que dura uma hora, com 1.500 planos, e mesmo assim ser tão chato. Uma merda igualmente o Glauber do Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, filme onde vemos uma cidadezinha do sertão ser invadida por uma coréia de beatos famintos, comandados por uma santa; onde um matador de cangaceiros se encontra com o último deles, desafia-o e fere-o de morte; onde há um Coronel cego, que é corneado pelo delegado a quem domina; onde o mesmo Coronel chama seus jagunços para massacrar todos os beatos; onde a amante, flagrada, mata o delegado em praça pública com cinqüenta punhaladas; onde o cangaceiro ferido agoniza como o Cristo, e é deixado como que crucificado num mandacaru; onde um professor bêbado e a mulher do delegado fazem um ménage à trois com o cadáver do próprio, perante o padre, que se transformará por sua vez num revoltado, cena de necrofilia lírica única na história do cinema; onde os beatos são todos massacrados, a partir do que se prepara um duelo final, titânico, entre o professor e o matador de cangaceiros, de um lado, e o Coronel e todos os jagunços do outro, uma das maiores seqüências corais da história do cinema; onde o pobre Preto Antão se transforma num novo São Jorge e mata, a cavalo, com uma lança, a figura maligna do Coronel cego, no meio de uma praça, etc. etc. De fato, se Glauber, com tudo isso acontecendo em menos de duas horas, conseguiu fazer um filme chato, deve estar na mesma categoria de Eisenstein para o comunista. Esse filme, que conquistou a Europa - apesar do substrato histórico cultural que ela não conhece, e que nós deveríamos ter obrigação do conhecer - esse filme sobre o qual disse, magistralmente, o Osservatore Romano, fazer a fusão exata da tragédia grega com a elisabetana, esse filme com que Glauber ganhou o prêmio de Melhor Diretor em Cannes, esse filme que reuniu um dos mais admiráveis grupos de atores do nosso cinema, Joffre Soares, Maurício do Valle, Othon Bastos, Emmanuel Cavalcanti, Odete Lara, Hugo Carvana, com uma fotografia colorida de uma beleza poucas vezes igualada, etc. etc., é chato, e basta.

Citei três filmes para nem, citar o resto, nem os admiráveis livros sobre cinema que Glauber deixou, nem nada. Glauber morreu com 42 anos, já lá se vão 27. Poderia estar vivo e bem agora, com 69, ter seguido a sua vida na Faculdade de Direito de Salvador, e assim não seria hoje chamado uma merda. Disse o mesmo articulista que seus filmes não são para a geração do palhaço que o chamou de uma merda, nem para a dos avós do mesmo. Não sei o que é arte fashion, arte para "tal geração", vejo e revejo os filmes de Griffith, Murnau, Abel Gance, Dreyer, Eisenstein, Pudovkin, Dovchenko, Stroheim, Epstein, Clair, Keaton, Chaplin, Lang, Fellinni, Buñuel, Bergman, Godard, Pasolini, Truffaut, Glauber, etc. etc. etc. com suprema emoção estética, a mesma que tive aos ver pela primeira vez Deus e o Diabo na Terra do Sol, aos 13 anos, no dia 15 de janeiro de 1977, no Cineclube Macunaíma, na ABI, dia que mudou toda a minha visão sobre o cinema, assim como leio Homero, Camões, Balzac, Proust ou Kazantzákis com a mesma estesia; como olho para a pinturas de Lascaux, para as das múmias de Fayum, de Caravaggio, de Rembrandt, de Van Gogh, de Picasso com o mesmo entusiasmo; ou ouço Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms, Wagner, Stravinsky, Bartok, Chostakóvitch como se meus contemporâneos fossem. Não se tem o direito de xingar Glauber? Claro que sim. Qualquer um pode chamar de uma merda o Aleijadinho, Machado de Assis, Raul Pompéia, Euclides da Cunha, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, etc. etc. O direito ao desprezo abissal, no entanto, esse também é sagrado. Talvez o grande cinema brasileiro seja o de A Copa do Mundo é nossa, do grupo Casseta. O que é, simplesmente, mais desagradável, mais deselegante, no caso de Glauber, é que essa merda tem uma mãe viva, uma senhora de quase noventa anos que perdeu uma filha aos 13, de leucemia, uma outra, a bela e saudosa Anecy, aos 34, caída num poço de elevador, e o seu último filho, a merda em questão, aos 42, graças a uma obra-prima da medicina lusitana. Felizmente, cada um sabe escolher quem é a merda de sua preferência.

Alexei Bueno

3-4-2008

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