Tranquila, até o próximo luar

Foi só eu reclamar que senti falta de um namorado na noite em que a lua deu um show de cores e brilhos sobre a baía de Guanabara, defronte ao meu terraço, para os amigos se empenharem em me arranjar um pretendente.

Foi assim que aceitei o encontro com o advogado cinquentão, bem apessoado, boa altura, corpo esguio e conservado na corrida diária, mais três aulas de ginástica por semana. Convidou-me para jantar. Eu já o conhecia de vista, de festas de casamento e aniversários. Tivemos primeiro uma longa conversa por telefone e marcamos um encontro para o sábado seguinte. À hora marcada ele veio me buscar na porta de casa e fomos ao meu restaurante preferido em Ipanema. A conversa não foi encantadora, mas ele fala corretamente e come com educação, dois pré-requisitos indispensáveis para um namoro vingar. Na volta, ao me deixar em casa, pediu um beijo de boa noite. Gostei, nem tanto do beijo, mas da elegância de observar as regras de um primeiro encontro. Pedir um beijo é uma maneira de homenagear a dama, de dizer-lhe que a saída foi agradável e que, com todo o respeito, gostaria de ir além. E antes que eu saltasse do carro, convidou-me para uma caminhada, no dia seguinte, no calçadão. Aceitei e me arrependi. Foi chato e cansativo, pois ele manteve um ritmo acelerado, demonstrando que não terminar o percurso em tempo determinado seria um transtorno. E ainda teve que ir de ponta à ponta da praia, até tocar a mão na pedra do Arpoador, como que para celebrar a chegada, cumprindo o que me pareceu ser um ritual. Quer dizer, o cara é um sistemático.

Mas o pior foi a volta. Para me deixar em casa, ele pegou o caminho mais longo possível, botou um samba enredo no som do carro e veio cantando a música de lá até a minha porta, nos mínimos detalhes, com todas as letras, inclusive o repique do refrão. Um porre!

Mas desta vez não teve nem beijo, nem beijinho. Dei um tchau e saí do carro que nem um foguete. Não teve sequer um aceno, de longe, e, sinceramente, vim pra casa na esperança de que ele não me ligasse nunca mais. E se ligar, não atendo, pois tirei o som tanto do aparelho fixo quanto do celular.

Volto correndo para a leitura dos Contos Latinoamericanos Eternos. E é na companhia deste livro que pretendo passar o resto do meu domingo. São 23 histórias escolhidas entre o que há de melhor na obra dos maiores escritores da região. E ao final do volume, há uma pequena biografia dos autores, com comentários sobre a obra de cada um e indicação de seus livros mais importantes. Desta forma, fica-se sabendo que foi o mexicano Juan Rulfo (1918-1986) que apresentou na obra-prima Pedro Páramo, de 1955, os fundamentos da narrativa que passou a ser conhecida como realismo mágico, depois enriquecida por outros brilhantes escritores hispano-americanos.

O livro, organizado por Alicia Ramal, é uma viagem pela criação e imaginação de uma penca de gênios, como Jorge Luis Borges e “O Alefh”, uma de suas mais fascinantes histórias; Julio Cortázar (1914-1984) e as atmosferas inquietantes que cria, e onde a realidade se dissolve, o insólito se instala, e o mistério reconstrói o verossímil. É o que acontece em “Casa Tomada”: personagens comuns que vivem numa monotonia que virá a ser a sua próproa desgraça. Também tem o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) e uma das mais surpreendentes e criativas histórias de seu repertório. “Viagem à Semente” é uma narrativa contada de trás para a frente com uma extraordinária riqueza de imagens e um labirinto de palavras que se deslocam através do tempo, num fio de acontecimentos e emoções que ligam vida e morte.

Para terminar essa postagem que já vai longa, como a cantoria do pretendente dispensado mais acima, destaco o lirismo do conto “Minha vida com a onda”, de Octávio Paz (1914-1998). Ali, no homem que leva uma onda do mar para casa, há uma maneira muito particular de ver o mundo. Só mesmo um poeta, e da qualidade do ganhador do Prêmio Nobel de literatura de 1990, para escrever essa história pontuada pelo inesperado.

