Postagem pra lua

Ela saiu mansa, densa, plena. Ainda sem forma precisa, meio oval sob a bruma espessa que ofusca as luzes de Icaraí. Eu espero por esta lua há tempos, todos os meses, todos os dias marcados para serem noites de lua cheia. Mas aí nublava. E no mês seguinte chovia, e no outro um compromisso.

Agora ela aparece sobre Niterói. Deslumbrantemente laranja, suculenta e calma. A cada minuto sobe um pouco mais; aos poucos tomando forma, arredondando. Desponta uma curva meia lua, como um ombro nu. A outra metade despojada de nuvens, surge como se deixasse cair um xale diáfano a seus pés. E vem altaneira azulando o céu. E crava sua figura de luz no azul profundo e aveludado. Marca minha retina, ofusca minhas memórias. Faz do meu coração tabula rasa, pra derramar faceira um vau de ouro sobre o espelho d’água.

Ainda bem que ele ficou de vir. Vem hoje, como veio ontem e anteontem. Que venha pleno como esta lua. Que venha transbordando de beijos salgados e olhos marinhos. Que venha alegre como os golfinhos. Que dance, cante e conte piadas picantes. E no pé do ouvido me fale do Egito. Que fume, que se embriague, que queime em desejos tribais os lençois da minha cama. E depois caia no sono, em abandono largo.

Mas a noite regurgitou o bafo quente do dia, em que o sol ardeu por doze horas sem descanso. E os ânimos se exaltaram indóceis em corpos eriçados. Os copos tilintaram o cristal boêmio até pra lá da madrugada. O som do funk na varanda, as pétalas arrancadas de uma orquídea, um riso nervoso e, enfim, é dita a palavra errada.

A lua escorregou por detrás dos edifícios, e os porteiros já estão lavando os carros. Ele partiu. Não se despediu, foi desconfiado. Nunca mais um beijo amante, nem mergulhar juntos no mar. Nem vinho, nem volta, nem vontade vamos ter. Nada que possa arranjar um desnorteio como esse; que não tem conserto, nem emenda, nem soneto.

Quem sabe em outro dia de outubro... Em outra noite de luar?

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Rita Cadillac e o Festival do Rio

Uma das decisões que vou tomar no próximo último dia do ano será a de tirar férias no mês do Festival do Rio. É que a programação é tão variada e a quantidade de filmes interessantes que não serão exibidos em outra oportunidade é tal que, para os cinéfilos, o festival vale como dar a volta ao mundo em quinze dias no escurinho do cinema. Pode ser melhor?

E além disso dá a maior dó o fato de ter credencial e não poder curtir todos os filmes da Première Brasil, a minha preferida porque além da oportunidade de acompanhar a produção nacional, a mostra acontece no cinema Odeon, o melhor da cidade, com seu café-bar-restaurante charmosíssimo, com vista para a Cinelândia.

Mas vamos lá. Do que eu vi, da produção nacional, foram três os filmes de longa-metragem de ficção que mais me impressionaram. “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes é um road movie narrado em primeira pessoa pelo protagonista. Ele nunca aparece, apenas ouvimos sua voz falando como se ditasse cartas. As imagens são tomadas do seu ponto de vista durante viagem de carro pelo semi-árido nordestino. O que faz da fita uma experiência singular, porém prazerosa, pois o texto é bom e a fotografia de Heloísa Passos (troféu Redentor), excelente. Enquanto faz o levantamento topográfico da região que será inundada com transposição de águas de um rio, o herói conta o fim do seu casamento e a dor da separação; o esforço para superar a perda da mulher amada; e a procura de consolo no sexo de programa e na prostituição. A decisão final do protagonista de mergulhar no mundo em busca de um novo amor é ilustrada com uma sequência espetacular de mergulhadores profissionais de Acapulco, com trilha sonora de música mexicana, daquelas em que o naipe de sopros de tão bom pinica o coração mais redimido. O filme ganhou justamente o troféu de melhor direção.

