8º Festival de Cinema Brasileiro em Israel

Começa no próximo sábado, dia 2 de agosto, em Tel Aviv, o 8º Festival de Cinema Brasileiro em Israel. Jerusalém e Haifa também estão no circuito do evento que exibe o filme “Tropa de Elite” nas noites de abertura. O diretor e curador do festival, Shlomo Azaria, acredita que o longa-metragem de José Padilha terá a preferência dos cinéfilos, porém garante que procura agradar a gostos variados:
_ Antes de tudo, aposto na qualidade dos filmes, em produções bem feitas que passem nas premières selecionadas do FestRio, Mostra de Cinema de São Paulo e Festival de Gramado. Mas para não ficar só com os cinéfilos, amplio as sessões para o público que gosta das telenovelas brasileiras, de futebol e de Bossa Nova.

Um júri de cineastas e críticos de cinema israelenses vai escolher o melhor filme de ficção e o melhor documentário do festival. Há também a premiação pelo júri popular que elegerá o melhor longa-metragem entre produções tão distintas quanto “A Grande Família”, de Maurício Farias e “Condor”, de Roberto Mader. Para o diretor do documentário sobre as atrocidades cometidas pelas ditaduras militares dos anos 70 no Cone Sul, há outra dimensão além da expectativa pessoal de conhecer “um lugar de onde vem tanta coisa de nossa civilização”.
_ Um festival em um país como Israel, inevitavelmente vai discutir a questão de cinema e conflitos amados, fundamental para “Condor” – diz Mader. – Além disso, há o paralelo entre todas as sociedades que passam por genocídio.

Julia Lemmertz também participa do Festival de Cinema Brasileiro em Israel e se diz contente em aproveitar a oportunidade para visitar uma região pela qual é fascinada desde pequena:
– É mágico poder ir Jerusalém, ter um contato direto com o início de tudo. Sempre tive interesse em entender esse conflito religioso, curiosidade e respeito. Sempre fiquei perplexa com essa guerra que é o início de todas as guerras.

Para a atriz, que aparecerá nas telas israelenses em dois filmes – “Meu nome não é Jonny”, de Mauro Lima e “Mulheres Sexo Verdade Mentiras”, de Euclydes Marinho –, mesmo sem a tradicional premiação de atores, o festival pode promover “um intercâmbio espetacular”:
- O melhor de participar de um festival é a troca cultural muito rica. É encontrar gente que você nunca viu e está ali para trocar idéias. É também descobrir que, assim como a gente gosta de ver filmes sobre outros países, o público de outros países gosta do cinema nacional.

A idéia de mostrar o cinema brasileiro no oriente médio vem do tempo em que Shlomo Azaria foi para Israel como exilado político. De cabeça feita nos cineclubes de sua adolescência, na Bahia, ele aproveitou a oportunidade para estudar cinema na Universidade de Tel Aviv, onde lecionava o documentarista David Perlov, um entusiasta do Cinema Novo.
_ Havia na Universidade uma cópia em 16 mm de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha, e Perlov me pedia que falasse para os outros alunos sobre aquela cultura tão distante _ conta Shlomo, que só pode realizar seu sonho muitos anos depois por meio das leis de incentivo fiscal que também proporcionaram a Retomada.
Apesar da inquestionável contribuição dos judeus para o desenvolvimento do cinema mundial desde seus primórdios – tanto como linguagem independente do teatro e da literatura, na sua forma artística, quanto como veículo de comunicação de massa, nas produções comerciais de Hollywood –, a primeira cinemateca do país só seria criada, em Jerusalém, mais de duas décadas depois da fundação do Estado de Israel, em 1948. No rastro da primeira vieram as cinematecas de Tel Aviv e Haifa que formam o circuito onde serão exibidos os filmes nacionais para uma audiência de maioria israelense, embora com a presença marcante da comunidade brasileira e sul-americana no país.

