Blecaute ecológico

Escrevo às vinte e uma horas e dois minutos. Acabo de voltar da varanda do apartamento, de onde vejo o bairro da Urca e Niterói. Embaixo, o parque do Flamengo está inteiramente às escuras e me parece tenebroso nesta noite chuvosa. A Urca tem cerca de oitenta por cento das luzes apagadas, e vê-se que o pessoal que mora no finalzinho do bairro, o mais animado, é antenado com os movimentos de conscientização ecológica como o desta noite, pois os últimos prédios da Avenida João Luiz Alves desapareceram na escuridão. Os moradores da Avenida Portugal, a primeira da orla e onde mora o rei Roberto Carlos, também aderiram totalmente ao apagão da ecologia deixando um rastro de breu aos pés do Pão de Açúcar, que vejo às escuras pela primeira vez.

Adoro essas mobilizações cívicas e além de me engajar - sempre de leve e sem pregação, é claro - gosto de ver tanta gente com o mesmo sentimento, em congraçamento, um aconchego até. É como se dissessem uns aos outros: "Hei, você não está sozinho, bicho!"

E por falar em bicho, volto da varanda, de onde fui me certificar de que Niterói (terra dos queridos minhocos, além de Araribóia) arrebentou na Hora do Planeta. Normalmente, vistas daqui, Icaraí e Itaipú formam duas meias-luas de brilhantes, de tão intensa que é a luz na capital fluminense. Pois para governo dos indiferentes ao aquecimento global e à crise de energia que se avizinha, as duas praias estão totalmente apagadas. Só se vê a tênue iluminação pública. UM show!(mesmo que às avessas)

Bem, vou me despedindo por aqui porque não quero perder o espetáculo das luzes acendendo todas ao mesmo tempo. Até mais.

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Viagem

Uma das coisas que gosto de fazer é navegar no Google Earth. Passo horas descobrindo os lugares mais distantes e interessantes. Quando leio nos jornais ou em algum livro o nome de uma cidade ou país desconhecido, ou ainda se alguma informação renova em mim o interesse por um lugar já visitado, vou ao programa que permite ao internauta um passeio instantâneo mundo afora. Faço isso à noite, com as luzes apagadas, tendo apenas a tela do computador como janela de onde parto para a misteriosa viagem pelo espaço sideral. Dali, mergulho em direção ao planeta Terra. Detenho-me a certa distância, de onde posso admirar o recorte dos continentes pousados sobre a superfície imóvel dos oceanos. Aos poucos vou me aproximando enquanto giro o globo terrestre para localizar meu destino; encontro o país desejado e vou descendo mais, devagarzinho, no intuito de conhecer a divisão política, divisar os estados ou províncias, observar os acidentes geográficos, as montanhas e os rios, alguma escarpa, o litoral, se houver. Desço mais um pouco até que apareçam os nomes das cidades, parto para a escolhida e me ponho a flanar por entre ruas, alamedas e praças. Procuro tenazmente os chafarizes – meus monumentos preferidos por alegres e generosos que são. Se encontro um espelho d'água me encanto com a imagem das nuvens duplicada, um pedaço do céu no chão.

Há ainda as estações de trens; prédios largos com dois ou três andares e frontispício imponente. Fico cismando com tudo o que pode acontecer ali; as tramas de alegrias e tristezas trançadas em chegadas e partidas, a desolação de quem fica e a angústia da espera – a dor da separação; a atmosfera de humores diversos, fusão de medo e cansaço, e o cheiro perturbador de ansiedade no ar. Mas sempre haverá mais encontros do que desencontros numa estação de trens. Essa convicção me anima a seguir as grandes avenidas para ver onde vão dar. Nos bairros suburbanos há os parques e florestas, os campos de futebol, os terrenos baldios e as casas com quintal. Diviso a única com uma árvore frondosa nos fundos. Dentro dela mora um homem solitário de hábitos frugais e modos silenciosos. Quantos amores penou, que segredos esconde, quais memórias rumina em sua poltrona puída de saudade e solidão? Prefere os licores aos destilados; tem os olhos secos, os punhos cerrados, o coração corroído de desgostos e a boca torta de tanto negar? Se algum acesso me permitisse esgueirar-me por entre as carcomidas paredes desse mundo, entraria solene em sua fortaleza de indiferenças e o tiraria pra dançar.

