Tropa de Elite 2

Fui das primeiras pessoas a denunciar o caráter fascista do filme Tropa de Elite, aqui mesmo neste blog. Na época, assisti ao filme numa seção da tarde, na primeira semana do lançamento, antes de ouvir outras opiniões. E fiquei indignada com a justificativa do uso da violência por uma força policial que deveria, acima de tudo, respeitar o estado de direito.

Justificativa evidente na forma como o roteiro tratava o comandante da tropa de elite da PM, como um verdadeiro “herói”. Ora, o herói é, em toda mitologia, seja ela grega, judaica, cristã ou ianomâmi, um exemplo de desafio, conquista e superação, servido aos simples mortais como modelo para ser admirado.

É aí que se dá o caráter fascista do filme: o uso da violência por quem está do lado “certo” da história contra todos os que ousam atravessar seu caminho. Mesmo um garoto de não mais que 13 anos que, seduzido pela possibilidade de comprar um par de tênis importado, vira olheiro do tráfico.

Mostrar um soldado de elite espancando um adolescente na tela e, ainda por cima, levar a plateia a aplaudi-lo é chegar ao fim da linha para uma sociedade que se quer civilizada.

Foi só por causa da insistência de um amigo no qual deposito bastante confiança que me aventurei a assistir ao Tropa de Elite 2. E volto a este blog, desta vez para declarar que o filme é muito bom, que o diretor José Padilha se redimiu perante a sociedade ao assumir, nas palavras do agora Coronel Nascimento, o caráter fascista do antigo Capitão Nascimento.

Além disso, o filme conta uma parte da história recente do Rio de Janeiro, trata da relação espúria entre a política, a polícia e o crime organizado, desmascara o projeto de poder dessa verdadeira máfia que é a milícia e ainda dá uma pernada nos que defendiam a ação dos milicianos nas comunidades como um mal menor, seja por falta de informação, má fé ou por posição ideológica.

Mas o lado engraçado é que o pessoal da extrema direita acha o filme ruim. Diz que esse agora não tem nada a ver com o “Tropa” original, e bóia na história do personagem Diogo Fraga, baseado em Marcelo Freixo, professor de História que se tornou deputado estadual,lutou, conseguiu abrir e presidiu a CPI das milícias.

Marcelo Freixo se reelegeu no dia 3 de outubro, antes do lançamento do filme, portanto, para um segundo mandato na Assembléia Legislativa, pelo PSOL. Foi o segundo deputado mais votado no estado. E é por tudo isso, e por ser um filme bastante inteligente também, que eu recomendo aos leitores o Tropa de Elite 2.

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PLAGAS TIJUCANAS

A crônica surgiu na Idade Média com a função de registrar fatos reais ao longo do tempo. E ao longo do tempo foi perdendo o caráter de documento oficial, na medida em que se aproximava do leitor. Entre nós, a crônica apareceu vinculada à imprensa e ao compromisso romântico de fundação de uma literatura nacional, para se consolidar, ao passar dos anos, como gênero literário mais apreciado pelos brasileiros.

E foi no Rio de Janeiro que a crônica caiu no gosto do povo. Pois além de se ver muitas vezes retratado em textos da mais fina tradição, o carioca reconheceu em bairros, ruas, bulevares e recantos da cidade cenários reveladores da mentalidade da época e das vivências das diferentes classes sociais.

Porém, comentar cenas do cotidiano, lançando um olhar poético sobre personagens, hábitos e costumes em determinado tempo e espaço não é privilégio da literatura. O cinema tem dado demonstração de grande vocação para a crônica, e Amarcord, de Fellini, é o exemplo mais corriqueiro e universal.

E foi justamente buscando exemplos nacionais de crônicas cinematográficas para levar aos meus telespectadores que fui parar na Praça Xavier de Brito, numa manhã gelada de sol. Foi o dia mais frio de outubro desde 96, segundo o jornal O Globo. Talvez pelo inusitado do clima, talvez pelo azul puríssimo do céu, a experiência tenha me parecido mágica; e boa de contar.

O lugar fica na Tijuca, um dos bairros do Rio mais mencionados nas páginas literárias e tão esquecido do cinema nacional. É a praça dos cavalinhos. Não sei se você já a conhece ou se dela já ouviu falar. Se tiver a oportunidade de visitá-la, não perca. Vai encontrar um espaço com tudo o que há de bom num grande centro urbano: lazer e diversão ao ar livre ou ao rés do chão para todos os gostos e idades.

