Cidade da Paz

Na ocasião do último FestRio, eu estava na Cidade do México caminhando por entre ruínas pré-hispânica, conhecendo a cultura indígena e admirando a arte pós-revolucionária dos fabulosos muralistas e suas cores embebidas em sol e ideologia. Voltei levitando de corpo e alma para ouvir logo no primeiro dia que havia, enfim, surgido no Brasil um verdadeiro herói nacional. Para espanto meu, tratava-se do Capitão Nascimento, coadjuvante que tomou o lugar de protagonista no filme Tropa de Elite, de José Padilha, exibido no festival. Tomei um susto. Sabia do que se tratava pelas matérias nos jornais. Assim que o filme entrou em cartaz, fui assistir à primeira sessão. Fiquei abismada com a possibilidade de alguns de meus amigos considerarem herói um torturador assassino. Voltei para casa e escrevi neste blog que o filme tem uma mensagem fascista, pois prega o mal (a execução sumária, por exemplo) com a justificativa de defender os interesses da coletividade. Daí por diante sofri uma enxurrada de críticas toda vez que expunha minha tese. Até que o filme concorreu ao Festival de Berlim e foi considerado fascista por metade da crítica internacional. A outra metade aplaudiu, e Tropa de Elite ganhou o Urso de Prata. Fim de papo.

A polêmica volta agora, quando a violência policial atinge um nível absurdo no Rio de Janeiro. Em excelente artigo no Globo de sábado, Arnaldo Bloch, pergunta: “Já nos esquecemos que, menos de um ano atrás, o matador e torturador Capitão Nascimento, de “Tropa de Elite”, virou ídolo nacional? Esquecemos que em nossa cidade, os batalhões, para se motivar, saem às ruas “animados” pela trilha sonora do filme?” Elio Gaspari também enfocou a onda de crimes chocantes na cidade em menos de um mês, todos envolvendo agentes da ordem. Da ação tenebrosa do tenente e dez militares do Exército que entregou três rapazes do Morro da Providência a uma quadrilha de traficantes e assassinos, ele disse: “Muita gente boa parecia viver seu momento de Tropa-de-elite: afinal o Exército subira o morro.” Ainda bem que essas poucas vozes, dissonante da maioria silenciosa vêm de posto elevado do jornalismo nacional e apontam para a urgente reflexão sobre a atuação criminosa da polícia, que só causa indignação na sociedade civil quanto atinge integrantes da classe média pra cima.

Casos como o do menino João Roberto Soares – assassinado por PMs dentro do carro dos pais em uma rua da Tijuca - acontecem com freqüência nas favelas da cidade, onde a polícia entra atirando pelos becos, alvejando janelas, metendo o pé nas portas das casas e a mão na cara de jovens que estão no lugar errado na hora errada simplesmente porque é o único lugar que eles têm para viver. Mas basta a polícia alegar que perpetrou esses crimes em ações de confronto com bandidos, e fica tudo por isso mesmo. É uma pena, sinceramente, ser preciso que a tragédia freqüente nos morros e periferias da cidade aconteça num bairro tradicional de classe média e com filho de advogados para transformar ocorrência corriqueira em “crime chocante”. É uma dádiva para toda a sociedade que Paulo Roberto Soares tenha feito da dor de perder um filho, um libelo contra a política de enfrentamento do governador Sérgio Cabral: “O Estado não tem carta branca para matar ninguém. Aqui não tem pena de morte. E se fossem bandidos? Que prendessem os caras!” Mas esperar o quê do governador que diz que a Rocinha é “fábrica de marginais”? Só nos resta insistir no debate sobre qual é a nossa responsabilidade nessa cultura da violência, da injustiça e da exclusão. No mínimo, porque o sinistro está prestes a bater em nossa porta.

Vou para o Festival do Cinema Brasileiro em Israel que acontece no mês de agosto em várias cidades daquele país. Vou observar para escrever neste blog e em outros órgãos de imprensa como o cinema brasileiro é recebido lá. Espero colher um bom material para continuar inclusive a discutir assuntos como o de hoje, já que o festival começa em Jerusalém com a exibição do filme Tropa de Elite. Tenho muita curiosidade em saber como a figura polêmica do Capitão Nascimento será recebida na Cidade da Paz.

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