Clarice Lispector e o aniversário de criança

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Minha amiga passou de taxi e fomos assistir ao espetáculo Simplesmente eu. Clarice Lispector, no CCBB. No caminho ela contou que vinha de um aniversário de criança. Quis saber se sua filha, que eu gosto muito, tinha se divertido bastante. Impossível uma criança não se divertir numa festa de aniversário hoje em dia, com a quantidade de atrações que os pais contratam para tais ocasiões. É teatrinho, animadores e pula-pula, no mínimo, porque a maioria prefere alugar casas de festas, e aí há sempre um incontável número de atividades! Mas as crianças brincam umas com as outras?, perguntei. Mais brigam, porque ficam tão excitadas com a descomunal oferta de diversão que disputam com o coleguinha ao lado até um balão de gás de cor diferente!

Pais angustiados, filhos mais angustiados ainda, e assim caminha a humanidade... No meu tempo era diferente!, contei-lhe num transe saudosista. As festas de aniversário eram sempre na casa dos aniversariantes e invariavelmente nos fins de semana, porque no dia mesmo era um bolo no colégio e olhe lá. Mas havia muito encanto nessas ocasiões e nós aproveitávamos pra valer. Tinha sempre um adulto por perto, quase sempre o mais camarada da família, para organizar as brincadeiras de pêra-uva-e-maçã. Enquanto os pais se mantinham distraídos no uísque com gelo, para as mães era uísque com guaraná.

Essas comemorações varavam a tarde, entravam pela noite e costumavam ter dança depois do parabéns. A música era a da preferência do anfitrião, pos naquela época não havia a ditadura da criança. Lembro que as melhores festas eram na casa de um Alagoano que adorava Jackson do Pandeiro. Eu não desgostava, mas quase não podia me concentrar na dança, só pensando no pescoço rotativo da Alzira que “pulava que nem uma guariba. E gritava a e i o u ipslone.”

Havia ainda outro fato que me afligia. Eram os dois irmãos que usavam terno e gravata nos aniversários, embora não passassem dos dez e doze anos de idade. O mais velho então ficava sinistro daquela maneira, parecia a miniatura do pai. E por mais que me incomodasse o tecido áspero com cheiro de naftalina, não nos seria permitido recusar um convite para dançar feito com gentileza por outros convidados. E assim, com o passar dos anos, peguei até amizade aqueles irmãos. Além, é claro, do gosto pela dança de salão.

Bom mesmo é que na época, bastava um disco na vitrola e estava garantida a diversão. Acho até que aquelas festinhas nos preparavam para uma vida mais feliz, o individualismo era combatido e a camaradagem estimulada de maneira muito natural.
Hoje, a sociedade adota o discurso hipócrita de aprovar a diversidade, mas está cada vez mais massificada, tendo todos que se enquadrar nos padrões determinados de beleza, sucesso e comportamento. Tudo regido pelo consumo e a vaidade, inclusive as relações interpessoais. Não há tempo a perder, e o outro deve ser descartado ou aproveitado rapidamente e com sofreguidão, pois “a fila tem que andar.”

Pensava nisso enquanto esperava o teatro lotar e a peça sobre a vida e obra de Clarice Lispector começar. Pensava como teriam sido essas festinhas no tempo de Clarice, em Pernambuco, onde a escritora passou a infância. Mas o tempo de Clarice é tão único, e corre em outro ritmo, o da subjetividade feminina. Por isso sua literatura é revolucionária, por abrir novos caminhos para a prosa, e Clarice escreve por inteiro, envolvendo a realidade, os objetos e as personagens com todo o corpo, oferecendo aos leitores uma visão alternativa da realidade.

Para a autora de Perto do Coração Selvagem, o tempo maior é o dos pequenos instantes de epifania, que provocam o crescimento emocional e psicológico das personagens, como a grã-fina que experimentam um turbilhão de emoções ao pisar num rato morto, distraída, em seu passeio por Copacabana. Esta Clarice, autora, está no palco do CCBB, muito bem representada por Beth Goulart. Também a Clarice pessoa, das cartas e entrevistas, desfilando o elegante figurino dos anos cinquenta,em meio a um amplo e belo cenário, iluminada com arte e precisão. Clarice, a mulher que gostava de ser apreciada acima de tudo pela beleza física. A mãe que trabalhava sentada no sofá, com a máquina de escrever no colo, os filhos pequenos ao seu redor.

É um monólogo, um corte e colagem de tempos e espaços, um retrato com claros, escuros e nuances da escritora, mãe e mulher. Um texto bem ao estilo de Clarice, em palimpsesto.

