Eleições e o Santo das Causas Impossíveis

A semana foi de rescaldo. Contaram-se mortos e feridos da campanha derrotada, avaliaram-se erros e acertos dos postulantes, e coube ao vencedor a batata quente de cumprir 86 promessas sob a vigilância acirrada de metade do eleitorado carioca (a vitória foi por menos de 1% dos votos válidos). Encontro-me entre eles e, apesar de desejar que o próximo prefeito faça uma boa gestão, ainda estou lambendo as feridas, de olho nas reportagens e analises do resultado das urnas.

Ontem mesmo soube que, de todos os bairros da Zona Sul, Gabeira foi mais bem votado em Laranjeiras e Cosme Velho (75,82%). Não me surpreendi. Já havia percebido o perfil interessante da gente que mora ali. Desde um ensolarado feriado de primeiro de maio, há alguns anos, pouco depois que me mudei de Santa Teresa para o Flamengo e passei a caminhar diariamente pelo Aterro. Naquele dia, uma quarta-feira, o parque estava mais vazio. Notei também que o público era diferente do que costuma freqüentar o lugar nos finais de semana; em geral pessoas do centro e da Zona Norte da cidade, que vêm em turmas grandes ou famílias numerosas, fazem churrasco, jogam bola e lotam a areia da praia. Estes eram jovens casais de classe média aproveitando, com os filhos pequenos, o amplo espaço gramado e a beleza incomparável do paisagismo de Burle Max.

Fiquei intrigada. Mas logo tive um encontro esclarecedor. Cruzei com um conhecido, a mulher dele e dois filhos pequenos. Ele é dono de um sebo no Centro e me contava, naquela manhã, que costuma ir de bicicleta de Laranjeiras, onde mora, para o trabalho pela mesma ciclovia onde caminhávamos agora. Vários casais passaram por nós. Alguns pararam para conversar. Aproveitei para observar aquela rapaziada com estilo próprio, sem a ostentação e a padronização típicas da Zona Sul. Na atitude segura, no jeito despojado de se vestir, na conversa variada, e na atenção para com o outro, via-se que eram pessoas mais preocupadas em ser do que em ter. Mais interessadas em sentir do que em se exibir. A maioria morava em Laranjeiras. Fiquei encantada.

Dali em diante, aproveitei toda oportunidade que tive para passear pelos bairros dos mais tradicionais do Rio. Fui pesquisar filmes brasileiros na cinemateca das Casas Casadas; vi a exposição de Nássara, no Espaço Cultural Trem do Corcovado; ouvi MPB no Mercado São José; assisti à peça de formatura da turma de teatro da Cal (Casa das Artes de Laranjeiras); tomei cerveja ao luar, na Praça São Salvador; comi feijoada e dancei na roda de samba da Casa Rosa Cultural (antigo prostíbulo da Rua Alice); levei meu amigo francês para conhecer o deslumbrante conjunto arquitetônico colonial do Largo do Boticário... E foram tão bons os programas - todos com algum apelo artístico ou cultural - que me tornei habitué das Laranjeiras.

Tanto que não perdi a bênção de ontem, na igreja de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis. Foi uma festa popular de toda a cidade. A fila para acender vela na gruta mais visitada do Cosme Velho ia até quase a entrada do túnel Rebouças, mas andava rápido. As pessoas levavam pequenos arranjos de rosas vermelhas com ramos de trigo dourado nas mãos. Ao longo da rua das Laranjeiras havia muitos ambulantes vendendo flores, velas, santinhos, flâmulas, fitas vermelhas e camisetas estampadas com a imagem do santo. Logo na entrada, um funcionário da igreja mergulhava uma brocha em um balde e mandava uma esguichada de água-benta na cara dos fiéis, lá dentro havia missa com preces e cânticos.

Eu assisti à missa em homenagem a São Judas Tadeu. Cantei e rezei pelo Rio de Janeiro. Também levei um banho de água-benta. E pedi ao Santo das Causas Impossíveis que não deixasse Eduardo Paes lotear os cargos da administração pública entre os treze partidos da aliança que o elegeu, não cedesse à pressão do deputado ligado à milícia que o apoiou e, principalmente, não colocasse em 2010 a máquina da prefeitura a serviço da reeleição do governador.