E o chão de areia rústica das pistas que se cruzam na arquitetura da praça guardava ainda os arabescos de piaçava do pessoal da COMLURB que acabara de passar; para minha grata recepção. Olhando para o alto, vi as árvores frondosas que sombreiam o lugar. E me pareceu serem elas os mimos e cuidados do departamento de parques e jardins, tal a variedade de adornos vegetais pendendo de seus galhos generosos.

A praça ainda tem coreto, monumento e chafariz. Tem também área coberta com mesinhas para o carteado da turma da terceira idade. Mulheres jovens e nem tão jovens, mas charmosas, praticando o jogging diário; e a mãe empurrando o carrinho do bebê e papeando no celular.

Se você gosta de chope gelado, no entorno da praça é o que não falta. Experimente o do Bar do Pavão. Tome quantos copos agüentar e depois vá almoçar no Rei do Bacalhau, ali do lado. Mas, cuidado, não faça muito barulho que o lugar é tranqüilo por demais. Não há muito trânsito, ninguém corre, nem buzina. Leve a sua namorada e vá sentar-se com ela num dos bancos da praça dos cavalinhos. Espere desafobado o anoitecer, e faça um pedido à primeira estrela que aparecer. Você pode até não voltar lá. Mas mesmo que o seu desejo não se realize, você nunca vai esquecer a tarde que passou ligeira nas doces plagas tijucanas.


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O país do desperdício

São Paulo é tudo de bom para uma visita rápida. Foi no mês de maio, do tradicional tempo bom. Independentemente da estação, seja inverno ou verão, o clima no mês das noivas costuma ser de sol e temperatura amena em quase todo o planeta. Então, não tem muito erro na hora de fazer a mala, o que já alivia bastante a má vontade do carioca em relação à capital paulista. Porque do contrário, a gente nunca sabe o tempo que pode fazer na terra da garoa. E aí é que a coisa pega, pois para não ser pego de calça curta, deve-se carregar duas vezes mais roupas, para inverno (se chover), e para verão (em dias de sol). Mas em maio não, em maio os dias são limpinhos, azulzinhos, faz friozinho, e à noite é mais frio ainda, mas sem aquela umidade enjoada no ar.

Eu fui à cidade principalmente para ver duas exposições de artes plásticas que me interessavam sobremaneira. A primeira, uma retrospectiva em homenagem ao Hélio Oiticica, um artista que cada vez mais se torna referência para a compreensão da arte contemporânea. Um intelectual que refletia sobre seu trabalho, registrando em texto suas experiências artísticas, suas intenções com cada obra. E esclarecendo, sempre que tinha a oportunidade, em entrevistas e depoimentos, seu processo criador.

A mostra põe à disposição do público o pensamento e inúmeras obras de Oiticica, entre elas o Parangolé (“Tudo começou com a formulação do Parangolé, em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, com a arquitetura orgânica das favelas cariocas ...”), na sede do Itaú Cultural na Avenida Paulista. E ainda distribui, em locais de grande fluxo na cidade, obras da série Penetráveis, construídas de forma a serem penetradas pelo espectador. Não poderia ser melhor a ilustração de um dos principais conceitos elaborados por Hélio Oiticica, o de que a arte só se completa com a participação das pessoas.

A outra exposição foi Andy Warhol, Mr. América, na Estação Pinacoteca. O espaço é formidável e merece uma postagem especial, já que entre outras coisas abriga uma homenagem às vítimas do DoiCodi, na época da ditadura militar. Mas voltando à mostra de Warhol, a maior exposição do gênio da arte pop já feita no Brasil nos revela um artista enraizado no seu tempo e, por isso mesmo, capaz de traduzir em comentários perspicazes e nos trabalhos violentamente poéticos, o pathos da América da segunda metade do século XX.

Na mostra estão desde as Latas de Sopa Campbell’s aos retratos de Mohamed Ali e Pelé. Ao lado deste último um comentário do artista do dia em que fotografou o rei do futebol, em sua casa, em Nova York. Warhol diz que uma das coisas mais interessantes que viu na vida foi o fato de que no Brasil há pessoas de várias cores diferentes na mesma família.