Já “Hotel Atlântico”, de Suzana Amaral deixou a desejar. Pois apesar de condizente com a grife de qualidade em adaptação literária que Suzana inaugurou com “A Hora da Estrela”(do romance homônimo de Clarice Lispector); da produção bem-cuidada e história tecnicamente bem- conduzida, este agora não passa de um filme bem-feito. Os atores, no entanto, fazem um trabalho brilhante e há sequências muito boas também. Talvez a minha dificuldade seja com o universo de João Gilberto Noll. Diferentemente da obra de Clarice, em que personagens comuns se deparam com o mistério da existência, o autor gaúcho lança mão de protagonistas improváveis para mostrar que a vida é fria como uma lâmina.

Chovia muito na noite em que foi exibido “Os inquilinos”, de Sérgio Bianchi. E eu só fui ao Odeon, depois de um longo dia de trabalho, porque gostei muito de “Cronicamente Inviável” e “Vale quanto pesa, ou é por quilo?”, dois filmes anteriores de Sérgio, e que como este último dão um soco bem dado no estômago do espectador. Naqueles, o golpe é uma crítica contundente à mentalidade mesquinha, violenta, gananciosa, porém dissimulada da sociedade brasileira. Neste, é o retrato da realidade assustadora da nossa classe média, oprimida entre a violência que deixou crescer e ausência da cidadania que não se esforça para construir. O filme ganhou o Redentor de melhor roteiro.

Dos documentários, eu vi e não gostei de “ Alô, Alô Teresinha”, de Nelson Hoineff. Nelson fez sucesso na década de 1990, com o programa televisivo de reportagens Documento Especial, da extinta TV Manchete. É um grande jornalista e ótimo teórico de comunicação. Foi meu editor durante seis anos no Jornal da Manchete, e eu credito grande parte do sucesso que tive naquela ocasião à qualidade do programa.

Não posso dizer o mesmo deste documentário sobre Chacrinha. É desrespeitoso com a memória do Velho Guerreiro e humilhante para as chacretes, que estão aí, têm família, e admiradores. O incrível é que o diretor conseguiu levar todas elas à estréia do filme, no Odeon. Como são ignorantes! São destratadas na tela e comparecem à exibição do filme sentindo-se homenageadas! Quer dizer, deixaram-se humilhar também ao vivo. Uma tristeza. Até Roberto Carlos está mal na fita. O rei aparece desprovido de carisma, mal fotografado, mal enquadrado, desperdiçado, enfim.
Apenas duas pessoas Nelson Hoineff não conseguiu maltratar no seu longa: Fábio Júnior e Rita Cadillac. Talvez porque sejam muito autênticos e banquem, sem culpa, sua condição existencial, por mais estranha que seja. Talvez porque tenham sacado tudo e resolveram ser mais sacanas que o diretor.

Bem, é isso aí. No mais, palmas para a organização do Festival do Rio. Da seleção de filmes à cerimônia de premiação, foi um evento impecável. Ilda Santiago e Walkyria Bargosa estão de parabéns. Parabéns também para Lílian Hargreaves que cuidou da imprensa com profissionalismo e atenção.


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Festival do Rio

A noite de abertura do Festival do Rio foi um estouro. Não que o tempo estivesse bom e o programa tenha começado na hora, evitando a já tradicional aglomeração desconfortável no exíguo e abafado saguão do Odeon. Não, quase todos os erros das vezes anteriores foram repetidos. Como, por exemplo, deixar por muito tempo a imprensa esperando do lado de fora, enquanto as estrelas e personalidades do cinema nacional e internacional chegavam e iam se acomodando no café e no restaurante anexos à sala de projeção. Pior, chovia a cântaros, e os pobres dos fotógrafos e jornalistas responsáveis pela cobertura do evento ficaram ao desabrigo, à mercê da intempérie por quase uma hora.

Até os seguranças se protegiam debaixo dos sombreiros montados na entrada, que por sinal ficava muito afastada da única possível parada dos carros. Logo, os convidados ou portavam guarda-chuvas ou chegavam ao cinema encharcados. Eu, de minha parte, enfrentei a travessia com a cabeça coberta por uma pashmina, como fazem as muçulmanas. Deu no jornal que foi para proteger o penteado, e foi mesmo.