O público estimado para as três salas, em seis dias de exibição, é de 15 mil pessoas. Nada mal para os 3.500.000 de habitantes das três maiores cidades de Israel, que terão a oportunidade de saber mais sobre a cultura e costumes brasileiros; mas também sobre a violência em nossas cidades, principalmente no Rio de Janeiro onde se deu o trágico seqüestro narrado no filme “Ônibus 174”, incluído na seleção do festival. E como filmes carregados de violência seriam recebidos em cidades guardadas por soldados armados até os dentes; onde a população enfrenta diariamente a ameaça terrorista em veículos coletivos, ruas e shopping centers? André Ramiro, ator que faz Matias, o policial bonzinho de “Tropa de Elite”, acredita que a violência existe no mundo todo e que cada país se identifica com o filme de forma diferente, como pôde perceber em festivais no México e em Portugal. Para André, nesse sentido, haverá certa identificação com o público de Israel.
_ O problema lá é com terras, é o egoísmo do ser humano. Mas violência é sempre o reflexo do egoísmo do ser humano – diz o ator, acrescentando que seu personagem é recebido muito bem por todos os tipos de público embora ele mesmo sinta muita pena do policial que interpreta no filme, e que acaba sendo contaminado pelo clima de violência ao seu redor:
_O Matias é um personagem que não fez boas escolhas e me dá muita pena por isso. Mas tenho um carinho muito grande por tudo o que ele me deu.

André vai receber no próximo domingo mais um presente do Matias:
_ Vou conhecer a Terra Santa, a terra onde Jesus pisou.

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A matéria completa do FCBI, assinada por mim, será publicada amanhã no Jornal do Brasil e no caderno de cultura da Gazeta Mercantil. A partir daí, todas as semanas, marcarei ponto nos dois jornais para narrar fatos e experiências que de alguma forma possam interessar a vocês. Um grande abraço.

Domingo no Jobi

Um dia desses eu estava pensando por que é que gosto tanto de sair para tomar um chopinho num bar. Às vezes sou convidada para o primeiro programa por um pretendente e, em vez de escolher um lugar mais sofisticado, ou um restaurante novo – pra mostrar inclusive que tenho gosto mais arrojado, ou que estou antenada com a vida chique da cidade –, acabo sugerindo um bar dos mais conhecidos e freqüentados por mim. E nem sempre é pelo chope, que ultimamente venho substituindo pela caipirinha com adoçante. É mais pelo ambiente em si; e também para saber logo se o cara é bom de papo e seria boa companhia pro meu programa favorito. Programa este que repeti no último domingo em companhia muito especial. Fui almoçar no Jobi com a Roberta, a filha da minha melhor amiga de dois anos e meio de idade. Roberta é linda! Tem os cabelos castanhos cacheados, um sorriso que irradia felicidade, uns olhinhos brilhantes com pestanas reviradas e fala de um jeito cantado que eu nunca vi igual.

Entre amigos e familiares, éramos oito pessoas. Logo atrás, num grupo também de oito, estava outra família com duas crianças e a babá. E o movimento de gente passando de um lado pro outro era intenso, e os garçons com bandejas carregadas de tulipas de chope bem gelado, e a profusão de batata frita fresquinha, e a babá com o carrinho imprensado entre a nossa mesa e a seguinte, e os amigos que passam e falam com gente das mesas que por sua vez se levanta para um abraço e acaba esbarrando em quem está atrás,e a conversa entre mães de mesas diferentes e o tumulto é geral, mas ninguém reclama porque, afinal, estamos num bar.

Foi então que me lembrei de uma passagem deliciosa da minha infância justamente na mesa de um dos mais tradicionais bares do Rio de Janeiro, o Bar Alpino, que existiu na avenida Atlântica até o final da década de 60. Diferente do Jobi, o lugar era bastante espaçoso, e tudo que me recordo é que tinha aquelas mesas e cadeiras de armar da Brahma, com tampo de madeira e pernas em forma de xis; e também que os adultos ficavam tão contentes ali que não negavam nada pras crianças, não importa quantas garrafas de grapete meu irmão pedisse e quantas porções de batata frita nós devorássemos antes do almoço.