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Amanhã será outro dia

O Rio não amanheceu cantando, nem os namorados foram pra rua em bando, contrariando a idílica imagem de Braguinha para a primavera na cidade. Ao contrário, desde o fim da tarde de ontem, o lado mais festivo da cidade emudeceu, recolhendo-se em seguida, como se quisesse fazer um ato de contrição. Não por arrependimento de não ter sido mais agressivo na campanha do seu candidato à prefeitura da cidade, que esse foi um dos muitos pontos pacíficos entre os eleitores de Fernando Gabeira.

É mais fácil acreditar que os cariocas dos bairros que formam a região do Centro, Zona Norte e Zona Sul estavam concentrados na reflexão sobre o grade passo que foi dado em direção a uma política maior, mais comprometida com valores como fraternidade e respeito às diferenças do que com preconceito e promessas difíceis de cumprir. Talvez porque menos carente do básico, esse eleitorado pode almejar padrões mais elevados de honestidade e probidade administrativa.

A fim de dirimir minhas dúvidas, fui logo cedo dar uma volta no bairro para os afazeres que costumo deixar para as tardes, mais frescas. Queria colher uma mostra do sentimento das ruas e para tanto conversei com a dona da tinturaria, a mãe do sapateiro, a caixa do supermercado e o farmacêutico da esquina. Outros fregueses ao redor também entraram no assunto, o que me fez estender a saída da costumeira meia hora para mais de uma hora e meia.

Valeu, pois de tudo o que foi dito, percebi que maior do que o desapontamento de ter perdido por tão pouco há, pelo menos entre os moradores do Flamengo, a certeza de terem plantado uma semente de mudança no jeito de fazer política na cidade. E como o Rio é caixa de ressonância, ficou a confiança de que o novo paradigma poderá ser replicado nos pleitos futuros em todo o Brasil.

E mais, que triste mesmo ficaria o eleitor se apreendessem no comitê de Gabeira 90 mil panfletos de propaganda negativa contra seu adversário, como foi divulgado nos jornais de hoje. Ou se assistisse no YouTube a um vídeo do seu candidato defendendo a atuação das milícias, como no caso de “Dudu Duas Caras e as Milícias”, no endereço:

http://www.youtube.com/watch?v=qEhHo8wkoq0

E por tudo isso, pude concluir que, se o carioca dormiu desenxabido, acordou mais confiante de que amanhã será outro dia.


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Samba da vitória

Minha primeira lição na faculdade de comunicação foi em tom de anedota. O professor de jornalismo, Nilson Lage, contou-nos, já na aula inaugural, a história do editor de um jornal que encomenda ao repórter uma matéria sobre Jesus Cristo. Ao que o subordinado, após ajuizada aquiescência, pergunta: contra ou a favor?

Assim, aprendia-se, ao entrar na faculdade, que um jornalista deve desenvolver a versatilidade verbal e treinar malabarismos retóricos para se firmar na profissão até, quem sabe?, conquistar seu espaço próprio de opinião. No livro “O Anjo Pornográfico”, biografia de Nelson Rodrigues por Rui Castro, o autor conta que, por algum tempo, Otto Lara Resende foi o editorialista de dois jornais com posições antagônicas, sendo um matutino e outro vespertino. Profissional competentíssimo, Lara conseguia a proeza de, pela manhã, escrever um editorial apoiando determinada idéia ou posição que, à tarde, derrubava sem piedade.

Esta época de eleições é pródiga em artigos que investem na habilidade do proselitismo político. E até quem não se especializou em nessa área aproveita a onda para dar suas cacetadas. Afinal, o assunto é o mais veiculado em todos os espaços de comunicação; do jornal impresso às conversas na praia e nas mesas de bar, passando pela internet e até pelo telefone celular. Então, é quase que obrigatório falar no assunto e, dependendo do acirramento da disputa, sente-se também obrigado o colunista a tomar partido, qualquer que seja a posição do (seu) jornal.

Com uma coluna recente no Jornal do Brasil e na Gazeta Mercantil, senti-me de certa forma compungida a expressar opinião a respeito da disputa pela prefeitura do Rio. Porém, optei por abordar o assunto de forma indireta, tratando de coisas como a identidade carioca, a segurança e a qualidade de vida na cidade, a relação da violência com a educação e exemplos de iniciativas bem sucedidas em âmbito municipal em outras partes do mundo. Porque credito acima de tudo na prática da reflexão, que resulta em mobilização para as transformações sociais.