E assim, no aconchego do meu lar, dispondo de quase tudo o que preciso para ser feliz, vou passar tranquilamente o restante do domingo. E seguir em frente sem pretendente, mas sem carências e sem remorsos, pelo menos até o próximo luar.


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Inútil paisagem

Estou tão em falta com este blog e nem sei o que fazer para me redimir da pouquíssima assiduidade com que venho escrevendo aqui. Não vou repetir a ladainha das postagens anteriores, fiquem tranqüilos. Contudo, continuo mergulhada em livros e pesquisas, porém isso só deveria servir de estímulo para conversar ainda mais com vocês e comentar as minhas descobertas, como a da semana passada. Foi no programa que fiz sobre a “Virada Russa” na literatura, aproveitando a oportunidade da exposição em cartaz no CCBB.

Seguindo a linha dos curadores da mostra de 123 obras do Museu Estatal de São Petesburgo – que faz um panorama das artes plásticas na Rússia de 1890 a 1930 –, busquei para discussão no estúdio autores que se identificassem com os movimentos literários do mesmo período. Assim, escolhi para o período pré-revolucionário Máximo Gorki, um dos maiores mestres da prosa de ficção russa que, além de ser o primeiro a dar voz ao homem comum, fez da literatura um instrumento de luta, conscientizando milhões de leitores para as injustiças sociais da política absolutista do czar.

A conversa sobre o autor de “A Mãe” teve direito a um trecho do filme do mesmo nome, de 1926, do diretor Vsevolod Pudovkin, um dos grandes nomes do cinema de vanguarda russo, já anunciando o que viria a seguir.

Para esmiuçar o movimento conhecido como vanguardas russas, que trouxe novas propostas estéticas e conceituais em pintura, poesia, teatro e cinema, constituindo um ambiente de grande efervescência ideológica e artística na Rússia do início do século XX, escolhi Maiakóviski, é claro. Ele que foi ao mesmo tempo emissário e propagandista da Revolução de 1917, crítico radical da desigualdade social e ainda, com sua poesia revolucionária, propôs novas formas para um conteúdo novo e engajado.

Essa decisão era pule de dez, pois eu bem sabia que o autor de “A Nuvem de calça” colocou-se com ardor a serviço da revolução, e em colaboração com artistas construtivistas pôs a arte a serviço da propaganda dando início à arte aplicada ao mundo moderno, inventando o que viria a ser o design.

Mais demorado foi o processo de escolher um escritor que se identificasse com o período posterior à Revolução de Outrubro, o realismo socialista. Em conversa com um colega, o pesquisador Fernando Madeu, conhecedor da língua e literatura russas, decidi-me por “Cavalaria Vermelha” de Isaac Babel.

Que formidável foi descobrir um escritor que transformou sua experiência nas batalhas contra a cavalaria polonesa, na Guerra Civil de 1920, em um livro de contos breves de extraordinário romantismo bélico, com as cores ardentes do sangue e do fogo, mas também com os suaves lilases de um pôr-do-sol de outono. Babel faz do dia a dia nos acampamentos e trincheiras um épico, transformando pessoas simples em heróis, e passagens corriqueiras e prosaicas em momentos sublimes.

Bem, nem é preciso dizer que o programa foi um sucesso, com inserções do cinema de vanguarda russo e uma visita guiada à exposição “Virada Russa” com o crítico de arte Fernando Cochiarale.

Portanto, sexta-feira, finda a jornada semanal, exausta, mas satisfeita com o reusltado do trabalho, cheguei em casa, fiz um uísque duplo e fui para a varanda aproveitar a sensação de missão cumprida. Foi quando me deparei com a enorme lua em meia-taça despejando sobre a baía de Guanabara uma faixa de luz cor de prata, larga e volúvel ao movimento das águas. Continuei a tomar meu drinque languidamente em minha poltrona preferida, mas sentindo pela primeira vez em meses a desconcertante falta de um namorado. Lembrei-me de Tom Jobim e de sua Inútil paisagem.


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