Rita Cadillac e o Festival do Rio

Uma das decisões que vou tomar no próximo último dia do ano será a de tirar férias no mês do Festival do Rio. É que a programação é tão variada e a quantidade de filmes interessantes que não serão exibidos em outra oportunidade é tal que, para os cinéfilos, o festival vale como dar a volta ao mundo em quinze dias no escurinho do cinema. Pode ser melhor?

E além disso dá a maior dó o fato de ter credencial e não poder curtir todos os filmes da Première Brasil, a minha preferida porque além da oportunidade de acompanhar a produção nacional, a mostra acontece no cinema Odeon, o melhor da cidade, com seu café-bar-restaurante charmosíssimo, com vista para a Cinelândia.

Mas vamos lá. Do que eu vi, da produção nacional, foram três os filmes de longa-metragem de ficção que mais me impressionaram. “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes é um road movie narrado em primeira pessoa pelo protagonista. Ele nunca aparece, apenas ouvimos sua voz falando como se ditasse cartas. As imagens são tomadas do seu ponto de vista durante viagem de carro pelo semi-árido nordestino. O que faz da fita uma experiência singular, porém prazerosa, pois o texto é bom e a fotografia de Heloísa Passos (troféu Redentor), excelente. Enquanto faz o levantamento topográfico da região que será inundada com transposição de águas de um rio, o herói conta o fim do seu casamento e a dor da separação; o esforço para superar a perda da mulher amada; e a procura de consolo no sexo de programa e na prostituição. A decisão final do protagonista de mergulhar no mundo em busca de um novo amor é ilustrada com uma sequência espetacular de mergulhadores profissionais de Acapulco, com trilha sonora de música mexicana, daquelas em que o naipe de sopros de tão bom pinica o coração mais redimido. O filme ganhou justamente o troféu de melhor direção.

Já “Hotel Atlântico”, de Suzana Amaral deixou a desejar. Pois apesar de condizente com a grife de qualidade em adaptação literária que Suzana inaugurou com “A Hora da Estrela”(do romance homônimo de Clarice Lispector); da produção bem-cuidada e história tecnicamente bem- conduzida, este agora não passa de um filme bem-feito. Os atores, no entanto, fazem um trabalho brilhante e há sequências muito boas também. Talvez a minha dificuldade seja com o universo de João Gilberto Noll. Diferentemente da obra de Clarice, em que personagens comuns se deparam com o mistério da existência, o autor gaúcho lança mão de protagonistas improváveis para mostrar que a vida é fria como uma lâmina.

Chovia muito na noite em que foi exibido “Os inquilinos”, de Sérgio Bianchi. E eu só fui ao Odeon, depois de um longo dia de trabalho, porque gostei muito de “Cronicamente Inviável” e “Vale quanto pesa, ou é por quilo?”, dois filmes anteriores de Sérgio, e que como este último dão um soco bem dado no estômago do espectador. Naqueles, o golpe é uma crítica contundente à mentalidade mesquinha, violenta, gananciosa, porém dissimulada da sociedade brasileira. Neste, é o retrato da realidade assustadora da nossa classe média, oprimida entre a violência que deixou crescer e ausência da cidadania que não se esforça para construir. O filme ganhou o Redentor de melhor roteiro.

Dos documentários, eu vi e não gostei de “ Alô, Alô Teresinha”, de Nelson Hoineff. Nelson fez sucesso na década de 1990, com o programa televisivo de reportagens Documento Especial, da extinta TV Manchete. É um grande jornalista e ótimo teórico de comunicação. Foi meu editor durante seis anos no Jornal da Manchete, e eu credito grande parte do sucesso que tive naquela ocasião à qualidade do programa.

Não posso dizer o mesmo deste documentário sobre Chacrinha. É desrespeitoso com a memória do Velho Guerreiro e humilhante para as chacretes, que estão aí, têm família, e admiradores. O incrível é que o diretor conseguiu levar todas elas à estréia do filme, no Odeon. Como são ignorantes! São destratadas na tela e comparecem à exibição do filme sentindo-se homenageadas! Quer dizer, deixaram-se humilhar também ao vivo. Uma tristeza. Até Roberto Carlos está mal na fita. O rei aparece desprovido de carisma, mal fotografado, mal enquadrado, desperdiçado, enfim.
Apenas duas pessoas Nelson Hoineff não conseguiu maltratar no seu longa: Fábio Júnior e Rita Cadillac. Talvez porque sejam muito autênticos e banquem, sem culpa, sua condição existencial, por mais estranha que seja. Talvez porque tenham sacado tudo e resolveram ser mais sacanas que o diretor.

Bem, é isso aí. No mais, palmas para a organização do Festival do Rio. Da seleção de filmes à cerimônia de premiação, foi um evento impecável. Ilda Santiago e Walkyria Bargosa estão de parabéns. Parabéns também para Lílian Hargreaves que cuidou da imprensa com profissionalismo e atenção.


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