Porém, ainda ontem, num jantar na casa de amigos, fui cobrada por não ter declarado meu voto nem ter escrito sobre o porquê da minha decisão. Então, antes tarde do que nunca. Aproveito o imediatismo da internet para dizer em alto e bom som que Vou De GABEIRA PARA PREFEITO DO RIO DE JANEIRO, esta cidade maravilhosa que, apesar de tanto desmando, continua abençoada por Deus e bonita por natureza. E para não ficar devendo explicações, passo à lista das vantagens do meu candidato. O que significa, nessa altura do campeonato, uma compilação de tudo o que o seu adversário não tem.

Gabeira não cogita armar a Guarda Municipal. Gabeira não vai lotear as secretarias municipais entre uma miríade de partidos políticos com programas e posições ideológicas antagônicas. Gabeira já declarou que seu secretariado será escolhido por critério meritório entre técnicos e especialistas com nível de excelência em suas áreas de atuação. Gabeira não aceitou o apoio de representantes do caciquismo populista mais atrasado do nosso estado. Gabeira faz uma campanha limpa em todos os sentidos. Gabeira não apela para falsos valores éticos como a exaltação da família nuclear que redunda em preconceito contra outras opções de vida. Gabeira é a favor da reforma da polícia, como primeiro passo para resolver o problema da violência na cidade. Gabeira não se opõe a discussão sobre a legalização da maconha. Gabeira mostrou coerência ao longo de toda a sua vida política e representa a restauração da credibilidade nos políticos. E se isso não bastasse, Gabeira ainda revela a essência de sua formação progressista quando diz que se preparou a vida inteira para a vida inteira.

Portanto, no próximo domingo, vou vestir uma camiseta verde e votar no número 43. E assim que sair a pesquisa de boca-de-urna, zarpo para o território livre da Lapa, que não é Zona Norte, nem Subúrbio, muito menos Zona Sul, mas o lugar onde a cidade diuturnamente se encontra para comemorar com samba a vitória do Rio de Janeiro.

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Festival do Rio

Mesmo atrasada, vou falar dos filmes que assisti no Festival do Rio, que começou na última semana de setembro e terminou na semana passada. O atraso se deve a um evento muito triste que menciono apenas para dividir com vocês – queridos leitores deste blog e grandes incentivadores da minha escritura – um pouco da dor imensa que sinto. Meu pai, que caíra doente no meio do ano, morreu no início de outubro, deixando no meu coração um enorme vazio da sua figura heróica*, seu espírito alegre, sua índole companheira e seu coração amoroso...

Alguém me disse, durante as cerimônias fúnebres, que “a vida continua...” É um tremendo lugar comum; mas é a pura verdade. Então, entre um gole de vinho e um soluço de saudade, levo-os de volta ao Festival do Rio.

Sobre o filme de Bruno Barreto, “Última parada 174”, que abriu a mostra, já falei na postagem anterior. O encerramento foi com “Um homem bom”, de Vicente Amorim, diretor do ótimo 2000 Nordestes (2001) e “O caminho das nuvens” (2003). Vicente é filho do ministro das relações exteriores Celso Amorim, o que garantiu a presença na platéia do Odeon de autoridades e personalidades ligadas à cultura nacional. Presente também o ator Viggo Mortensen, protagonista do filme, que conta mais uma história de holocausto. Mas conta bem, pela narrativa atraente, qualidade técnica e sensibilidade, a história de um professor universitário que inadvertidamente passa a colaborar com o nazismo, aceita as benesses do regime e só percebe seu grande equívoco quando seu maior amigo, um psicanalista judeu, começa a ser perseguido. No fundo, é uma discussão sobre livre-arbítrio; tal como o filme de Barreto, que abriu o festival.