É mesmo assim o nosso país, tão cheio de possibilidades que ainda não conseguimos entendê-lo muito bem. Quanto tempo perdido na discussão de cotas raciais! Quanto tempo perdido em disputas inócuas. Veja só, temos duas cidades como Rio e São Paulo, há menos de uma hora de avião uma da outra, as duas com aeroportos próximos ao centro, cada uma com mais atrações que a outra e em vez de promover o entrosamento cada vez maior entre elas e seus moradores, um intercâmbio comercial, cultural, artístico e turístico, que favoreceria as duas, estamos sempre a compará-las numa competição que não leva a nada.

É mesmo o país do desperdício esse Brasil.


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Jogando para a plateia

Fiquei Abismada quando ouvi o presidente Lula afirmar que é muito difícil para as autoridades retirar os moradores de áreas de risco porque eles voltam sempre. Pior foi Lula falar em tom de solidariedade ao governador Sérgio Cabral, ao seu lado num evento no dia seguinte às chuvas que provocaram a situação de calamidade no Rio de Janeiro no início do mês. Quando o que era de se esperar, por Lula cultivar a imagem de presidente que mais fez pelos despossuídos na história desse país, seria além da mensagem de pesar, a promessa de empenho em ajudar a dar condições para que toda a população do Rio possa morar e trabalhar com dignidade.

Mas Lula falou com naturalidade apesar de saber que ninguém mora em área de risco porque quer. O presidente tem consciência, pela própria história de militância na esquerda, que a origem e crescimento das favelas no Rio de Janeiro têm a ver com financiamento para a construção de conjuntos habitacionais para a população de baixa renda, e transporte seguro, rápido e barato para levar que essas pessoas ao trabalho a um custo que lhes caiba no orçamento.

Então, por que o comentário leviano sobre a índole dessa gente despossuída de tudo, ao ponto de ir morar sobre um lixão? Porque Lula conhece o eleitorado do Rio. Porque, com o senso de oportunidade que lhe é peculiar, o presidente sabe que, aqui, a classe média é a grande formadora de opinião. E essas pessoas não têm compaixão. Em meio ao desespero das famílias e vizinhos das vítimas soterradas em lama e chorume, o que se ouvia no trabalho, na praia, no bar da esquina e na fila dos cinemas da Zona Sul era a voz da censura e do rancor disfarçada por entre expressões não propriamente de tristeza, mas, no máximo, de chateação.

Pois a classe média carioca é reacionária, exclusivista, insensível e preguiçosa. Para falar apenas de um detalhe emblemático da situação que se criou na cidade, essa gente insensível nunca abriu mão da doméstica para lhe servir de manhã à noite, e sem hora para ir dormir no cubículo claustrofóbico chamado até hoje de quarto-de-empregada. E por isso mesmo nunca se preocupou em reivindicar transporte adequado para que pudessem morar dignamente com suas famílias nos subúrbios e periferias da cidade e vir trabalhar na Zona Sul gastando menos de três a quatro horas do seu tempo de sono e descanso e de trinta por cento do seu salário.

Assim nasceram e cresceram as favelas que tanto incomodam o morador do asfalto. Ciente desse desconforto frívolo, tipicamente carioca, Lula preferiu censurar a parte fraca, pôs-se do lado em que a corda nunca arrebenta, e se absteve de apontar a irresponsabilidade histórica da elite do Rio de Janeiro em aceitar que políticos e governantes tratem grande parte da população como criaturas de segunda classe, e não como cidadãos.


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Cuba Libre

A recente viagem a Cuba foi uma das melhores que já fiz na vida. Primeiro porque era um sonho antigo acalentado desde o início da minha carreira no jornalismo, quando só os diretores de jornais, os editores-chefes e os colunistas renomados eram convidados a visitar a ilha de Fidel. Nessa época, as delegações brasileiras eram recebidas com pompa e circunstância pelo regime castrista, de resto fechado ao turismo de um modo geral. E os chefes voltavam à redação contando maravilhas da viagem, deixando-nos, os simples operários da notícia, invejosos daquele privilégio.


O tempo passou e não houve uma oportunidade igual para mim, mesmo depois da abertura do país para o turismo. Hoje Havana é uma das cidades mais visitadas do Caribe, tem hotéis excelentes, um dos mais belos conjuntos arquitetônico da América Latina, os melhores músicos do mundo e os drinques mais saborosos do planeta. Mas o segundo motivo de minha extraordinária satisfação em visitar a ilha socialista não foi de interesse profissional, cultural ou artístico, mas por motivo fútil. Vou fazer uma volta no tempo para contar uma passagem da minha vida que talvez revele a origem de eu ter um temperamento rebelde.


