A pele que habito

Bem garota, nos meus oito ou nove anos de idade, presencie uma cena que guardo até hoje como amostra da condição existencial do indivíduo, único, sozinho, abandonado em sua paixão pessoal e intransferível. Aconteceu em uma tarde preguiçosa de verão do Rio de Janeiro. Uma aparentada nossa foi recebida em casa com certa consternação, um ar inusitado de solidariedade permeando a habitual amabilidade com que meus pais costumavam receber.

O fato me chamou a atenção e passei a acompanhar de perto a visita. Tratava-se de uma mulher, magra e muito curvada. Não pela idade, que não devia passar dos quarenta e tantos anos, mas pela intensa aflição que lhe pesava como um fardo. E lhe ardia pelos poros, engelhava-lhe o rosto e fazia saltar-lhe as veias das mãos que alisavam mecânica e nervosamente a alça da bolsa de couro roto que trazia no colo.

Essa triste figura passava pelo desgosto de ter o marido preso por conta de uma refrega num bar, na qual atirou em um homem com uma arma que nem era sua. Era um boêmio inveterado, mas muito querido dos meus pais e alegre e carinhoso conosco, crianças, a quem costumava segredar com muita verve diabruras da infância. Seu nome era Odraude, o contrário de Eduardo, e pelo vaticínio de nascimento vê-se logo o porquê de, em toda uma família de biografias exemplares, ter sido ele o único a sair ao desvio.

Mas o que me fez mergulhar assim no profundo das minhas lembranças foi assistir ao mais recente filme de Pedro Almodóvar, A pele que habito. E aproveito para dizer que não entendo como o filme não foi um sucesso estrondoso logo na noite de abertura do Festival do Rio. Acreditando-se que o público ali era de, senão de cinéfilos, gente interessada em cinema, convidada para fruir o que a sétima arte produziu de melhor no último ano. Ou as pessoas vão a uma estréia mais para ver e serem vistas, somente para fotos e flashes?

Perderam!, pois A pele que abito é um filmaço-aço-aço. Quem saiu no meio da sessão no Odeon para esperar a festa no barzinho ao lado perdeu uma aula de cinema. Um roteiro ousado e ao mesmo tempo preciso, adaptado de uma história originalíssima, que fala de alterações nas várias camadas do sentimento humano e na delicada estrutura de identidade do indivíduo. Uma direção de arte que brinda o olhar da audiência a cada enquadramento e ao acompanhar a ação, valorizada pela atuação de um Antônio Banderas surpreendente.

Ora, essa história plausível e fantástica ao mesmo tempo, contada com excelência cinematográfica, é uma metáfora da condição existencial de todo ser humano. E me envia diretamente ao momento em que percebi pela primeira vez na vida o que seria sentir na pele a falta do marido, o desamparo dos filhos e a humilhação social. Leva-me àquela tarde e à resposta da mulher ao comentário desdenhoso de um cunhado indiferente ao seu infortúnio: “Você diz isso, fulano, porque não está na minha pele.”

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Salomão e o Festival do Rio

Dizem que a economia por aqui está bombando, muito por conta das escolhas acertadas nos investimentos sociais da era Lula, a despeito da crise internacional. Ou talvez por isso mesmo, como acreditam outros, os europeus estejam investindo pesado no Rio de Janeiro, e daí a recente alta espetacular nos preços dos imóveis nos últimos dois anos. Há os que apontam ainda a expectativa de forte injeção de grana na economia carioca por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas vindouras. Eu, sinceramente, não sei fazer um diagnóstico nem mesmo impreciso do que ocorre, mas percebo os sintomas de um Rio de Janeiro eufórico e angustiado ao mesmo tempo.


Noto uma população tão animada que chega a ser ansiosa no afã, perdoem o pleonasmo, de aproveitar ao máximo toda a oportunidade de diversão que lhe é apresentada. Foi assim na última Bienal do Livro, no Riocentro que fez recorde de público. Nunca se viu tanto visitante no evento, ao ponto de ter sido necessária a intervenção da Defesa Civil, para controlar a lotação do espaço no último dia. Mas a Bienal tem entrada franca e é programa para toda a família, dirá você. Sim, no entanto, foi sempre dessa forma e nunca houve, nas quatorze edições anteriores, tanta gente interessada em ver livros assim.