Parabéns para Beth Goulart!


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24 horas no ar

Ontem fui com amigos assistir Vau da Sarapalha, carro chefe do grupo Piollin, criado há trinta anos, na Paraíba, pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos. O espetáculo está em cartaz há dezessete anos e volta ao Rio depois de um grande sucesso em 1993. Talvez a última oportunidade para ver a mais premiada das adaptações de Guimarães Rosa para o teatro.

Depois, fomos jantar no novo restaurante da moda, o Oui Oui, da mesma turma do charmoso Mian Mian. Eles têm uma loja de móveis de época, a Hully-Gully, no Shopping da Siqueira Campos, onde podem ser negociadas todas as peças expostas nos dois restaurantes que ficam em casas, em Botafogo. No Oui Oui, há dois salões, um decorado no estilo Art Deco, o outro bem anos 70. Os dois ambientes, no entanto, são harmônicos no conjunto. E o capricho no estilo vai até o serviço, do tipo descontraído, sem os tradicionais maitre e garçons, mas jovens profissionais do setor de alimentação vestidos, e bem-vestidos, de maneira casual. Logo na entrada, o freguês é recebido pela Mariana, uma graça de moça com um rosto lindo que parece ter saído de um filme da nouvelle-vague. Seu jeitinho esguio de manequim e modelo lembra Cleo de 5 às 7, a obra-prima de Agnes Varda.

A comida também é boa, e os pratos são servidos em pequenas porções, o que proporciona uma diversão a mais, pois são dispostos no meio da mesa para que os comensais possam se servir de tudo um pouco. Ontem éramos quatro e pedimos duas rodadas de três pratos entre costelinhas caramelizadas, vol au vent de rabada, linguicinhas com molho de maracujá, bacalhau com cebolas e tapenade, panquecas de figo seco com pato desfiado e brulé de Grana Padano. Tudo uma delícia. Mas um contraste radical com o universo de Guimarães Rosa, de escassez e simplicidade. E aí, devo fazer uma confissão: tenho a maior dificuldade com o universo de Guimarães Rosa, que é um dos nossos maiores escritores, e nisso não ponho dúvidas. Mas o negócio é que não me agrada a temática da roça, a simplicidade em demasia, a precariedade dos costumes, a falta de polidez, a sinceridade exagerada, a estética de valorização dos elementos primordiais e as fabulações meio brutais do sertanejo.

No entanto, acabei de ler Os Sertões, de Euclides da Cunha, para o programa em homenagem aos 100 anos de morte do escritor. E adorei o livro. Um ensaio científico, um tratado antropológico, um épico sobre a Guerra de Canudos, um emocionante drama da nossa história. E o autor conta essa história, na qual os heróis são, na verdade, os vencidos, com tal poder de comunicação que é impossível, mesmo ao leitor mais relapso, não se envolver ao ponto de não querer largar o livro.

Eu fiquei obcecada pela narrativa meio jornalística, meio romanesca, da luta dos jagunços de Antônio Conselheiro contra o exército republicano, armado até os dentes e em número extraordinariamente superior. E a paisagem da caatinga descrita de forma expressionista, com galhos retorcidos, ramagens espinhentas, o céu abrasador e um chão que foge aos passos.

São coisas que me agradam, principalmente na literatura. Agora, aquela “vida besta”, da qual nos fala Drummond... tô fora. Eu gosto mesmo é da vida movimentada dos grandes centros urbanos, de teatro, de cinema, de bares cheios de gente; de tomar um cafezinho com ovo colorido num botequim do centro, de traçar um sanduíche de carne assada no balcão do Lamas, de virar um chope na calçada do Belmonte, dos shows no Teatro Rival e dos cabarés da Lapa.

Dizem que isso é coisa de homem. No entanto, quase todos que eu conheço, quando começa a esquentar o namoro vêm com a conversa de que seu sonho é viver num lugar tranquilo, fugir da cidade grande, ter uma pousada no sul da Bahia e coisas ainda mais esdrúxulas, como comprar uma de terrinha na Amazônia e criar gado pro resto da vida. São veleidades, eu sei. Mas veleidades tipicamente masculinas, pois eu nunca ouvi mulher dizer que quer morar no mato. Ao contrário, as mulheres quanto mais amadurecem mais querem movimento, festas, restaurantes cheios; querem mais é consumir, de cultura a sapatos.