Mas como pode ter sido um estouro uma noite que começa mal? Elementar, caro leitor. É só ir melhorando no decorrer do período. Coisa que não aconteceu com a chuva que só piorou. No entanto, passados os contratempos do começo, o evento foi indo de bom a melhor. O auge foi a projeção do filme Woodstock, de Ang Lee. Um primor de fita, uma história bem contada sob todos os pontos de vista. Bom roteiro, bons atores e a excelência da batuta do taiwanês radicado nos Estados Unidos. Mas o melhor do filme é contar como aquele festival de música, marco das transformações culturais mais profundas e contagiantes do planeta no século passado, processou tais transformações no microcosmo de uma família careta, numa cidade idem. É hilário na variedade de situações inusitadas, é sensível ao mostrar a felicidade proporcionada pelas liberdades individuais respeitadas, é humano na construção de personagens que costumam ser tratados como caricaturas (vide o travesti), é, enfim, um filme delicioso de assistir.

Mas antes do filme teve a abertura da cerimônia com um discurso rápido e eficiente do prefeito que, diga-se de passagem, foi muito aplaudido na subida ao palco e aplaudidíssimo ao final, ao dar por oficialmente aberto o festival. Christiane Torloni não gostou. Mestre de cerimônias, junto com Toni Ramos, a bela demonstrou francamente sua contrariedade com o prefeito. Coisa que ninguém na platéia entendeu.

E aí chamaram ao palco a diva da Nouvelle Vague, Jeanne Moreau. Linda, aos oitenta e seis anos, a atriz fez um discurso tão bom que dispensou tradução para o português. Pois os que não entendem francês, entenderam a entonação e, seja por conta da sintaxe semelhante entre as duas línguas, seja pela modulação da voz bem treinada de intérprete de La Moreau, a mensagem foi transmitida com sucesso.

Elegantíssima, a protagonista de Jules e Jim vestia um conjunto parecido com um jogging de malha branca com brilho, botas brancas e um redingote longo e negro, aberto na frente, com uma imensa flor branca na lapela. Divina!

Depois do filme veio a festa. Como as anteriores, teve comida e bebida à vontade, salão de dança e DJs. O ambiente estava agradável, encontrei pessoas conhecidas, outras amigas e uma queridíssima. Lá pelas tantas, estava com meu prato na mão, conversando com amigos, ao lado de uma mesa alta que servia de pouso para os drinques, quando um lindo rapaz, alto, de terno branco e camisa preta, cabelos negros gomalinados e olhos claros de cristal, se aproximou num rodopio e lançou um “Leila Richers você é linda!” Eu quase tomei um susto, mas cheguei a perguntar seu nome para agradecer o elogio. O moço não esperou, assim como veio ele se foi, com um pivô de bailarino russo, fazendo ventania atrás de si. Alguém da turma comentou: “Foi embora rápido, antes que virasse homem!”. Como vocês sabem, uma festa não é completa se faltar maldade no salão.


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Clarice Lispector e o aniversário de criança

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Minha amiga passou de taxi e fomos assistir ao espetáculo Simplesmente eu. Clarice Lispector, no CCBB. No caminho ela contou que vinha de um aniversário de criança. Quis saber se sua filha, que eu gosto muito, tinha se divertido bastante. Impossível uma criança não se divertir numa festa de aniversário hoje em dia, com a quantidade de atrações que os pais contratam para tais ocasiões. É teatrinho, animadores e pula-pula, no mínimo, porque a maioria prefere alugar casas de festas, e aí há sempre um incontável número de atividades! Mas as crianças brincam umas com as outras?, perguntei. Mais brigam, porque ficam tão excitadas com a descomunal oferta de diversão que disputam com o coleguinha ao lado até um balão de gás de cor diferente!

Pais angustiados, filhos mais angustiados ainda, e assim caminha a humanidade... No meu tempo era diferente!, contei-lhe num transe saudosista. As festas de aniversário eram sempre na casa dos aniversariantes e invariavelmente nos fins de semana, porque no dia mesmo era um bolo no colégio e olhe lá. Mas havia muito encanto nessas ocasiões e nós aproveitávamos pra valer. Tinha sempre um adulto por perto, quase sempre o mais camarada da família, para organizar as brincadeiras de pêra-uva-e-maçã. Enquanto os pais se mantinham distraídos no uísque com gelo, para as mães era uísque com guaraná.