Um dia, no meio daquela algazarra típica, alguém falou que o Ary Barroso acabara de entrar e se sentara numa mesa perto da nossa. Lembro ouvir minha mãe dizer que se tratava do maior compositor brasileiro de todos os tempos. Um dos meus tios, que tinha opinião pra tudo e de tudo discordava com o propósito louvável de manter a conversa animada, logo se manifestou: “Compositor que nada. O que ele faz é comprar samba de morador do morro”. Daí em diante, seguiu-se uma discussão que foi pela tarde adentro, e vez por outra era requentada nas reuniões de família. Mas, naquela dia, ouvi ainda coisas formidáveis sobre o homem corpulento, de cabeça grande e presença marcante com seu terno branco e óculos de aro escuro. Ouvi que Aquarela do Brasil era “o verdadeiro hino nacional”, apesar de Ary Barroso não entender de música (imagina se entendesse!) e que o único instrumento que ele tocava era a caixinha de fósforo. "Ao contrário, Ary Barroso é um exímio pianista", exagerava um amigo de papai. Fiquei fascinada com a conversa. Ainda mais quando soube que o vizinho de bar era o autor de Na Baixa do Sapateiro, já naquele tempo, uma das músicas de que eu mais gostava. E que muitos anos mais tarde ouvi numa noite especial, num momento de total sintonia entre o que diz a letra e o que o meu coração sentia. Letra que, como as de Cole Porter, tem um toque de otimismo irreverente ao final. Teria sido eu “aplicada” assim tão prematuramente?

Bem, mas isso já é outra história e o que importa aqui é a memória de um almoço de domingo num bar do Rio de Janeiro. Assim como naquele dia, milênios atrás, domingo passado também chegou alguém muito importante para a mesa seguinte à nossa. Era o avô. Magrinho, velhinho, de boné e grandes óculos de grau, ele veio de mansinho, beijou as crianças, o filho, a nora, o casal de sobrinhos e fez um afago na babá. Depois, sentou-se ao lado do carrinho de bebê e ficou brincando com a netinha. A conversa na nossa mesa continuou como antes. Ninguém comentou a presença ilustre ali no bar. E eu me lembrei com saudades daquele tio polemista que não deixaria passar em brancas nuvens um acontecimento desta ordem. Posso até imaginar, num exercício de especulação, o tio comentando que o senhorzinho recém-chegado poderia ser considerado até mesmo um ótimo escritor, mas nunca se igualar a Machado de Assis, como faz o editor na contracapa de seus livros. E a nossa mesa passaria a tarde toda discutindo se o Rubem Fonseca pode mesmo ser comparado ao Bruxo do Cosme Velho.

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Cidade da Paz

Na ocasião do último FestRio, eu estava na Cidade do México caminhando por entre ruínas pré-hispânica, conhecendo a cultura indígena e admirando a arte pós-revolucionária dos fabulosos muralistas e suas cores embebidas em sol e ideologia. Voltei levitando de corpo e alma para ouvir logo no primeiro dia que havia, enfim, surgido no Brasil um verdadeiro herói nacional. Para espanto meu, tratava-se do Capitão Nascimento, coadjuvante que tomou o lugar de protagonista no filme Tropa de Elite, de José Padilha, exibido no festival. Tomei um susto. Sabia do que se tratava pelas matérias nos jornais. Assim que o filme entrou em cartaz, fui assistir à primeira sessão. Fiquei abismada com a possibilidade de alguns de meus amigos considerarem herói um torturador assassino. Voltei para casa e escrevi neste blog que o filme tem uma mensagem fascista, pois prega o mal (a execução sumária, por exemplo) com a justificativa de defender os interesses da coletividade. Daí por diante sofri uma enxurrada de críticas toda vez que expunha minha tese. Até que o filme concorreu ao Festival de Berlim e foi considerado fascista por metade da crítica internacional. A outra metade aplaudiu, e Tropa de Elite ganhou o Urso de Prata. Fim de papo.