Eu desconfio que a intenção deles é passar a mensagem de maneira subliminar de que estão prontos para arranjar um amor e sossegar, por fim às farras, criar raízes, viver na base de um para o outro... papo de encomenda para amolecer o coração da mulherzinha romântica que há dentro de todas nós, e nos fazer ficar macias com a ilusão de que ele está pronto para um compromisso sério, e que para isso só falta encontrar a verdadeira companheira.

Da minha parte, não gosto de ser iludida. Mas como também não quero enganar ninguém, digo logo que gosto mesmo é da metrópole e, se dependesse de mim, o mundo girava acordado noite e dia. Eram 24 horas no ar.

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Blind Date

Não adianta o quanto eu resista à idéia, os amigos continuam empenhados em me arranjar um namorado. Desta vez foi um blind date, coisa que eu só conhecia de ouvir falar, como a música do Zeca Pagodinho com o caviar. E também das comédias românticas do cinema. Inclusive uma das minhas preferidas é Blind Date (Encontro às escuras), do Blake Eduards, um craque no gênero cujo maior sucesso foi Víctor ou Victória, a história de um gangster que se apaixona por um travesti, o qual na verdade é uma vedete disfarçada para atrair público a um cabaré às voltas com dificuldades financeiras. Enredo narrado de maneira leve e sofisticada, na melhor tradição de Hollywood, desde Lubitch e Wilder.

Blind Date é mais recente, porém distante o bastante para apresentar um Bruce Willis com mais cabelo e menos do muito charme que vem colecionando desde então. Ela é a eternamente linda, sexy e talentosa Kim Bassinger. E o filme é um tesão. Imagine o cara precisar de uma acompanhante para fazer par com ele num jantar de negócios com empresários japoneses super tradicionais, acompanhados de suas esposas meio gueixas. Um colega de trabalho lhe arranja o telefone de uma garota gente boa que topa a parada. Porém, ele não sabe que a moça tem um problema neurológico, daqueles que potencializam o efeito do álcool no cérebro. Acontece que antes do jantar, por um contratempo, ela fica sozinha na sala de espera de um hospital com uma garrafa de uísque na mão, enquanto ele visita um amigo internado. Ele demora, ela se embriaga e está feita a confusão. É claro que os dois acabam se apaixonando, não sem antes derrubar tabus, desmentir verdades absolutas, trombar meia dúzia de carros e quebrar uma cama (o melhor do filme).

Impossível não se divertir com uma fita dessas. Que ainda adverte o espectador para os perigos de um encontro às escuras. Coisa que ignorei e acabei aceitando um convite para jantar com um empresário colega de academia de boxe do meu melhor amigo, que faz tempo vem mandando recadinhos insinuantes para mim. E como não iria aceitar sabendo que se tratava de um cinquentão bem educado e de porte atlético. Assim, depois de uma boa conversa por telefone, combinamos o encontro para o fim de semana seguinte. Fomos a um bistrô perto de casa, atendendo à minha conveniência. Diferente de qualquer restaurante no Leblon, no Empório Santa Fé você não topa com três mesas de gente conhecida logo na entrada. E um casal que está saindo junto pela primeira vez é facilmente reconhecido como tal. Além do mais a comida lá é gostosa e tem uma carta de vinhos bem legal, segundo os entendidos. Eu estava decidida a beber pouco e prestar mais atenção. Ele bebeu pouco também. Mas falou muito. Muito mesmo. Contou a infância, a juventude e a vida mais recente. Fazia digressões elaboradíssimas, ocasiões em que me lançava uma pergunta. Porém, eu mal ensaiava uma consideração era interrompida sem a menor cerimônia. E o empresário ainda perguntou se eu me incomodava de ser interrompida. Isso com um certo desdém, como se não gostar de ser interrompida fosse um capricho pueril.

Fazer o quê? Eu ali, de testa para um homem bonito, forte, inteligente, bem-sucedido que não esquecia por um momento disso tudo e só falava de si. E falava pelos cotovelos. Falava tanto que o jantar já estava quase terminando e eu não conseguira encaixar um assunto sequer. Foi quando ele pediu licença para ir ao banheiro, ficou em pé e, enquanto aproximava sua cadeira da mesa, olhou para mim e mandou um beijinho. Eu sorri e lhe disse que fosse tranquilo, pois eu iria aproveitar aquela oportunidade para falar um pouquinho de mim.

E assim terminou o meu blind date.

Tudo bem, o pior mesmo foi ouvir no dia seguinte do meu melhor amigo que o meu mal é não ter a mínima paciência. Sinceramente, não tem condições.

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