Outono no Rio

A tempestade desabou justo na hora de sairmos para o show do João Donato no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico. Havíamos combinado ir juntas naquele mesmo dia à tarde, quinta-feira passada, feriado de São Jorge. O espetáculo começaria daí a uma hora e só mesmo invocando o santo guerreiro para nos proteger da chuva torrencial e do vento forte que soprava sobre o Rio de Janeiro. Pensei que o programa tinha micado, mas em menos de meia hora o tempo melhorou. Por via das dúvidas calcei botas e, munida de guarda-chuva, fui buscar Fafá em Laranjeiras.

No carro, fomos conversando assuntos relacionados ao show que iríamos assistir, como as histórias que João Donato me contara um dia, numa entrevista. Uma delas relatava o fato de ele ter trocado o acordeon pelo piano, lá atrás, quando veio do Pará e tocava na orquestra do Goldem Room do Copacabana Palace. Na época, ele e João Gilberto eram camaradas e costumavam se encontrar depois do expediente para beber e tocar pelo Beco das Garrafas e boates da Avenida Princesa Isabel. Acontece que João Donato passava da conta e só no dia seguinte dava falta do instrumento, largado em algum inferninho visitado na noite anterior. Foi João Gilberto quem lhe sugeriu, pelas razões óbvias, e ele concordou, num rasgo de sensatez, que o melhor seria tocar piano. E foi assim que graças à contração da inteligência minimalista de João Gilberto com o talento descomunal de joão Donato, somos brindados há décadas com o teclado suingado do músico paraense.

A essa altura, a chuva arrefecera ainda mais, porém o trânsito não estava nada bom. O jeito era continuar jogando conversa fora. Lembrado que estávamos a caminho do Espaço Tom Jobim, Fafá contou que conhecera o músico há muito tempo, quando, no frescor dos seus dezessete anos, acompanhava vez por outra o tio boêmio pela noite da cidade. Uma vez, já bem tarde, no Degrau, o dono do restaurante desceu a porta de correr que dava para a rua decretando a lotação da casa. De repente, ouviu-se uma batida na ondulação reverberante do aço e em seguida a voz do lado de fora dizendo que era o Antônio. Imagina se vão abrir a porta para um Antônio qualquer?, pensou Fafá. Mas o dono foi até lá e deu passagem a Antônio Carlos Jobim que adentrou o recinto calmamente e, para alegria da jovem, sentou-se ao seu lado. Fafá conta que o maestro só falava de Shakespeare, por quem andava obcecado ultimamente. Foi chato?, perguntei. De forma alguma, respondeu Fafá. Inclusive minha amiga guardou por muito tempo um guardanapo onde o compositor de Garota de Ipanema reproduzira os versos do bardo inglês de que mais gostava. Estava claro que aquela fora mais uma das célebres obsessões passageiras de Tom Jobim. Chato é o sujeito que fica com a mesma mania a vida inteira, concluímos rindo gostosamente enquanto estacionávamos o carro dentro do Jardim Botânico.

Pensei até que encontraria uma plateia vazia, pela facilidade que foi encontrar uma vaga sobre o chão de pedrinhas britadas, entre as árvores frondosas da alameda que leva ao teatro. Pois o moderno auditório, amplo e todo revestido de madeira (com selo de boa procedência, é claro) estava lotado. Sentamo-nos na última fila de cadeiras super confortáveis, também de madeira, desenhadas por João Bird, um arquiteto amigo de Fafá. A luz logo se apagou e, sob aplausos entusiasmados, os músicos tomaram seu lugar no palco. João Donato, ao piano, apresentou o grupo: nada menos do que Luiz Alves no baixo e Robertinho Silva na bateria. Tinha ainda percussão, saxofone, flauta e trompete. Eles atacaram de Amazonas, Café com Pão e Tardes de Verão. Que delícia! Donato anunciou um bolero que acabara de compor em parceria com Nelsinho Mota. A letra é fraquinha, mas o que importa a letra no som de João Donato? Como se tivesse me ouvido e quisesse dirimir minha dúvida, o músico mandou em seguida seu clássico Bananeira.