A polêmica volta agora, quando a violência policial atinge um nível absurdo no Rio de Janeiro. Em excelente artigo no Globo de sábado, Arnaldo Bloch, pergunta: “Já nos esquecemos que, menos de um ano atrás, o matador e torturador Capitão Nascimento, de “Tropa de Elite”, virou ídolo nacional? Esquecemos que em nossa cidade, os batalhões, para se motivar, saem às ruas “animados” pela trilha sonora do filme?” Elio Gaspari também enfocou a onda de crimes chocantes na cidade em menos de um mês, todos envolvendo agentes da ordem. Da ação tenebrosa do tenente e dez militares do Exército que entregou três rapazes do Morro da Providência a uma quadrilha de traficantes e assassinos, ele disse: “Muita gente boa parecia viver seu momento de Tropa-de-elite: afinal o Exército subira o morro.” Ainda bem que essas poucas vozes, dissonante da maioria silenciosa vêm de posto elevado do jornalismo nacional e apontam para a urgente reflexão sobre a atuação criminosa da polícia, que só causa indignação na sociedade civil quanto atinge integrantes da classe média pra cima.

Casos como o do menino João Roberto Soares – assassinado por PMs dentro do carro dos pais em uma rua da Tijuca - acontecem com freqüência nas favelas da cidade, onde a polícia entra atirando pelos becos, alvejando janelas, metendo o pé nas portas das casas e a mão na cara de jovens que estão no lugar errado na hora errada simplesmente porque é o único lugar que eles têm para viver. Mas basta a polícia alegar que perpetrou esses crimes em ações de confronto com bandidos, e fica tudo por isso mesmo. É uma pena, sinceramente, ser preciso que a tragédia freqüente nos morros e periferias da cidade aconteça num bairro tradicional de classe média e com filho de advogados para transformar ocorrência corriqueira em “crime chocante”. É uma dádiva para toda a sociedade que Paulo Roberto Soares tenha feito da dor de perder um filho, um libelo contra a política de enfrentamento do governador Sérgio Cabral: “O Estado não tem carta branca para matar ninguém. Aqui não tem pena de morte. E se fossem bandidos? Que prendessem os caras!” Mas esperar o quê do governador que diz que a Rocinha é “fábrica de marginais”? Só nos resta insistir no debate sobre qual é a nossa responsabilidade nessa cultura da violência, da injustiça e da exclusão. No mínimo, porque o sinistro está prestes a bater em nossa porta.

Vou para o Festival do Cinema Brasileiro em Israel que acontece no mês de agosto em várias cidades daquele país. Vou observar para escrever neste blog e em outros órgãos de imprensa como o cinema brasileiro é recebido lá. Espero colher um bom material para continuar inclusive a discutir assuntos como o de hoje, já que o festival começa em Jerusalém com a exibição do filme Tropa de Elite. Tenho muita curiosidade em saber como a figura polêmica do Capitão Nascimento será recebida na Cidade da Paz.

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Brasileira do Rio de Janeiro

Na noite da última sexta-feira fui com um amigo ao Teatro Municipal assistir ao concerto da OSB com apresentação da cantora Monica Salmaso e o Quinteto Pau Brasil. O programa começou com a “Suíte Vila Rica”, de Camargo Guarnieri, um convite para um agradável passeio pela cultura brasileira feito sem muita convicção pela orquestra que falhou em valorizar a espontaneidade da obra. Vieram as Bachianas Brasileiras nº 7. Com um material mais exuberante nas mãos, maestro e orquestra pareciam mais empenhados em envolver o público na brasilidade inspirada de Villa-Lobos. Deram conta do recado e a platéia saiu para o intervalo com o espírito ligeiramente mais elevado. Pena que a demora para a segunda parte da apresentação tenha sido longa o bastante para deixar o peso da semana voltar aos ombros da audiência que assistiu desanimada à cantora entrar em cena e se desculpar pela voz reduzida em conseqüência de forte crise de garganta. Anticlímax que o carisma sutil de Mônica, aliado à afinação de uma voz clara e personalíssima na interpretação das canções de Chico Buarque, conseguiu reverter levando a platéia a se deleitar com as deliciosas “Bom Tempo” e “Ciranda da Bailarina”. É justo dizer que a participação do Pau Brasil, com a qualidade de músicos como um Nelson Aires ao piano, foi fundamental para garantir o sucesso da noite. Ressalva apenas para os arranjos sinfônicos desiguais. No caso de “Construção”, por exemplo, a opção pelo virtuosismo foi exagerada. Não precisava. O efeito foi apenas barulhento.