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O samba e a crônica carioca

Moacyr Luz fez que nem botão; entrou em casa e foi logo pra janela. Depois abriu as portas da sacada ao lado, estendeu os dois braços, empunhou a balaustrada de ferro, olhou para o céu e deu um longo suspiro. Era a última cena da matéria que gravamos para uma série de TV sobre literatura. Estávamos dois andares abaixo, na calçada do tradicional Bar do Mineiro, em frente à pousada onde mora o compositor desde que se separou. Aproveitávamos o último aceno de sol sobre as ruas de Santa Teresa, ainda agitadas com o calor atordoante do dia.

Nosso encontro foi no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, na Rua Monte Alegre. Moacyr chegou pontualmente às quatro da tarde, portando seu violão. Elegante, como de hábito, vestia calça sarouel de algodão estampado em motivos étnicos com camiseta branquinha da silva. No pescoço, dois colares de contas de madeira e pedras coloridas. No pátio do palacete construído no início do século passado, e à sombra de uma mangueira centenária, travamos conversa saborosa sobre os sambistas cariocas, cronistas por excelência que, como os de jornal, foram buscar no cotidiano da cidade, no papo na esquina, nos morros, nos subúrbios e na vida boêmia dos botequins assunto pra fazer poesia.

Moacyr contava que um amigo lhe contara que os primeiros compositores de samba foram descendentes diretos de escravos vindos da África muçulmana; que por conhecerem a escrita e terem um nível razoável de politização eram aproveitados nos serviços domésticos da corte. Eles teriam dado origem a uma linhagem de artistas cariocas como Sinhô, Donga e Pixinguinha, entre outros, que, apesar da pouca instrução formal, tinham referências ancestrais para criar letra e música de qualidade. E tanta que o samba carioca acabou por forjar a identidade cultural do país nos idos de 1930.

Para ilustrar esse papo meio cabeça, Moacyr cantou o primeiro samba gravado no Brasil, “Pelo telefone”, de Donga. Aí tudo começou a fazer sentido, até o calor senegalês.
Lembrei que, graças a Deus, estávamos à sombra de uma frondosa mangueira, e ele atacou de “Folhas secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Depois, falando do amor no samba e sua conseqüência natural, o ciúme, Moacyr atacou de “Sem compromisso”, de Geraldo Pereira. E por aí foi a conversa, desfiando um rosário dos sambas que fizeram a crônica da vida e da mentalidade carioca desde os tempos do “bota abaixo” – a modernização da cidade comandada por Pereira Passos no alvorecer do século XX.

Pra terminar, eu pedi ao compositor que se pronunciasse com a belíssima “Saudades da Guanabara”, um hino de amor à cidade, de sua autoria em parceria com Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. Foi um epílogo e tanto. Teve gente da nossa equipe que chorou, vieram me contar no dia seguinte.

Mas antes disso, conversamos sobre suas histórias de boêmio registradas em dois livros de crônicas: Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos (2005) e Botequim de bêbado tem dono (2008). Falamos também do gosto de ver a juventude curtindo as rodas de samba da cidade, que tem duas delas comandadas por Moacyr: o Samba Luzia, no Clube Santa Luzia, atrás do Aeroporto Santos Dumont, e o Samba do Trabalhador, No Clube Renascença, no Andaraí. Falamos ainda de suas nobres parcerias como a nata da MPB e do seu dia-a-dia em Santa Teresa, o bairro dos artistas e do meu coração.

Só me esqueci de perguntas ao Moacyr Luz se aqueles colares, sua marca registrada, são guias de São Jorge, santo protetor do músico, compositor, cantor, cronista e boêmio; legítimo representante de uma constelação que tem em Noel Rosa e Cartola algumas de suas estrelas mais brilhantes. Se for, vou incluir o santo guerreiro em minhas orações, para ver se ilumina minha escritura com um pouco da luz que Moacyr tem desde o nome.