E o que dizer do Rock’nRio? Outro estouro da boiada. Filas de seis horas para andar na roda-gigante, quatro horas para a montanha russa e outras tantas para outras atrações. É muita vontade de dar voltas e reviravoltas no ar, ou eu estou mesmo ficando velha e não sou capaz de avaliar o grau de satisfação proporcionado por esses brinquedos.
Então vejamos o tipo de diversão mais apropriado para a minha idade e estilo de vida: cinema. Sempre acompanhei o Festival do Rio, com qualquer nome que tenha tido, não perdi uma de suas várias edições. Fui assídua frequentadora da plateia do Odeon e fiz bons amigos no café do teatro, gente que conheci ou reencontrei durante os intervalos das sessões. E, com crachá ou convite, sempre consegui assistir aos filmes que quis, muitas vezes um seguido do outro, como propõe a própria programação do evento.
Acontece que este ano a coisa mudou. Ou venderam mais ingressos do que a lotação do Odeon, ou em anos anteriores não havia a euforia de que falei mais acima. Só sei que com tempo bom ou com chuva as filas eram imensas e quem saísse de uma sessão não conseguiria lugar na sessão seguinte, mesmo que ficasse mais de meia hora na fila. Aliás, a média foi de 45 minutos de fila por filme exibido. A estimativa é minha, baseada em experiência própria ou no depoimento de amigos. Uma pena para os verdadeiros cinéfilos e uma falha para com os que estavam ali a trabalho, como o Salomão Azaria.

Salomão é um dos camaradas que fiz no café do Odeon, há alguns anos, numa edição do festival. Ele me foi apresentado por uma amiga em comum e desde então somos companheiros da maratona cinéfila. Hoje, mais do que isso, somos amigos. Salomão faz o Festival de Cinema Brasileiro de Israel, e o faz como ninguém. Todos os anos leva uma seleção dos nossos melhores filmes para a mostra que ocorre nas três principais cidades do país, Tel-aviv, Haifa e Jerusalém. Acompanhando os quinze longas-metragens, sendo dez de ficção e cinco documentários, vão diretores ou atores dos respectivos filmes que junto com jornalistas ou críticos formam a delegação de brasileiros convidados pelo festival. Eu mesma fui convidada em 2008 e fiz a cobertura do festival para o Jornal do Brasil.

É claro que Salomão precisa assistir a todos os filmes, caso contrário a seleção seria tendenciosa, ou no mínimo injusta, ao recair apenas sobre parte das obras inscritos no festival. Pois acreditem, a disposição de Salomão é tanta que ele chegou a assistir a um filme sentado no chão. Foi Sudoeste, logo a vedete do festival. Saímos juntos do filme anterior e entramos diretamente no fim da fila que dava a volta no quarteirão, mas não conseguimos um assento. Eu fui embora. Salomão sentou-se na escada, no fundo da plateia, e assistiu impávido ao filme até o fim. Eu morri de pena de não ver Sudoeste. Salomão adorou o filme que já está na lista dos que serão exibidos no Festival do Cinema Brasileiro em Israel.
Moral da história: No final dá tudo certo, mas dessa vez foi por um triz. E

E assim caminha a humanidade...

No Aurélio, xodó quer dizer envolvimento amoroso, namoro, paixão. Ou ainda, por metonímia, indivíduo por quem se estabelece um vínculo de afeto, estima, apreço, afeição. Desta forma, alguém pode dizer que fulano ou fulana é seu xodó. Só que eu não vou tratar de gente aqui. Tampouco é para falar sobre animais de estimação que eu volto a esse blog, depois de longo inverno. Até porque eles são considerados gente para muitos de seus donos e eu, que nunca entendi direito isso de achar que bicho é gente, prefiro não entrar nessa seara.

