Adauto adulterado

Depois de quase um ano de Avenida Brasil, volto a este blog para comentar o fim da novela. Foi show. O desfecho foi tão bom quanto o desenrolar da trama e, apesar de tanta opiniões e apostas neste ou naquele final, o autor conseguiu surpreender. E o melhor, surpreender com coerência. Com a devida licença poética de que goza uma obra de ficção, pode-se atribuir nota dez com louvor ao trabalho de João Emanuel Carneiro. Pois além do grande talento e nível de informação literária demonstrado - com referências a Nelson Rodrigues, Agatha Christie, Shakespeare e Dostoieviski, entre outros - o autor não teve preguiça para desenvolver o perfil psicológico dos personagens, tornando-os tão verdadeiros e queridos ao ponto de merecerem todos nova oportunidade para recomeçarem a vida.

Carminha Sofre, foi o título da postarem anterior, logo no início da novela. Lá se vão quantos meses? Pois Carminha sofreu mesmo quase que todo o tempo, como ela própria demonstrou ao revelar o estado de exaustão a que chegou nos derradeiros capítulos. E com todos os arrependimentos, menos o de ter matado o Max que, vamos e venhamos, mereceu o fadado destino (a despeito de ser o meu personagem preferido na novela). Talvez, de todos, tenha sido o mais ambíguo. Se não, como explicar o sucesso que alcançou, e tanto com o público feminino quanto masculino. Ele que  maltratava o próprio pai, chegou a avançar para o filho, Jorginho, com uma garrafa de uísque quebrada, planejou seqüestrou e roubos, praticou todo tipo de golpe, era mais que um parasita na mansão do Tufão, chifrava o cunhado e a esposa sob o teto comum, porém, tudo com um charme irresistível, o charme dos cafajestes a lá Beto Rockfeller, ou um Alfie - O Sedutor.

Mas os momentos finais do último capítulo foram dedicados à redenção do Adauto, um personagem que dizem ter crescido por conta do desempenho do ator - o que é inegável - , mas que teve seu drama contado logo no início da novela para ser resolvido apenas no último capitulo: o pênalti  perdido por ele e que tirou o Divino Futebol Clube da primeira divisão e, ao final, 13 anos depois, o pênalti redentor.

Apesar do estigma que acompanhou o lixeiro por toda a trama,  a gente boa do Divino  tratava o Adalto com a condescendência que merecem as crianças, por perceber sua personalidade infantilizada. Infantilizada e sincera, intuitiva, alegre, sem malícia e sem censura. E isso me faz lembrar a entrevista que fiz com Maria Gal, uma jovem atriz e realizadora do espetáculo infantil "As Paparutas", escrito por Lázaro Ramos. Falando sobre a reação das crianças que assistem à peça, ela atribuiu um sentido muito próprio ao termo adulterado, ao se referir ao comportamento dos pequeninos, que ainda não passaram pelo processo de formação do adulto.

Adulterados, então, seriamos todos nós que sofremos o conflito entre emoção e razão, um processo que vem minando nossa autoestima desde que, nos primeiros anos de  vida, aprendemos a pensar e planejar o passo seguinte, o futuro, esse bicho papão em nome do qual somos obrigados a atrofiar nossas emoções. E passamos a não dizer o que pensamos, a não desejar o que não se deve, a não se comportar fora dos padrões, etc, para sermos aceitos como gente grande. Um processo que é inevitável para o livre transito na sociedade, mas  que lesiona nosso amor próprio a cada vez que, por ser humanos, não conseguimos resistir às tentações. Adulterados seguimos vida a fora tentando restaurar a autoestima com conquistas materiais e sociais. E João Emanuel Carneiro fez questão de mostrar para todo o Brasil que não é por aí.

Cadinho e suas três mulheres aprenderam a lição. Suellen e seus dois maridos deram uma lição. Qualquer espécie de amor vale a pena é o legado mais saudável dos anos 1970 que tentamos resgatar nesse terceiro milênio, depois de décadas de caretice e conservadorismo. De resto, Avenida Brasil foi uma aula de amor e o perdão, de fé no ser humano e no curso natural da vida. Reforçou a crença de que tudo passa e prestou  homenagem às emoções genuínas, à valorização de sentimentos verdadeiros. Decretou em grande estilo, e sem maniqueismos, a  derrota do truque, do golpe, do excesso de malícia, da arrogância, da esperteza e da ganância. E, em mim pelo menos, despertou a enorme admiração pelo autor, diretores e elenco de Avenida Brasil. Em especial, meu aplauso cheio de entusiasmo para Vera Holtz e José de Abreu.

Saudades ...