O bom selvagem é daqui !

Passado o carnaval, e curada a ressaca da festa mais popular entre os cariocas, o Rio de Janeiro entra em 2009 com uma programação que promete comemorar o Ano da França no Brasil comme il faut. E não é para menos, pois a relação entre os dois países, que data dos primórdios da nossa colonização, deixou marcas indeléveis na história da cidade e no coração dos franceses.

Pra começar, a França acreditava ter descoberto o Brasil antes da frota comandada por Cabral alcançar a nossa costa. Os franceses julgaram-se com direito às terras do Novo Mundo, alegando que Jean Cousin fora o primeiro navegador a chegar à América, quatro anos antes de Cristóvão Colombo. Mas o privilégio, no caso do Brasil, coube mesmo a Portugal que assinou com a Espanha o Tratado de Tordesilhas, dividindo entre as duas potências o continente recém descoberto.

No entanto, Lisboa estava mais interessada no comércio com o Oriente, e o nosso litoral ficou à mercê das incursões dos corsários europeus. Destes, os franceses eram os mais assíduos. Vinham negociar o pau-brasil com os indígenas em troca de ferramentas e bugigangas. O escambo era tão intenso que “durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos peros (portugueses) ou aos mairs (franceses)”, segundo Capistrano de Abreu. Junte-se a isso o interesse da França em construir um império colonial próprio e estavam dadas as circunstâncias que motivaram a expedição França Antártica.

Em 1555, Villegagnon desembarcava na baía de Guanabara, na ilha que hoje leva o seu nome, onde ergueu o forte Coligny. O lugar era ideal para a nova colônia, com um entreposto normando no continente e intérpretes de tupi para ajudar na relação com os índios. Porém, o próprio Villegagnon deu motivos para a primeira revolta ao proibir seus homens de se amancebarem com as índias. E não era pra menos, se observarmos que Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta, já difundia para a Europa a superioridade da beleza nativa: “uma daquelas moças era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como a dela.” Depois foram as disputas religiosas entre calvinistas e católicos da ilha que acabaram por inviabilizar a tentativa de colonização do Brasil pelos franceses.

Apesar de contar com o apoio dos índios, que segundo a narrativa deliciosa de Jean de Léry em História de uma viagem feita à terra do Brasil, eram “tão hábeis no manejo do tacape que dois dos nossos mais destros espadachins teriam dificuldade em vir-se com um tupinambá enraivecido”, a França Antártica durou apenas cinco anos. Quando em 1560, Mem de Sá e sua poderosa esquadra tomou o forte Coligny, Villegagnon já havia partido para a França e os habitantes da ilha tinham fugido para o continente e se embrenhado na mata.

O certo é que, mesmo efêmera, a epopéia da França Antártica provocou uma revolução na mentalidade européia. No contato com os índios, os franceses se depararam com uma organização social e postura de vida infinitamente mais livre e feliz. Foi nos relatos de viagem de integrantes da França Antártica que Montaigne colheu informações sobre a vida dos tupinambás para criar o mito literário do bom selvagem.
O Estado de Natureza encontrado no lugar onde nasceria a cidade do Rio de Janeiro, o modo de vida comunitário e a ausência da propriedade privada deu vida aos mitos antigos de uma idade do ouro da humanidade que iria irrigar, dois séculos depois, o pensamento de Jean Jaques Rousseau. Sua teoria da bondade do homem foi grandemente influenciada pela figura do índio brasileiro descrita por Montaigne. E suas teses em favor da natureza e contrárias à influência corruptora da sociedade acabariam por preparar a base ideológica da Revolução Francesa.

Do lado de cá do Atlântico, a recíproca é verdadeira. Outras invasões francesas, mais amenas, como a missão de artistas trazida por D. João VI que influenciou o estilo arquitetônico do nosso império, que por sua vez foi derrubado com as idéias do positivista Auguste Comte... Mas isso já é outra história. Bom mesmo é saber que se depender das celebrações da relação entre os dois países, durante um ano inteiro não vai me faltar assunto para escrever a coluna.


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