Cuba Libre

A recente viagem a Cuba foi uma das melhores que já fiz na vida. Primeiro porque era um sonho antigo acalentado desde o início da minha carreira no jornalismo, quando só os diretores de jornais, os editores-chefes e os colunistas renomados eram convidados a visitar a ilha de Fidel. Nessa época, as delegações brasileiras eram recebidas com pompa e circunstância pelo regime castrista, de resto fechado ao turismo de um modo geral. E os chefes voltavam à redação contando maravilhas da viagem, deixando-nos, os simples operários da notícia, invejosos daquele privilégio.


O tempo passou e não houve uma oportunidade igual para mim, mesmo depois da abertura do país para o turismo. Hoje Havana é uma das cidades mais visitadas do Caribe, tem hotéis excelentes, um dos mais belos conjuntos arquitetônico da América Latina, os melhores músicos do mundo e os drinques mais saborosos do planeta. Mas o segundo motivo de minha extraordinária satisfação em visitar a ilha socialista não foi de interesse profissional, cultural ou artístico, mas por motivo fútil. Vou fazer uma volta no tempo para contar uma passagem da minha vida que talvez revele a origem de eu ter um temperamento rebelde.


Como toda adolescente, eu colecionava fotografias de artistas de cinema e, em vez de álbum, colava as fotos recortadas das revistas do lado de dentro da porta do meu armário. Era o espaço mais reservado possível na casa onde eu vivia com meus pais, irmãos e avó. E como as fotos eram presas com durex, eram trocadas logo que as revistas da semana anterior fossem substituídas pelas mais novas. Desta forma se mantinha atualizada minha galeria de galãs.


Um belo dia, folheando a revista Manchete ou O Cruzeiro, vi um rosto tão bonito quanto os de Alain Delon e Paul Newman, porém com um quê a mais, um certa aura de mártir; um ar romântico e ao mesmo tempo desafiador. À doçura do olhar, ele combinada uma postura altiva, quase arrogante. Tratava-se de um homem jovem, de pele clara e cabelos negros revoltos. A barba escura contrastava com as feições suaves, e o bigode hesitante delineava uma boca quase feminina. Belo como as mais cobiçadas estrelas de Hollywood, e ao mesmo tempo tão diferente, tão fora de padrão.


A foto em preto e branco, de página inteira, estava em destaque no centro da revista, onde só as celebridades mais importantes da atualidade tinham lugar. E, dali, meu ídolo mais recente foi direto para o meu recanto idílico de menina moça. Colei a foto na altura um pouco acima do meu rosto, de forma que pudéssemos cruzar o olhar sem dificuldade. E eu falseava, buscava não me dar conta da sua existência, abria o armário distraída, procurando apressada uma calcinha, um par de meias ... Para em seguida me surpreender e até mesmo corar sob o olhar daquele herói romântico, descobridor dos meus desejos mais íntimos.


Pena que o namoro durou pouco. Minha mãe, eleitora da UDN e fã de Carlos Lacerda, em sua inspeção periódica ao meu quarto, e num de seus arroubos cotidianos de voluntarismo, arrancou o recorte da porta do armário e rasgou o meu Che Guevara em pedacinhos. Transtornada, ela batia no peito e alardeava suas convicções patrióticas e religiosas, na casa de quem jamais entraria foto de um COMUNISTA. Eu ainda levei uns tapas quando argumentei que a foto do COMUNISTA havia sido recortada da revista que ela mesma comprava e lia todas as semanas.


Foi um trauma. Nunca mais quis saber de fotografias de artistas de cinema. Em compensação vi crescer em todo o mundo a admiração pelo moço proibido de entrar em minha casa, e passei a experimentar o agradável sabor da revanche a cada pôster, botton ou camiseta estampada com a imagem de Che Guevara. Imagem esta que se espalhou rapidamente pelo mundo como símbolo maior de coragem, abnegação e coerência.


Agora vocês podem imaginar qual não foi o meu prazer ao me deparar, em Cuba, a toda hora, com a imagem daquele meu primeiro amor. Impresso em outdoors com mensagens educativas ao longo das estradas, nos saguões dos prédios públicos, nas entradas de museus, nas paredes das lojas, nos caixas dos bares, ou na monumental figura esculpida em bronze na fachada do Ministério do Interior, na Praça da Revolução.
Muito mais do que Fidel Castro, e mesmo José Marti, poeta e herói da independência, em Cuba, é Che Guevara a personalidade mais cultuada. Assim como no México há imagens de Nossa Senhora de Guadalupe por todo canto e recanto, em Havana, a célebre imagem de Che, clicada pelo fotojornalista Alberto Korda, paira sobre os cidadãos como um padroeiro, um padim Cícero em Juazeiro.


Por isso, mais uma vez e em grande estilo, eu fui à forra daquele dia em que dormi sem beijar meu ídolo de papel. Mas só eu sei que sonhei com seu olhar romântico noites seguidas e, até hoje, tenho a convicção de que Che Guevara, com sua aura de Santo Guerreiro, foi o homem mais sexy que eu conheci.



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Um comentário:

thiago disse...

depois de alguns amores aprendi que o amor é a liberdade consentida pela nossa honestidade, fé e coragem... e, para vivê-lo plenamente basta ouvir o coração que sempre terá razão, por mais incompreensível que possa parecer... e que é delicioso vivê-lo eternamente, pelo tempo de nossas vidas...