Portanto, eu quero mesmo é falar de coisas que são ou foram um xodó para mim, coisas das quais eu tive que me desfazer, não sem sofrimento, quando as contingências me obrigaram. Como quando mudei de um casarão em Santa Teresa, onde vivi por muito tempo. Além de perder o convívio em um dos bairros mais adoráveis do Rio, com suas ruas de paralelepípedo, a legião de inofensivos bichos-grilos e a alegria do sobe e desce do bondinho, deixei para trás alguns objetos que foram meus verdadeiros xodós. Desta forma, lá ficou um lindo anjo de madeira rústica que, postado à entrada de casa, parecia proteger bravamente nossa existência.

Li recentemente que o Deepak Chopra acredita ser o amor uma constante que permeia o Universo. Meu cunhado, o Bi, costuma dizer que o amor é a costura do mundo, é ele que nos une a tudo que prezamos, e seria ele ainda o responsável por nossa longa convivência com, por exemplo, uma certa cadeira que nos acompanha para onde quer que nos mudemos, ou aquela jaqueta de jeans que usamos raramente mas da qual nunca conseguimos nos desfazer, ou mesmo um copo de cristal que está na família desde o tempo da bisavó. Amor, apego, carinho ou xodó? Chame como quiser, o fato é que há mesmo uma liga, um tanto misteriosa, entre nós e alguns objetos.

Mas há que deixam saudades por motivos diferentes, como o meu antigo aparelho de televisão, de muitas polegadas, comprado e inaugurado no dia da morte de Airton Senna, vejam só há quanto tempo. Pois dele me desfiz há pouco. Troquei-o por um moderníssimo monitor de mais algumas polegadas, alta definição, visão lateral e outras modernidades aproveitadas apenas em conexão com outros aparelhos, porque para assistir à programação da nossa rede aberta não dá. Para ver a novela da Globo, por exemplo, é preciso fazer um ajuste na tela, já que a produção global é captada em medida diferente. E com o ajuste necessário, a tela fica reduzida ao padrão do antigo aparelho. Resumo da ópera: o arrependimento de ter perdido sem grandes motivos uma TV tão querida e familiar, ao ponto do meu filho cumprimentá-la solenemente quando vinha me visitar.

Além disso, eu desconfio que existe o xodó inverso, ainda mais misterioso, pois se trata do amor que alguns objetos demonstram por nós. Falo daqueles artefatos que nos acompanham desde sempre, e quase que independentemente da nossa vontade. Algo sem muito valor, beleza ou serventia, mas que, sabe-se lá porque, não quebra apesar de ser de vidro e não some apesar da dimensão reduzida e das muitas mudanças da vida.

É o caso de uma tigela de vidro verde escuro, da qual eu nunca me lembro, e que entrou em minha vida como um presente de casamento. Ela fica lá, quietinha, no fundo de um armário e raramente é utilizada. Mas gosto dela mesmo assim. Não porque seja especial, bonita ou de valor, mas simplesmente porque há anos está lá e, mesmo esporadicamente, tem ajudado a servir gostosas saladas aos filhos e amigos e, o mais interessante, só agora me dou conta do quanto conto com ela para servir receitas ainda mais saborosas aos netos que terei um dia.


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Um jeito tupinambá de ser

Outro dia, numa entrevista para o programa Cidade de Leitores sobre a obra de Darcy Ribeiro, o professor Bessa Freire contou uma passagem ótima de se contar ocorrida com os tupinambás, que formavam a grande maioria entre as nações indígenas brasileiras na época do Descobrimento. E desde então, a idéia que a história encerra me serve de parâmetro quando estou às voltas com algum opressor de plantão, daqueles que não faltam no mundo de hoje, e que fazem da cobrança um exercício constante, quase um cacoete.


Foi na época da Invasão Holandesa, quando um português, autoridade na região, combinou com um chefe tupinambá uma investida contra os inimigos em comum. A batalha ocorreria em determinada hora e local, dali a um mês, tempo necessário para os preparativos. Ficou acertado que os índios, guerreiros notáveis, viriam em grande número se juntar ao contingente de brasileiros e portugueses que tentavam sem sucesso a expulsão dos intrusos.


