O bom selvagem é daqui !

Passado o carnaval, e curada a ressaca da festa mais popular entre os cariocas, o Rio de Janeiro entra em 2009 com uma programação que promete comemorar o Ano da França no Brasil comme il faut. E não é para menos, pois a relação entre os dois países, que data dos primórdios da nossa colonização, deixou marcas indeléveis na história da cidade e no coração dos franceses.

Pra começar, a França acreditava ter descoberto o Brasil antes da frota comandada por Cabral alcançar a nossa costa. Os franceses julgaram-se com direito às terras do Novo Mundo, alegando que Jean Cousin fora o primeiro navegador a chegar à América, quatro anos antes de Cristóvão Colombo. Mas o privilégio, no caso do Brasil, coube mesmo a Portugal que assinou com a Espanha o Tratado de Tordesilhas, dividindo entre as duas potências o continente recém descoberto.

No entanto, Lisboa estava mais interessada no comércio com o Oriente, e o nosso litoral ficou à mercê das incursões dos corsários europeus. Destes, os franceses eram os mais assíduos. Vinham negociar o pau-brasil com os indígenas em troca de ferramentas e bugigangas. O escambo era tão intenso que “durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos peros (portugueses) ou aos mairs (franceses)”, segundo Capistrano de Abreu. Junte-se a isso o interesse da França em construir um império colonial próprio e estavam dadas as circunstâncias que motivaram a expedição França Antártica.

Em 1555, Villegagnon desembarcava na baía de Guanabara, na ilha que hoje leva o seu nome, onde ergueu o forte Coligny. O lugar era ideal para a nova colônia, com um entreposto normando no continente e intérpretes de tupi para ajudar na relação com os índios. Porém, o próprio Villegagnon deu motivos para a primeira revolta ao proibir seus homens de se amancebarem com as índias. E não era pra menos, se observarmos que Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta, já difundia para a Europa a superioridade da beleza nativa: “uma daquelas moças era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como a dela.” Depois foram as disputas religiosas entre calvinistas e católicos da ilha que acabaram por inviabilizar a tentativa de colonização do Brasil pelos franceses.

Apesar de contar com o apoio dos índios, que segundo a narrativa deliciosa de Jean de Léry em História de uma viagem feita à terra do Brasil, eram “tão hábeis no manejo do tacape que dois dos nossos mais destros espadachins teriam dificuldade em vir-se com um tupinambá enraivecido”, a França Antártica durou apenas cinco anos. Quando em 1560, Mem de Sá e sua poderosa esquadra tomou o forte Coligny, Villegagnon já havia partido para a França e os habitantes da ilha tinham fugido para o continente e se embrenhado na mata.

O certo é que, mesmo efêmera, a epopéia da França Antártica provocou uma revolução na mentalidade européia. No contato com os índios, os franceses se depararam com uma organização social e postura de vida infinitamente mais livre e feliz. Foi nos relatos de viagem de integrantes da França Antártica que Montaigne colheu informações sobre a vida dos tupinambás para criar o mito literário do bom selvagem.
O Estado de Natureza encontrado no lugar onde nasceria a cidade do Rio de Janeiro, o modo de vida comunitário e a ausência da propriedade privada deu vida aos mitos antigos de uma idade do ouro da humanidade que iria irrigar, dois séculos depois, o pensamento de Jean Jaques Rousseau. Sua teoria da bondade do homem foi grandemente influenciada pela figura do índio brasileiro descrita por Montaigne. E suas teses em favor da natureza e contrárias à influência corruptora da sociedade acabariam por preparar a base ideológica da Revolução Francesa.

Do lado de cá do Atlântico, a recíproca é verdadeira. Outras invasões francesas, mais amenas, como a missão de artistas trazida por D. João VI que influenciou o estilo arquitetônico do nosso império, que por sua vez foi derrubado com as idéias do positivista Auguste Comte... Mas isso já é outra história. Bom mesmo é saber que se depender das celebrações da relação entre os dois países, durante um ano inteiro não vai me faltar assunto para escrever a coluna.


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