Como toda adolescente, eu colecionava fotografias de artistas de cinema e, em vez de álbum, colava as fotos recortadas das revistas do lado de dentro da porta do meu armário. Era o espaço mais reservado possível na casa onde eu vivia com meus pais, irmãos e avó. E como as fotos eram presas com durex, eram trocadas logo que as revistas da semana anterior fossem substituídas pelas mais novas. Desta forma se mantinha atualizada minha galeria de galãs.


Um belo dia, folheando a revista Manchete ou O Cruzeiro, vi um rosto tão bonito quanto os de Alain Delon e Paul Newman, porém com um quê a mais, um certa aura de mártir; um ar romântico e ao mesmo tempo desafiador. À doçura do olhar, ele combinada uma postura altiva, quase arrogante. Tratava-se de um homem jovem, de pele clara e cabelos negros revoltos. A barba escura contrastava com as feições suaves, e o bigode hesitante delineava uma boca quase feminina. Belo como as mais cobiçadas estrelas de Hollywood, e ao mesmo tempo tão diferente, tão fora de padrão.


A foto em preto e branco, de página inteira, estava em destaque no centro da revista, onde só as celebridades mais importantes da atualidade tinham lugar. E, dali, meu ídolo mais recente foi direto para o meu recanto idílico de menina moça. Colei a foto na altura um pouco acima do meu rosto, de forma que pudéssemos cruzar o olhar sem dificuldade. E eu falseava, buscava não me dar conta da sua existência, abria o armário distraída, procurando apressada uma calcinha, um par de meias ... Para em seguida me surpreender e até mesmo corar sob o olhar daquele herói romântico, descobridor dos meus desejos mais íntimos.


Pena que o namoro durou pouco. Minha mãe, eleitora da UDN e fã de Carlos Lacerda, em sua inspeção periódica ao meu quarto, e num de seus arroubos cotidianos de voluntarismo, arrancou o recorte da porta do armário e rasgou o meu Che Guevara em pedacinhos. Transtornada, ela batia no peito e alardeava suas convicções patrióticas e religiosas, na casa de quem jamais entraria foto de um COMUNISTA. Eu ainda levei uns tapas quando argumentei que a foto do COMUNISTA havia sido recortada da revista que ela mesma comprava e lia todas as semanas.


Foi um trauma. Nunca mais quis saber de fotografias de artistas de cinema. Em compensação vi crescer em todo o mundo a admiração pelo moço proibido de entrar em minha casa, e passei a experimentar o agradável sabor da revanche a cada pôster, botton ou camiseta estampada com a imagem de Che Guevara. Imagem esta que se espalhou rapidamente pelo mundo como símbolo maior de coragem, abnegação e coerência.


Agora vocês podem imaginar qual não foi o meu prazer ao me deparar, em Cuba, a toda hora, com a imagem daquele meu primeiro amor. Impresso em outdoors com mensagens educativas ao longo das estradas, nos saguões dos prédios públicos, nas entradas de museus, nas paredes das lojas, nos caixas dos bares, ou na monumental figura esculpida em bronze na fachada do Ministério do Interior, na Praça da Revolução.
Muito mais do que Fidel Castro, e mesmo José Marti, poeta e herói da independência, em Cuba, é Che Guevara a personalidade mais cultuada. Assim como no México há imagens de Nossa Senhora de Guadalupe por todo canto e recanto, em Havana, a célebre imagem de Che, clicada pelo fotojornalista Alberto Korda, paira sobre os cidadãos como um padroeiro, um padim Cícero em Juazeiro.


Por isso, mais uma vez e em grande estilo, eu fui à forra daquele dia em que dormi sem beijar meu ídolo de papel. Mas só eu sei que sonhei com seu olhar romântico noites seguidas e, até hoje, tenho a convicção de que Che Guevara, com sua aura de Santo Guerreiro, foi o homem mais sexy que eu conheci.



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Luar sobre Varadero

Desta vez o luar foi sobre Varadero. Veio sem alarde e sem reclame, no último dia da nossa viagem a Cuba. Depois do jantar, fomos andar na beira da praia, e com o mar ondulando nossos passos, repassamos, encharcados da lua cheia, cada instante do pouco tempo que já dura nosso amor...