Mas saímos, eu e meu amigo, satisfeitos com o espetáculo e já nas escadarias do teatro cismávamos com o motivo pelo qual a OSB passou a se chamar Orquestra Sinfônica Brasileira da Cidade do Rio de Janeiro. Para implicar, eu disse que era coisa de lobby paulista que, empolgado com a elevação da OSESP ao pódio de melhor orquestra sinfônica do país, resolveu arrancar também do nome a supremacia da mais antiga das sinfônicas brasileiras. Ao que meu amigo imediatamente protestou, sem nunca perder a elegância, argumentando que em todo o mundo as sinfônicas são prerrogativas das cidades, e que o fato da OSB ser agora OSB da Cidade do Rio de Janeiro só insuflaria o bairrismo dos cariocas, contribuindo para incentivá-los a apoiar ainda mais a orquestra. É claro que seu paulistismo (como diria Mário de Andrade) não deixa meu amigo ver que no imaginário da população da ex-capital da Colônia, do Reino Unido a Portugal e Algarves, do Império e da República, os conceitos de nacional e brasileiro se confundem com o Rio de Janeiro e, portanto, não seria essa uma justificativa aceitável para a trapalhada da dupla identificação. Assim, mesmo sabendo que OSESP quer dizer Orquestra Sinfônica do Estado (e não da cidade) de São Paulo, mudei de assunto e perguntei onde iríamos jantar. Meu amigo passou a se preocupar com a qualidade das cartas de vinhos dos restaurantes cariocas e deixou a polêmica sinfônica pra lá. Daí em diante tudo correu muito bem.

No dia seguinte acordei com a questão da véspera pingando dúvidas, como se tivesse uma torneira mal fechada na cabeça. E antes de ir aproveitar o Sábado de Portas Abertas em Santa Teresa, resolvi ligar para um ex-diretor do Teatro Municipal, grande fonte para assuntos de cultura. Generoso com os menos esclarecidos, ele logo se dispôs a aplacar minha curiosidade. Contou-me que a impropriedade do novo nome da OSB, rejeitado inclusive no meio artístico e cultural, decorre de condição imposta pela prefeitura do Rio de Janeiro para pagar os salários dos músicos na ocasião da última crise da orquestra, na virada do milênio.

Nascida há 66 anos como uma empresa particular, que vivia de concertos, a OSB conheceu sua primeira grande crise em 1968. Foi quando o ministro da Fazenda, Octávio Gouvêa de Bulhões pediu e o presidente Castelo Branco autorizou a doação de 10 milhões de cruzeiros à OSB que deveria se transformar em Fundação. O dinheiro, convertido em Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, renderia juros que financiariam as atividades da orquestra daí por diante. Assim foi que se reuniu um Conselho, entre as personalidades mais importantes da vida financeira, política e cultural do país, presidido pelo próprio Gouveia de Bulhões, incansável em conseguir doações para a Fundação OSB, até o seu falecimento. Mário Henrique Simonsen o substituiu e manteve a independência financeira da OSB em relação ao governo com o objetivo de evitar interferência artística. O Milagre Econômico foi também uma época de progresso para a OSB:
– A primeira orquestra brasileira a excursionar no exterior obtendo um êxito extraordinário em Londres, Paris, Madri e Hamburgo, entre outras cidades do Antigo Continente - disse-me o ex-diretor já empolgado.
As apresentações da OSB nos Estados Unidos e Canadá, três anos depois, também foram um grande sucesso, sempre sob a batuta do maestro Isaac Karabtchevsky - por vinte anos diretor musical da orquestra. Mas a danada da inflação foi voraz também com o caixa da OSB que sofreu ainda o golpe da morte de Simonsen. O novo presidente do conselho, Roberto Paulo Cesar da Andrade, apesar de presidente da Braskan, não tinha nem de longe o prestigio de seus antecessores e a OSB iniciou novo período de dificuldade que acabou por obrigá-la à parceria com a Prefeitura do Rio em 2002.