Acontece que no dia da batalha os tupinambás não apareceram, não mandaram aviso, desculpas, uma justificativa se quer. O que além de decepcionar, provocou muita raiva no portuga, poi teve que adiar o combate e ainda por cima dar satisfações à metrópole.

Passada uma lua do incidente, aparece na cidade para uma visita à mesma autoridade o ditoso chefe tupinambá, com seu séquito, seus belos adornos e sua atitude mais que altiva, marrenta até. Interpelado pelo rabugento político, o índio respondeu que não comparecera ao encontro porque tivera melhor coisa pra fazer e que para governo dos brancos seria bom que soubessem que um tupinambá não é escravo sequer da própria palavra.

Moral da história: não me chamem pra roubada que eu sou tupinambá. E quem quiser conhecer mais sobre a história e cultura desses indígenas – conhecidos no Rio de Janeiro como Tamoios –, os quais contribuíram e muito para a formação da mentalidade carioca, deve ler Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa.

No livro, Mussa, um carioca da gema, reconstitui a mitologia dos antigos tupinambás juntando a pesquisa de documentos históricos com relatos de alguns dos nossos primeiros cronistas. Entre eles André Thevet, um frade católico que veio para o Brasil, por volta de 1550, durante a ocupação da Baía de Guanabara pelos franceses e, acompanhado de um intérprete, conviveu com os indígenas registrando vários aspectos da cultura tupi.

E é com uma porção dessa cultura, salpicada de pitadas da tradição afro-brasileira (que conhece bem) que Mussa cria a saborosa narrativa de O senhor do lado esquerdo. Um romance do gênero policial, de prosa ágil e ao mesmo tempo manhosa, como a ginga do capoeirista Aniceto, personagem central e originalíssimo, que dá ao mais novo livro de Alberto Mussa, um sabor quase afrodisíaco.




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MEIA-NOITE EM PARIS

Em São Paulo o melhor programa no feriado de Corpus Christi foi assistir ao filme novo do Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. E foi um programão, porque todo filme do diretor suscita uma boa conversa depois da sessão, nem que seja para “tocar o pau”. Foi o que aconteceu com Vicky Cristina Barcelona, uma chatice que, no entanto, me rendeu uma crônica para a Gazeta Mercantil no tempo que ela existia. No mais, três atores jovens e bonitos jogando muita conversa jogada fora.

Já esse novo “Woody Allen” não tem tanto apelo sensorial (e sensual), mas é muito mais inventivo, aproveita melhor a atmosfera onírica da projeção numa sala de cinema e mexe mais com as fantasias de viagens reais e imaginárias que habitam quase todos os mortais, ou pelo menos os não caretas. Então, dá papo para um jantar, ou mesmo um vinhozinho depois do cinema, qualquer que seja a sua companhia (menos os caretas, é claro!).

Um amigo meu discorda. Ele acredita que só quem sabe quem é Georges Braque ou Luiz Buñuel pode aproveitar o filme. Os outros seriam como burros olhando pra palácio. Discordo. Cinema bom é bom para todo mundo, independentemente do nível cultural, social ou econômico. Lembro que levei meu filho Guilherme quando ele tinha dez anos para ver Ladrões de Bicicletas, de Vittório De Sica, na Cinemateca do MAM, e do impacto que o filme provocou nele. Tenho certeza de que até hoje a sua maneira de ver o mundo foi influenciada pelo realismo italiano de De Sica.

Agora, para quem já esteve e curtiu a capital da França, aí sim, Meia noite em Paris faz diferença. E logo no início do filme tem uma deliciosa sequência de planos da cidade que, em beleza arquitetônica é campeã. As tomadas sobre o Sena, o bateau mouche passando sob as centenárias pontes da cidade; o Trocadero, onde, num café e restaurante, pode-se, ao final da tarde, saborear macarrons e uma taça de champanhe enquanto se espera a chegada da noite para ver a Torre Eiffel iluminada.