Na mostra Panorama do Cinema Mundial, teve o divertidíssimo thriller português “Call Girl”, de António-Pedro Vasconcelos. A trama gira em torno da contratação de uma garota de programa para seduzir o político que pode facilitar a vida de uma empreiteira que, por sua vez, quer construir um empreendimento turístico no imenso bosque de uma cidade do interior. A trama é bem engendrada e muito bem contada, os atores são extraordinários e a protagonista é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. E trabalha direitinho a danada da Soraia Chaves, apesar de seu talento competir o tempo todo com seu corpo deslumbrante, em cenas bastante eróticas, mas nunca deselegantes. Porém, o melhor de Call Girl é mesmo o roteiro, o qual surpreende o tempo todo pelas tiradas mais óbvias possíveis. E aí eu passei a entender melhor a sutileza do humor português. Imperdível!

Outro filme imperdível da mostra Panorama é “Valsa para Bashir”, de Ari Folman. A animação de longa-metragem feita em co-produção de Israel, França e Alemanha, parte de um encontro num bar de Tel Aviv entre o diretor do filme e um velho amigo que lhe conta um sonho recorrente, no qual é perseguido por 26 cães raivosos. Veteranos da Guerra do Líbano, nos anos 80, eles concluem que o sonho está ligado à experiência deles no exército israelense. Como não consegue se lembrar desse período, Ari procura outros companheiros de armas para tentar resgatar sua memória, e acaba por descobrir a verdade do terrível massacre de Sabra e Shatilla (campo de refugiados palestinos no Líbano).

Tudo isso é contado numa técnica de animação que nos remete ao melhor do cinema noir. Ótimos diálogos e texto e subtexto que não subestimam a inteligência do espectador. Como eu disse acima, é um filme imperdível. Para quem se interessa por política internacional, ou não.

Entre os documentários da mostra competitiva vale destacar “Palavra (En)cantada”, de Helena Solberg, que propõe uma reflexão sobre a relação entre poesia, literatura e música popular no Brasil. Para tanto, a diretora alterna depoimentos com números musicais e faz dessa costura o fio condutor da narrativa do seu longa-metragem. Como não podia deixar de ser, Chico Buarque é a melhor figura em campo. Mas tem também a participação, entre outros, Adriana Calcanhoto, Maria Bethania, Martinho da Vila, Arnaldo Antunes e Lirinha. No entanto, são os depoimentos de Lenine e Tom Zé que traçam as melhores considerações sobre o tema. Enfim, “Palavra (Em)cantada é um belo trabalho de investigação da alma brasileira que tem na cultura oral e musical sua âncora de identidade.

Apesar de ter assistido aos dois filmes de Ficção mais festejados pela mídia (com certeza, por serem dirigidos por atores globais), não vou comentar “Feliz Natal” , de Selton Mello; nem “A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergaele. Digo apenas que como diretores, os dois são ótimos atores.

E, por último, chamo atenção para o filme de David França Mendes, o melhor da Mostra Hors-Concours. Para este seu primeiro longa-metragem de ficção, David – que fez dobradinha de sucesso com Vicente Amorim em “2000 Nordestes” e “O Caminho das Nuvens” – escolheu se basear no livro de Sérgio Sant’Anna, “Um Romance de Geração”. E fez uma obra que lembra muito “Ricardo III”, de All Pacino. Ou seja, construiu sua narrativa a partir da leitura e ensaios da peça. A diferença está na escalação de três atrizes para o papel feminino. E aí reside o único defeito do filme: o espectador tem que agüentar ver algumas das cenas repetidas com cada uma delas. É dose. Acontece que o texto é muito bom e a presença do sempre brilhante Sérgio Sant’Anna no elenco valoriza a discussão sobre a relação entre Carlos Santeiro (Isaak Bernat), o escritor que não escreve, e a jornalista que chega no início da peça para entrevistá-lo (Nina Morena, Suzana Ribeiro e Lorena Da Silva). Todos estão ótimos em seus papéis, mas Isaak tem uma atuação notável. Mas quem levou o troféu Redentor de melhor ator do Festival do Rio foi Daniel de Oliveira, por seu trabalho em " A Festa da Menina Morta". Um grande equívoco, pois Oliveira faz uma caricatura demasiado estriônica do seu personagem. E compõe um homosexual que não fala, mas berra; não tem subjetividade, apenas trejeitos. Quem se lembra da interpretação de William Hurt no papel de Molina, no "Beijo da Mulher Aranha", sabe do que estou falando.


