Um jeito tupinambá de ser

Outro dia, numa entrevista para o programa Cidade de Leitores sobre a obra de Darcy Ribeiro, o professor Bessa Freire contou uma passagem ótima de se contar ocorrida com os tupinambás, que formavam a grande maioria entre as nações indígenas brasileiras na época do Descobrimento. E desde então, a idéia que a história encerra me serve de parâmetro quando estou às voltas com algum opressor de plantão, daqueles que não faltam no mundo de hoje, e que fazem da cobrança um exercício constante, quase um cacoete.


Foi na época da Invasão Holandesa, quando um português, autoridade na região, combinou com um chefe tupinambá uma investida contra os inimigos em comum. A batalha ocorreria em determinada hora e local, dali a um mês, tempo necessário para os preparativos. Ficou acertado que os índios, guerreiros notáveis, viriam em grande número se juntar ao contingente de brasileiros e portugueses que tentavam sem sucesso a expulsão dos intrusos.


Acontece que no dia da batalha os tupinambás não apareceram, não mandaram aviso, desculpas, uma justificativa se quer. O que além de decepcionar, provocou muita raiva no portuga, poi teve que adiar o combate e ainda por cima dar satisfações à metrópole.

Passada uma lua do incidente, aparece na cidade para uma visita à mesma autoridade o ditoso chefe tupinambá, com seu séquito, seus belos adornos e sua atitude mais que altiva, marrenta até. Interpelado pelo rabugento político, o índio respondeu que não comparecera ao encontro porque tivera melhor coisa pra fazer e que para governo dos brancos seria bom que soubessem que um tupinambá não é escravo sequer da própria palavra.

Moral da história: não me chamem pra roubada que eu sou tupinambá. E quem quiser conhecer mais sobre a história e cultura desses indígenas – conhecidos no Rio de Janeiro como Tamoios –, os quais contribuíram e muito para a formação da mentalidade carioca, deve ler Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa.

No livro, Mussa, um carioca da gema, reconstitui a mitologia dos antigos tupinambás juntando a pesquisa de documentos históricos com relatos de alguns dos nossos primeiros cronistas. Entre eles André Thevet, um frade católico que veio para o Brasil, por volta de 1550, durante a ocupação da Baía de Guanabara pelos franceses e, acompanhado de um intérprete, conviveu com os indígenas registrando vários aspectos da cultura tupi.

E é com uma porção dessa cultura, salpicada de pitadas da tradição afro-brasileira (que conhece bem) que Mussa cria a saborosa narrativa de O senhor do lado esquerdo. Um romance do gênero policial, de prosa ágil e ao mesmo tempo manhosa, como a ginga do capoeirista Aniceto, personagem central e originalíssimo, que dá ao mais novo livro de Alberto Mussa, um sabor quase afrodisíaco.




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MEIA-NOITE EM PARIS

Em São Paulo o melhor programa no feriado de Corpus Christi foi assistir ao filme novo do Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. E foi um programão, porque todo filme do diretor suscita uma boa conversa depois da sessão, nem que seja para “tocar o pau”. Foi o que aconteceu com Vicky Cristina Barcelona, uma chatice que, no entanto, me rendeu uma crônica para a Gazeta Mercantil no tempo que ela existia. No mais, três atores jovens e bonitos jogando muita conversa jogada fora.

Já esse novo “Woody Allen” não tem tanto apelo sensorial (e sensual), mas é muito mais inventivo, aproveita melhor a atmosfera onírica da projeção numa sala de cinema e mexe mais com as fantasias de viagens reais e imaginárias que habitam quase todos os mortais, ou pelo menos os não caretas. Então, dá papo para um jantar, ou mesmo um vinhozinho depois do cinema, qualquer que seja a sua companhia (menos os caretas, é claro!).