Bem, são apenas reminiscências parisienses que eu já contei aqui mesmo neste blog, um tempo atrás, ao recordar os alegres e diuturnos passeios de bicicleta pela cidade luz. Portanto, para mim, qualquer oportunidade de ver Paris, mesmo que na telona, é um bom programa. E além do mais estávamos em São Paulo e, depois do cinema, fomos destrinchar o filme e saborear um vinhozinho tinto na Mercearia do Conde, que ninguém é de ferro e fazia frio naquela noite.

No dia seguinte, a boa era almoçar no Mercado Municipal. E como nos arredores fica a Rua 25 de março, não deu para resistir e fomos às compras. E aí é que eu fiquei mesmo besta. No mesmo Shopping 25 de Março, onde alguns anos atrás houve a grande e escandalosa apreensão das “moambas”, que levou à cadeia o contrabandista chinês, do qual não me lembro mais o nome, eram oferecidas bolsas e acessórios falsificados por preços módicos mesmo. E os guardas nas esquinas orientando os turistas com a maior tranquilidade:
_ Seu guarda, por favor, onde fica o Shopping 25 de Março?
_ Na próxima esquina, bem em frente à guarita da polícia.
_ Ah..., bom. Obrigada!

Isso é Brasil.

E depois de dar uma volta no bazar da contravenção, formos almoçar no Marcado Municipal. O lugar estava lotado, mas o seu Elídio, dono de um dos restaurantes no segundo andar, foi com a nossa cara e nos serviu no balcão mesmo uma caipiríssima mais do que honesta, verdadeiramente generosa! Enquanto a mesa não saía, e a nossa senha era de vários dígitos, fomos nos divertindo como os petiscos que, de tão fartos e gostosos, nos saciaram o apetite. O jeito era ceder a mesa para o casal seguinte e voltar para o hotel feliz da vida com as compras e o efeito da vodka tirando a gente um pouco do chão.

Não sei se foi por conta da euforia etílica, porém, ao passar por uma esquina, ao pé da ladeira que leva a multidão à entrada do metrô, me deslumbrei com a voz de uma menina que, em seus magrelos 15 anos, chamava à porta de uma galeria para a remarcação relâmpago de bolsas ao final do corredor. Pelo timbre da voz, pelo physique du rôle, pelos plenos pulmões com que anunciava o saldo, lembrou-me Edith Piaf cantando na rua para ganhar uns tostões.

E ela era bonita, e era esguia, e colocava talento no que fazia. Seria com certeza uma bela cantora, se alguém lhe descobrisse o dom e lhe ajudasse a burilar a voz. Um coral de igreja aos finais de semana e a garota estaria no caminho do estrelato. Não era ainda um esbanjamento, pela tenra idade. Nem um caso perdido pelo mesmo motivo. Mas que dá pena ver tanto potencial desperdiçado numa esquina fria da Pauliceia, ah, isso dá.

E isso também é Brasil.

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Estreia Cidade de Leitores

Estreia no próximo sábado às 9h30, na Band, a nova série Cidade de Leitores. É um programa de literatura, no qual eu entrevisto escritores e especialistas no assunto, com entrevistas de 30 minutos de duração, e que promove a cada edição um diálogo da literatura com outras formas de expressão artística como cinema, teatro, artes visuais, música, histórias em quadrinhos e etc. Uma atração que não se propõe discutir a literatura ensimesmada na palavra, mas valoriza o sentido do texto, os caminhos da leitura que levam a reflexões que irão de alguma forma transformar nossas vidas. É como diz o jovem escritor português Gonçalo M. Tavares: “... um bom livro vale em média cem gramas de lucidez. “

Este é o terceiro ano do programa que volta remodelado desde o nome até o tempo de produção. Nos dois anos anteriores fizemos o programa ao vivo com participação do público. Agora, com meia hora a menos, o programa conta com duas entrevistas gravadas em locações externas. Em consequência está mais ágil, pois além de mais curto, por ser gravado permite uma edição mais interessante, com imagens de arquivo e com muito mais ritmo.