Mais algumas pérolas e Paulinho Jobim entrou no palco, pegou o violão, e disse que iriam tocar uma música inédita que ele havia encontrado no baú do pai, feita em parceria com João Donato, que nem se lembrava do fato. Quando eu me lembro... é o nome da canção, anunciou Donato às gargalhadas fazendo alusão a suas conhecidas distração e falta de memória. Ótima de letra e música. Saiu Paulinho Jobim, entrou Jacques Morelembaum que tocou lindamente. Chamaram ao palco Paula Morelembaum. Aproveitei para ir comprar amendoim... Quando voltei, a cena era desconcertante. Ao som da hiperdançante Porque nasci para bailar, Paula e Paulinho cometiam passos, os mais desengonçados, enquanto faziam o vocal justamente do refrão ( "Porque nasci, nasci para bailar...") De quem foi a idéia? Desta vez não houve resposta. Mais duas músicas e um único bis deram por encerrado o show que abriu as comemorações de 60 anos de carreira de João Donato que, na minha opinião, faz disparado o melhor som da MPB. A clássica mistura de bossa nova e jazz, aperfeiçoada na longa temporada em que morou nos Estados Unidos, com forte influência da música caribenha, região que frequentou por anos, tocando em navios de cruzeiro, no início da carreira.

Saímos andando devagarzinho junto com a audiência que parecia estar de alma lavada. Via-se pela calma nas atitudes e leveza das fisionomias ao nosso redor que a música de João Donato além de boa faz bem. Fomos nos dirigindo para o carro, respirando o ar puro com cheirinho de mato e terra molhada do Jardim Botânico. Na volta pra casa, quase não falamos. O que dizer depois de curtir uma autêntica noite de outono no Rio de Janeiro?

*************************************************************************************

Para Augusto

O TriBoz fica na cabeceira da Lapa, e como tal se comporta. Não é mais uma casa de samba, como outras tantas e boas que proliferam nas transversais da Mem de Sá, a verdadeira coluna vertebral do bairro boêmio do Rio. Localizado na esquina da Rua Conde de Lages com a Rua Taylor, portanto mais para a Glória do que para o Centro da Cidade, o bar, que também tem nome de Centro Cultural Brasil-Austrália, é um lugar de Jazz e Bossa Nova.

Que novidade! Um programa mais leve, pra quem quer sair com os amigos, tomar um drinque e conversar, sem a azaração e a superlotação costumeiras dos bares daquela região nos fins de semana. E sem trânsito atravancado para os que vêm da Zona Sul. Mas com o charme de estar no Rio Antigo, de passear pelas balaustradas centenárias de ferro batido do Largo da Glória, sob as luminárias em estilo colonial, por entre o casario da redondeza, com suas fachadas de pedra de cantaria. Porque ir para este lado da cidade à noite já é parte do programa. Penetrar em suas ruas sombrias, reduto tradicional dos travestis que desfilam sobre os paralelepípedos úmidos de sereno a sua elegância indiscra, de humor barato e picardia afiada, é curtir, já no caminho, o folclore do lendário bairro carioca.

E faz bem quem vai de taxi, pois apesar de ter estacionamento rotativo bem próximo ao local, ninguém está livre de se deparar na volta com uma blitz da Lei Seca que anda rondando o Centro do Rio em qualquer dia da semana. E também ninguém merece encarar um bafômetro como anticlímax de um programa tão legal. Ainda mais sábado à noite, como a de ontem, quando fui encontrar amigos para ouvir o piano personalíssimo de Mávio Ceribelli junto com uma turma de bons músicos, e a canja de jovens cantoras que salpicavam a noite com brilhos na roupa e na voz.

O dono do TriBoz é o Mike Ryan, um músico australiano PhD em Etnomusicologia, pela Universidade de Sydney. Sua tese de doutorado foi sobre contribuições da música e cultura brasileiras para a Austrália, no período de 1971 a 1984. Pesquisa de campo realizada entre imigrantes brasileiros em Sydney. Mike mora desde 1991 na mesma Rua Taylor onde montou seu bar, foi professor da Escola de Música da UFRJ, que fica pertinho dali, e desenvolve programas sociais de oficina de músicas com a comunidade local.