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* Meu pai, Luiz Gonzaga Moura, foi herói da Segunda Guerra Mundial. Ferido duas vezes em combate, era o comandante do Batalhão de Reconhecimento do Regimento Sampaio. Major da Força Expedicionária Brasileira, na campanha da Itália, foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul.
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Método & Disciplina

Bruno Barreto mostrou confiar no seu taco de diretor ao decidir fazer o filme “Última parada 174”, depois do grande sucesso do documentário de José Padilha sobre o mesmo tema. Digo isso, porque, por mais que difiram na forma, os dois longas-metragens seriam fatalmente comparados. No entanto, Barreto partiu justamente de um dos depoimentos de “Ônibus 174” para desenvolver a história de Sandro do Nascimento, o sobrevivente da Chacina da Candelária que, sete anos depois, em junho de 2000, tomou como reféns onze passageiros do coletivo da linha Gávea- Central do Brasil, o 174.

O testemunho da doméstica que decidiu adotar Sandro, já quase adulto – e que foi a única pessoa presente ao seu enterro, inspirou o fio da trama que percorre a biografia romanceada do rapaz. O filme começa no dia em que Sandro, aos nove anos, vê sua mãe assassinada a facadas no chão do seu próprio bar, em São Gonçalo. A partir daí, ele foge da casa da tia, ganha as ruas, entra nas drogas, cai no crime, passa por instituições de menores, apaixona-se, vira assaltante e morre no desfecho trágico do seqüestro que paralisou, por cinco horas, a Zona Sul do Rio de Janeiro.

Jean-Luc Godard disse, certa vez, que, para ser bom, um documentário deve parecer um filme de ficção, e vice-versa. Aí reside a desvantagem da obra de Bruno Barreto na comparação entre as duas produções. Padilha montou imagens do seqüestro (gravadas por emissoras de televisão), depoimentos de especialistas e entrevistas com pessoas que conviveram com Sandro de forma que seu documentário seguisse a curva dramática da narrativa do gênero policial. Desta forma, ao apostar na tensão da evolução dos fatos, ele mantém o suspense do seqüestro enquanto traça o perfil do seqüestrador. Já Bruno Barreto adota o desenho da narrativa linear para contar a vida de Sandro do Nascimento. Desta forma, dilui a carga dramática de uma história que, apesar de real, não surpreende. Até mesmo porque tem um final amplamente conhecido.

Há também no filme de Barreto algumas associações desnecessárias, como um copo quebrado toda vez que Sandro vai se “dar mal” (como aconteceu no dia em que ele viu a mãe morta). É um recurso precário para alcançar a dimensão psicológica do personagem, e acaba por esvaziar o impacto da brutalidade que cerca o cotidiano de um menino de rua.

Mas esses são pecadilhos não chegam a comprometer “Última parada 174”. Pesa mais a favor do filme o olhar humano que o diretor lança sobre a questão da violência que, no Rio de Janeiro, e nesse caso específico, transborda da favela para o asfalto. Quase sempre provocando reações irracionais, quando não raivosas, do lado de cá da cidade.

Ao desprezar o preto no branco das explicações simplistas para problemas complicados, e observar nuances no enfoque de personagens marginais, Bruno Barreto mostra sensibilidade social e atenção ao mundo que o cerca, dando um belo exemplo de não-indiferença. Ao adotar um ritmo que favorece a reflexão, ele esmiúça a condição existencial de um garoto que, como tantos outros, não perdeu uma única oportunidade de fazer a coisa errada.

Contada desta forma, sem se arrogar o direito de apontar para o que é certo e o que é errado, a história de Sandro do Nascimento por Bruno Barreto focaliza a gênese de um tipo de delinqüência que, pelas circunstâncias invariavelmente adversas, grassa nas áreas mais carentes da cidade: a combinação de baixa escolaridade com alto consumo de drogas.

A título de ilustrar essa teoria, lembro a resposta de Mick Jagger para o repórter que quis saber como ele conseguiu ultrapassar, sem grandes derrapadas, a fase de excessos de sexo e drogas que costuma vir junto com o sucesso no mundo do rock’n roll. O bardo inglês respondeu que teve uma infância muito simples, beirando mesmo a pobreza, mas que recebera como herança um legado de valor inestimável. Seus pais, professores primários, deram-lhe, desde cedo, método e disciplina.

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