Eu sou a editora de conteúdo e roteirista do programa. Para as entrevistas que dialogam com outras expressões artísticas, conto com a colaboração inestimável dos roteiros de David França Mendes há quase um ano. Essas matérias, que podem ser acessadas no YouTub, são muito bem dirigidas, assim como o programa todo, por André Glasner. Carolina Antonutti é a nossa competentíssima produtora e Leonardo Ribeiro, nosso talentoso editor de imagem.

O Cidade de leitores faz parte de um programa mais amplo da secretaria municipal de Educação, com várias ações de incentivo à leitura, chamado Rio, uma cidade de leitores. É um exemplo da preocupação da secretária Cláudia Costin com a formação cultural de professores e alunos da rede municipal de ensino. É por aí que acompanho o trabalho da secretária desde o início de sua gestão e sou testemunha de seu esforço no sentido de melhorar e modernizar o ensino no Rio de Janeiro. Portanto, posso imaginar sua consternação com o massacre das crianças na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. E é aí que vem ao caso o comentário de Zuenir Ventura em sua crônica de hoje. Ele observa ser mais importante do que discutir o controle de armas, neste momento, pensar uma série de iniciativas para reprimir e até impedir os casos mais agressivos de bullying nas escolas. Eu assino em baixo.

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Um certo leão-marinho

Voltar a esse blog com algum assunto leve – depois de uma temporada ininterrupta de leitura pesada e acelerada que não me deu tempo de nada além de trabalhar – é o que me leva a escrever hoje. Porque se tivesse que tratar de coisas sérias, fatos graves, confabulações metafísicas ou qualquer questão relacionada a direitos autorais, por exemplo, não me aventuraria não. Ainda mais que antes de mais nada devo encerrar a historia do mergulho no Pacífico Sul.

Então, vamos lá. Foi em Vinha Del Mar, a cidade dos festivais de música dos meus anos dourados. Um balneário formoso e organizado, como quase tudo no Chile, com uma pitada de sofisticação nostálgica que me deu a sensação de estar em algum filme dos anos 60, com trilha sonora de Pepino di Capri.
Talvez a topografia da via litorânea que nos levou de Valparaiso a Vinha Del Mar, costeando a orla de pedras escarpadas pelo mar muito azul repicado de espuma branca, tenha feito eu voltar ao tempo das comédias românticas, nas quais casais enamorados zarpavam pela cote d’azur em seus conversíveis coloridos ao som de Sapore di Sale.

Mas acordei dessa “viagem” quando paramos num mirante e vimos um grupo de pessoas fotografando loucamente um rochedo em frente. Ao me aproximar da balaustrada, com a curiosidade aguçada pelo frenesi dos turistas, descobri uma família de leões-marinhos se esbaldando de mergulhar nas ondas revoltosas da encosta, para depois voltarem aos solavancos, cada qual ao seu lugar nas escarpas do rochedo.
Aparentemente eles fazem o maior esforço para subir, pois se jogam com todo o peso sobre as pedras e vão se arrastando para o alto em solavancos, contando apenas com o movimento ondular do corpo roliço para ajudar. Tampouco se manter ali parece fácil. A violência do mar os derruba de volta à água com frequência, e eles têm que empreender novamente, e desde o início, a maratona rochedo acima, até conseguir se firmar num lugar ao sol.

Diversão dificultosa a desses mamíferos, você diria. Qual é a graça afinal? Eu não sei bem, porque não me aventurei num mergulho naquela água gelada. Além do mais que soprava um ventinho frio e, apesar de ser verão, o clima é de sul da América do sul. Logo, uma combinação enregelante por demais.

No entanto, os leões-marinhos pareciam estar adorando o banho de mar. Posso até jurar que eles riam a valer a cada mergulho. E alguns ainda gargalhavam, tirando sarro dos mais desajeitados, aqueles que pelejavam para alcançar um encosto seguro no rochedo, tombados que eram sem cessar pela força das ondas constantes. Realidade ou fantasia? Pouco me importa. Relevante mesmo foi sentir a alegria contagiante daqueles bichos. Alegria, animação, entusiasmo, sei lá, só sei que ver a persistência de um leão-marinho mais gorducho, e mais lento que os outros, para alcançar as pedras e enfim poder descansar me animou a entrar na aula de natação no mar.