Há três anos, o maestro Roberto Minczuk assumiu a direção artística de uma orquestra com salários em dia e nova sede anunciada para este ano, na Cidade da Música. Estão dadas, portanto, as condições para que a OSB dê a volta por cima e um dia possa se livrar desse penduricalho atrelado ao seu nome que, de fato e de direito, ainda é Orquestra Sinfônica Brasileira. Nada mais justo para uma instituição com sua tradição e história de sucesso.

O Outro Lado

Esta semana coloquei o ponto final no meu primeiro roteiro de longa-metragem. É ainda o primeiro tratamento – o que quer dizer que há muito trabalho pela frente. Para se ter uma idéia, o roteiro de Amores Brutos só foi filmado depois do vigésimo sétimo tratamento. No caso de Central do Brasil, dizem que foram dezessete tratamentos. Então, depois de meses (o último principalmente) dedicada quase que integralmente a este projeto, ainda há muito que burilar na história de amor entre um travesti e um jovem feirante filho de portugueses católicos fervorosos que se cruzam nas madrugadas de domingo, quando a feira da Glória é montada de um lado da rua, enquanto do outro os travestis fazem ponto. A trama é costurada pelas aventuras de um menino de rua às voltas com drogas e furtos e é localizada nos arredores do Centro, na Glória, na Lapa e no Bairro de Fátima, região onde vive, em sua maioria, uma gente oprimida ou desvalida. Pois se de um lado é a classe média remediada e baixa que sofre o rigor das convenções sociais enquanto é constantemente atormentada pelo desejo de ascensão econômica e social. Do outro, é a população de rua, com grande concentração naqueles bairros, como sempre abandonada à própria sorte.

A escolha do tema e da região onde a história se passa foi a oportunidade que encontrei para chamar a atenção para uma realidade tão próxima fisicamente e ao mesmo tempo tão distante da mentalidade exclusivista da Zona Sul carioca, totalmente voltada para o seu próprio umbigo e por isso mesmo esvaziada de qualquer expressão cultural e artística relevante. Podem alegar que uma trama ambientada em uma favela do Rio atingiria o mesmo objetivo: bombardear a egemonia dessa mentalidade nos meios de comunicação e o descomunal poder político de sua classe correspondente em detrimento do discurso, da mobilidade e do bem-estar das populações menos favorecidas.

A diferença é que esta região central, de aspectos singulares e bastante interessantes, é acessível a qualquer hora do dia para qualquer pessoa. É só lembrar que na Lapa há transporte coletivo para todos os municípios do Rio de Janeiro, o que proporcionou inclusive que o lugar se transformasse em berço do hip hop carioca; que ali se misturou ao samba, ao reggae e ao rock, conferindo identidade ainda mais cosmopolita e contemporânea ao lugar. Assim, foi possível que eu me aventurasse pelas ruas desses bairros em diferentes horas do dia e da noite para conhecer melhor os personagens que há muito namoro, desde os tempos em que morava em Santa Teresa e fazia da Lapa minha passagem obrigatória. Personagens aos quais me dedicarei ainda por um bom tempo, com a pretensão de representá-los em toda a sua complexidade e poesia. Para isso, vou tentar seguir o lema que escolhi para guiar minhas ambições de crescimento pessoal, e que consiste em acreditar que a verdadeira misericórdia é ser solidário com o fracasso do próximo, é olhar com piedade para aquilo que no outro lhe parece mau, ruim, errado. Que Deus me ajude!

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