Além disso, Mike é bom trompetista e cantor afinado, com suingue e tom aveludado na voz de tenor. Ele recebe pessoalmente cada freguês na entrada até a lotação da casa por volta de dez da noite. Depois, é aproveitar o som, mas sem fanatismos. Dá pra conversar à vontade durante os longos e gostosos sets de repertório variado entre standards americanos e o melhor da MPB. E a postura dos frequentadores é bem essa. Nada de psius dos aficionados de jazz. Mas também sem a irreverência estúpida do público de churrascaria. O TriBoz é um lugar elegante, com um bom ar-condicionado, serviço ágil, cardápio adequado (só frios), mesas e cadeiras confortáveis e decoração leve. Se eu tivesse que mexer em alguma coisa ali, diminuiria um pouco a luz. E só.

Por tudo isso, o programa foi um sucesso. Ao final da noitada, estávamos todos muito alegres por curtir um bom som, e satisfeitos em botar o papo em dia. Fomos embora prometendo voltar lá pra semana. Não sei se o faremos, mas nossa expressão foi sincera e o desejo mais do que justificado; pois quem trabalha de segunda a sexta, seu sábado não pode e não vai desperdiçar.


**************************************************************************

O coração pode se regenerar !

“Não vou à festa hoje. Acordei machucada, com os olhos inchados e corpo doído; minha alma ralada já purga o afeto desfeito em inúmeras tentativas de se tornar amor. Não suportaria, com a moral assim surrada, ver seus olhos caçadores. De sentidos aguçados pela dor, rapidamente descobriria sua próxima presa para em seguida invejá-la, ainda que sabedora de seus prováveis futuros infortúnios.

E na festa haveria a contradança que não poderia aceitar com os sentimentos desse jeito estropiados pela memória de outras baladas de passos acertados, rostos colados e desejos prometidos que não se entrelaçariam na coreografia estéril de corações agora desencantados.

E se a tudo sobrevivesse, trazendo no rosto um sorriso simulador da indiferença postiça recorrente nos salões, ainda assim não teria fôlego para enfrentar a emoção de sentir nossos corpos compatíveis para em seguida experimentar a vertigem abismal da indiferença afiada do seu humor excêntrico.

Sinto uma tristeza imensa... “


Uma declaração como a do texto transcrito acima mostra um coração partido. O tom é exagerado, como é exagerada a emoção das pessoas normais no momento em que percebem que tudo acabou e a relação não tem volta. “Have a broken hart? Brake it again”, disse-me, um dia, um calejado conhecedor das dores do amor. Pois não é que ele estava absolutamente certo, como um vencedor de “O céu é o limite", de Jota Silvestre. Se ainda me restava alguma dúvida a respeito do cínico ditado anglo-saxão, dissipei-a ao ler no jornal de ontem o seguinte título: SUECOS DESAFIAM DOGMA E MOSTRAM QUE O CORAÇÃO PODE SE RENOVAR. A matéria, na página de Ciência do Globo, diz que foi quebrada a convicção da medicina de que o músculo cardíaco é incapaz de produzir novas células. Afirma ainda que cerca de metade delas são trocadas ao longo da vida, e conclui que o coração, diferentemente do que se imaginava, é capaz de se regenerar.

Desta forma, e respeitando a metáfora que associa o órgão vital à sede dos sentimentos, saúdo a todos os que não pouparam emoção ao longo da vida e, por intuição ou mesmo condição existencial, apaixonaram-se a valer. Por terem aproveitado ao máximo o potencial de recuperação das suas células afetivas, convoco-os a regozijar-se agora. Propondo ainda que, de cabeça erguida, digam aos que um dia os acusaram de ser volúveis como a roleta, que nesses tempos de pós-tudo a vida é mesmo assim; morre-se hoje mil vezes. E com a certeza de que terão amanhã o coração renovado, convido-os a cantar comigo o clássico de Cole Porter: Let’s do it, let’s fall in love”


*************************************************************************************