Agora, frequento a academia do campeão Luis Lima, na praia de Copacabana. Todo sábado, chova ou faça sol, lá vou eu de maiô, touca e óculos de mergulho. E, quando o mar está frio ou agitado, não me intimido não. Penso no meu leão-marinho gorducho e desajeitado, e nos muitos caldos que ele levou até alcançar seu lugar ao sol. Aí, eu entro nesse Atlântico Sul de cabeça, sem medo e sem frio, e mergulho com um sorriso no rosto e um calor danado no coração.

Mergulho no Pacífico Sul

Um mergulho no Pacífico Sul, foi como começou a conversa que nos levou ao Chile, um país que, pela diversidade topográfica e climática, oferece uma formidável variedade de passeios, com paisagens e atrativos que justificaram as cinco horas de voo e as duas semanas que passamos lá.

A cidade de Santiago frequentava o meu imaginário há muito tempo, como contei na postagem anterior. Mesmo assim, a realidade não foi totalmente desapontadora, por conta da limpeza das ruas, da organização urbana, da educação e gentileza dos moradores, e por estar incrustada na pré-cordilheira dos Andes, o que lhe dá certa atmosfera de proteção.

Imagine uma São Paulo um pouco menor, menos barulhenta, com um trânsito mais bem resolvido, e cercada por montanhas de picos nevados que compõem um visual do tipo "Shangrilá"? Seria um sonho se o fato de estar naturalmente cercada não fizesse a cidade sofrer com a frequente alta poluição do ar. Acontece que é raro chover na região e a cordilheira impede a passagem dos ventos que levariam as partículas indesejáveis de poeira para o mar.

No pouco tempo que passamos em Santiago, quatro dias ao todo, não deu para sentir essa poluição, foi tudo muito agradável. A comida é razoável, pra quem gosta de salmão é uma festa, e tem ainda um King Crab que é uma viagem. É o mesmo Santolla que se encontra na costa atlântica de Portugal, na cadeia de restaurantes Oscar, de Nova Iorque, e em todo o Canadá. Para mim, a iguaria é um tesão de sabor e contém uma quantidade de proteína que, combinada às ostras frescas da entrada, transformou-se na refeição mais afrodisíaca que jamais provei. Ainda mais que essas delícias se comem com as mãos.

A cidade tem ainda os vinhos chilenos ao preço de “vinho nacional”. E muito próximo, o adorável balneário de Vinha Del Mar, onde ocorreu o nosso tão esperado e propalado mergulho no Pacífico Sul. Enfim, a capital do Clile tem quase tudo para fazer de uma cidade um lugar bom para viver, a não ser por um senão. E aqui eu peço licença a Clarice Lispector - e à precisão de seu comentário sobre uma cidade da Suíça - para dizer sem hesitação: falta demônio em Santiago do Chile.

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Na terra de Allende

Conversa vai, conversa vem, depois de gostosos mergulhos no Atlântico Sul – comentados aqui na última postagem –, resolvemos tomar um banho de mar no Pacífico Sul, só para comparar. Em dois dias tínhamos um roteiro organizado, com passagens marcadas e hospedagem garantida no Chile. Um país que nenhum de nós conhecia, apesar de constar da lista dos lugares que um dia iríamos com certeza visitar.

Santiago para mim era e continua sendo a terra de Salvador Allende. A cidade para onde foram nossos exilados políticos quando pela primeira vez na história da América Latina um socialista marxista era eleito presidente. A cidade mais citada nas memórias desses brasileiros que participaram da luta armada ou não, militantes de esquerda ou simplesmente defensores da democracia que depois, em tempos de anistia, contaram em livros suas aventuras e desventuras no exílio. Alguns dos quais se tornaram best sellers e eu saborosamente li.

Garota meio alienada, por força da repressão que engolfava todas as instâncias da vida social e transbordava para o seio das famílias, apavoradas com a possibilidade de ter um esquerdista entre os seus, fui despertada da modorra política por um tio que costumava nos visitar. Como notasse que eu lia na revista Manchete uma reportagem sobre o novo presidente do Chile, um socialista eleito por sufrágio universal, ele vaticinou por entre o bigode cerrado,com sua voz de trovão:

__ Esse Allende vai cair. Socialista na América Latina tem que tomar o poder, tem que fazer revolução. Eleito de forma democrática, ele não se sustenta, não governa de jeito nenhum. Vão derrubá-lo, minha filha, você vai ver!