... assim acabaram-se as férias mais adoraveis de que me lembro. Antes de Varadero, foram quatro noites em Havana, todas regadas ao bom rum do Caribe e embaladas por rumbas e boleros que, desde sempre, fizeram a trilha sonora das minhas mais românticas fantasias.

De dia Havana é ainda melhor. Que cidade linda! Não há capital mais limpa em todo o planeta. Pelo menos não nesta parte do mundo onde não falta o demônio, como diria Clarice Lispector, para quem a Suíça era bonita mas sofria de ausência do danado.

E como são belas e imponentes as construções de palácios e prédios públicos que vão do estilo colonial espanhol ao modernista, percorrendo cinco séculos de história latino americana. E tal conjunto arquitetônico de valor inestimável é disposto em largas alamedas em meio a amplas e arborizadas praças, algumas das quais se percorre pisando cerâmica impecavelmente conservada.

Permeando a grandiosidade das avenidas com seus monumentos imperiais, republicanos e revolucionários há as típicas ruelas de sobrados singelos com varandas de serralheria rústica. Nelas, há quase sempre uma corda onde roupas coloridas tremulam ao vento em ritmo de salsa, talvez querendo mostrar com poesia como a vida simples do povo faz a grandeza de uma nação.

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Afinidades Eletivas

É cedo. Chove pela primeira vez no Rio de Janeiro em mais de dez dias de um calor senegalês. E eu volto a este blog depois de um longo e tenebroso inverno. A metáfora é um clichê pra lá de gasto, dele lanço mão apenas para que fique entendido que o contato com vocês me fez falta nesse período no qual trabalhei em dobro para tirar umas férias que já vão pela metade. O batente duplicado naturalmente me estressou, mas agora gozo o ócio remunerado e, estimulada pela chuvinha fina que cai lá fora e o café fumegante que sorvo aos golinhos ligeiros, vou direto às novas.

Foi um ano bom. Fechei uma série de trinta programas de televisão sobre literatura brasileira e universal, do qual sou editora de conteúdo, roteirista e apresentadora. Foi um ano de desafios, de muito estudo, trabalho duro e pouco tempo livre, mas também de grandes satisfações e algum contratempo. O importante é que o saldo é positivo, e prova disso foi o fato de poder romper com amarras emocionais há muito rotas e já desnecessárias. Os reflexos da rebeldia fizeram-se notar mais precisamente no último Natal. O primeiro da alforria. Livre, fiz o que bem entendi na noite de 24 de dezembro. Inteira, não vi meus mais genuínos desejos estilhaçados pela tirania familiar; que costuma recrudescer nessa época do ano, por mais paradoxal que seja
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Sim, porque neste período é aberta a temporada de confraternização forçada, imposta por laços de família ou obrigações profissionais, que nem sempre coincidem com a admiração honesta, com a gratidão espontânea e o autêntico bem querer.

Porque o amor não precisa de data certa para dar demonstrações. Muito menos de presentes com preços superfaturados comprados no tumulto dos shoppings na véspera dos feriados. O amor prescinde das reuniões forçadas com parentes que passam o ano inteiro te derrubando e aproveitam a festa de “família” para te dar aquela última sacaneada do ano, regada a vinho quente e peru com farofa.

Pelo amor de Deus, amar é muito mais dar que receber ( outro clichê que me ocorre e do qual ando bastante convencida). Amar aos seus é deixá-los livres para curtir o que bem lhes aprouver, sem cobranças. Amar é entender que as carências são todas suas e que só há erros porque há acertos também. E se as carências são minhas vou tratá-las com o que tenho de melhor: senso prático.

Assim levei meus filhos e seus enteados, com as respectivas noras para uma noite de Natal diferente. Fomos todos ao cinema assistir a Avatar em 3D, com direito a jantar depois no Out Beck. E isso no dia 23 de dezembro. Que tal? Um programão, sem lembrancinhas e muito menos amigo oculto, essa coisa inventada não sei por quem, mas, em minha opinião, sem graça nenhuma. E no dia 24 fui cear com amigos queridos, na casa de um deles. Fui confraternizar com gente de quem gosto muito e com quem me apraz conversar. Gente escolhida reciprocamente ao longo da vida. Gente reunida por afinidades eletivas, como tão bem entendeu e escreveu Goethe no livro do mesmo nome.

(Escrevi este texto ontem, dia 15, quando até minha internet estava preguiçosa)

As outras novidades vêm a seguir. Aguarde !