Um amigo meu discorda. Ele acredita que só quem sabe quem é Georges Braque ou Luiz Buñuel pode aproveitar o filme. Os outros seriam como burros olhando pra palácio. Discordo. Cinema bom é bom para todo mundo, independentemente do nível cultural, social ou econômico. Lembro que levei meu filho Guilherme quando ele tinha dez anos para ver Ladrões de Bicicletas, de Vittório De Sica, na Cinemateca do MAM, e do impacto que o filme provocou nele. Tenho certeza de que até hoje a sua maneira de ver o mundo foi influenciada pelo realismo italiano de De Sica.

Agora, para quem já esteve e curtiu a capital da França, aí sim, Meia noite em Paris faz diferença. E logo no início do filme tem uma deliciosa sequência de planos da cidade que, em beleza arquitetônica é campeã. As tomadas sobre o Sena, o bateau mouche passando sob as centenárias pontes da cidade; o Trocadero, onde, num café e restaurante, pode-se, ao final da tarde, saborear macarrons e uma taça de champanhe enquanto se espera a chegada da noite para ver a Torre Eiffel iluminada.

Bem, são apenas reminiscências parisienses que eu já contei aqui mesmo neste blog, um tempo atrás, ao recordar os alegres e diuturnos passeios de bicicleta pela cidade luz. Portanto, para mim, qualquer oportunidade de ver Paris, mesmo que na telona, é um bom programa. E além do mais estávamos em São Paulo e, depois do cinema, fomos destrinchar o filme e saborear um vinhozinho tinto na Mercearia do Conde, que ninguém é de ferro e fazia frio naquela noite.

No dia seguinte, a boa era almoçar no Mercado Municipal. E como nos arredores fica a Rua 25 de março, não deu para resistir e fomos às compras. E aí é que eu fiquei mesmo besta. No mesmo Shopping 25 de Março, onde alguns anos atrás houve a grande e escandalosa apreensão das “moambas”, que levou à cadeia o contrabandista chinês, do qual não me lembro mais o nome, eram oferecidas bolsas e acessórios falsificados por preços módicos mesmo. E os guardas nas esquinas orientando os turistas com a maior tranquilidade:
_ Seu guarda, por favor, onde fica o Shopping 25 de Março?
_ Na próxima esquina, bem em frente à guarita da polícia.
_ Ah..., bom. Obrigada!

Isso é Brasil.

E depois de dar uma volta no bazar da contravenção, formos almoçar no Marcado Municipal. O lugar estava lotado, mas o seu Elídio, dono de um dos restaurantes no segundo andar, foi com a nossa cara e nos serviu no balcão mesmo uma caipiríssima mais do que honesta, verdadeiramente generosa! Enquanto a mesa não saía, e a nossa senha era de vários dígitos, fomos nos divertindo como os petiscos que, de tão fartos e gostosos, nos saciaram o apetite. O jeito era ceder a mesa para o casal seguinte e voltar para o hotel feliz da vida com as compras e o efeito da vodka tirando a gente um pouco do chão.

Não sei se foi por conta da euforia etílica, porém, ao passar por uma esquina, ao pé da ladeira que leva a multidão à entrada do metrô, me deslumbrei com a voz de uma menina que, em seus magrelos 15 anos, chamava à porta de uma galeria para a remarcação relâmpago de bolsas ao final do corredor. Pelo timbre da voz, pelo physique du rôle, pelos plenos pulmões com que anunciava o saldo, lembrou-me Edith Piaf cantando na rua para ganhar uns tostões.

E ela era bonita, e era esguia, e colocava talento no que fazia. Seria com certeza uma bela cantora, se alguém lhe descobrisse o dom e lhe ajudasse a burilar a voz. Um coral de igreja aos finais de semana e a garota estaria no caminho do estrelato. Não era ainda um esbanjamento, pela tenra idade. Nem um caso perdido pelo mesmo motivo. Mas que dá pena ver tanto potencial desperdiçado numa esquina fria da Pauliceia, ah, isso dá.

E isso também é Brasil.

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