Passaram-se três anos e a maldição se confirmou. O palácio de La Moneda foi cercado e Salvador Allende morreu resistindo à investida do seu chefe das Forças Armadas e antigo homem de confiança Augusto Pinochet.

O resto da história vocês sabem. Eu também. Pois tendo a curiosidade politica revitalizada por um analista no mínimo intuitivo, passei a preferir as rodas masculinas de conversa e as colunas de política nos jornais. Sempre com interesse meio transversal porque o assunto era proibido em casa, na escola, na praia e onde mais os jovens se encontrassem, sob pena de ser tomados por subversivos. Fama pior do que a de “galinha” para uma moça de família.

Mas agora, tantos anos depois, lembrando daquela época com uma pontinha de nostalgia, eu me encontrava em frente ao palácio no qual o primeiro presidente socialista marxista da América Latina entrara para três anos depois morrer resistindo ao famigerado golpe do general Augusto Pinochet. A emoção foi imensa. E confesso que senti correr na espinha o mesmo arrepio de tempos atrás, quando ao saber da notícia da queda de Allende, fui tomada pela angústia de, de alguma maneira, ter sido conivente com as forças da repressão.

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Pôr do sol no Arpoador

Depois de um longo e adorável invernico em Teresópolis, onde passamos Natal e Réveillon, resolvemos tomar uma prize de Rio de Janeiro e fomos ver o pôr do sol no Arpoador. Foi no último domingo. Já era tarde, início da noite, e no entanto o sol parecia ir ainda alto, dada a intensidade da luz. Vinhamos de Copacabana e, por volta das dezenove horas cruzamos a Francisco Otaviano, no sentido de Ipanema. Em sentido contrário vinha um mundo de gente deixando a praia. Eram grupos só de rapazes ou só de moças, outros mistos e de idades variadas, pais e filhos, famílias inteiras, avós,tios, madrinhas e padrinhos, crianças de colo ou bem pequenas se entrelaçando nas pernas dos adultos, mulheres velhas de fio dental e muito, mas muito sacolé. Enfim, uma turba barulhenta que se deslocava atabalhoadamente pelas calçadas do bairro, sem tomar conhecimento dos outros, os que vinham ordeiros rumo ao seu banho de mar. “Um choque cultural brutal para o morador de Ipanema!”, foi a primeira coisa que pensei. Mas como é de meu feitio e tendência ideológica, imediatamente tentei argumentar> “ Apenas pessoas alegres que trabalharam a semana toda e agora tem seu momento de distensão.” “...talvez mais honestas do que muitas das de nossas relações.” “Gente que respeita a família e não cobiça a mulher do próximo, por exemplo.” “Afinal, todos têm direito a essa praia, ora bolas!” E nesse exato momento passa ao meu lado uma jovem mãe falando ao celular com a criança no colo, que estica o bracinho tentando pegar o aparelho. E ela berra no ouvido do pequeno que vai levar “porrada” se continuar a "zoar". E foi tanto palavrão e grito pra criança que eu desisti na hora de defender os “visitantes”. Sem mais palavras chegamos ao nosso destino. A areia ainda apinhada de gente. Esperamos com uma cervejinha no quiosque até que vagasse lugar. E antes do pôr do sol tomamos um delicioso banho de mar. Depois vinham chegando os amigos, um papinho aqui, outro ali, na beira do mar. Cada qual contando seu réveillon. E mais um pouquinho, e pimba!, o sol caiu dentro d'água, como uma gota de ouro em veludo drapeado. Apareceu no céu um filete de lua branca e a primeira estrela despontou. Um último mergulho afogou de vez a lembrança da nossa traumática chegada. Voltamos pra casa alegres, fazendo planos de desbravar esse caudaloso Atlântico Sul.

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