Essas comemorações varavam a tarde, entravam pela noite e costumavam ter dança depois do parabéns. A música era a da preferência do anfitrião, pos naquela época não havia a ditadura da criança. Lembro que as melhores festas eram na casa de um Alagoano que adorava Jackson do Pandeiro. Eu não desgostava, mas quase não podia me concentrar na dança, só pensando no pescoço rotativo da Alzira que “pulava que nem uma guariba. E gritava a e i o u ipslone.”

Havia ainda outro fato que me afligia. Eram os dois irmãos que usavam terno e gravata nos aniversários, embora não passassem dos dez e doze anos de idade. O mais velho então ficava sinistro daquela maneira, parecia a miniatura do pai. E por mais que me incomodasse o tecido áspero com cheiro de naftalina, não nos seria permitido recusar um convite para dançar feito com gentileza por outros convidados. E assim, com o passar dos anos, peguei até amizade aqueles irmãos. Além, é claro, do gosto pela dança de salão.

Bom mesmo é que na época, bastava um disco na vitrola e estava garantida a diversão. Acho até que aquelas festinhas nos preparavam para uma vida mais feliz, o individualismo era combatido e a camaradagem estimulada de maneira muito natural.
Hoje, a sociedade adota o discurso hipócrita de aprovar a diversidade, mas está cada vez mais massificada, tendo todos que se enquadrar nos padrões determinados de beleza, sucesso e comportamento. Tudo regido pelo consumo e a vaidade, inclusive as relações interpessoais. Não há tempo a perder, e o outro deve ser descartado ou aproveitado rapidamente e com sofreguidão, pois “a fila tem que andar.”

Pensava nisso enquanto esperava o teatro lotar e a peça sobre a vida e obra de Clarice Lispector começar. Pensava como teriam sido essas festinhas no tempo de Clarice, em Pernambuco, onde a escritora passou a infância. Mas o tempo de Clarice é tão único, e corre em outro ritmo, o da subjetividade feminina. Por isso sua literatura é revolucionária, por abrir novos caminhos para a prosa, e Clarice escreve por inteiro, envolvendo a realidade, os objetos e as personagens com todo o corpo, oferecendo aos leitores uma visão alternativa da realidade.

Para a autora de Perto do Coração Selvagem, o tempo maior é o dos pequenos instantes de epifania, que provocam o crescimento emocional e psicológico das personagens, como a grã-fina que experimentam um turbilhão de emoções ao pisar num rato morto, distraída, em seu passeio por Copacabana. Esta Clarice, autora, está no palco do CCBB, muito bem representada por Beth Goulart. Também a Clarice pessoa, das cartas e entrevistas, desfilando o elegante figurino dos anos cinquenta,em meio a um amplo e belo cenário, iluminada com arte e precisão. Clarice, a mulher que gostava de ser apreciada acima de tudo pela beleza física. A mãe que trabalhava sentada no sofá, com a máquina de escrever no colo, os filhos pequenos ao seu redor.

É um monólogo, um corte e colagem de tempos e espaços, um retrato com claros, escuros e nuances da escritora, mãe e mulher. Um texto bem ao estilo de Clarice, em palimpsesto.

Parabéns para Beth Goulart!


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24 horas no ar

Ontem fui com amigos assistir Vau da Sarapalha, carro chefe do grupo Piollin, criado há trinta anos, na Paraíba, pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos. O espetáculo está em cartaz há dezessete anos e volta ao Rio depois de um grande sucesso em 1993. Talvez a última oportunidade para ver a mais premiada das adaptações de Guimarães Rosa para o teatro.

Depois, fomos jantar no novo restaurante da moda, o Oui Oui, da mesma turma do charmoso Mian Mian. Eles têm uma loja de móveis de época, a Hully-Gully, no Shopping da Siqueira Campos, onde podem ser negociadas todas as peças expostas nos dois restaurantes que ficam em casas, em Botafogo. No Oui Oui, há dois salões, um decorado no estilo Art Deco, o outro bem anos 70. Os dois ambientes, no entanto, são harmônicos no conjunto. E o capricho no estilo vai até o serviço, do tipo descontraído, sem os tradicionais maitre e garçons, mas jovens profissionais do setor de alimentação vestidos, e bem-vestidos, de maneira casual. Logo na entrada, o freguês é recebido pela Mariana, uma graça de moça com um rosto lindo que parece ter saído de um filme da nouvelle-vague. Seu jeitinho esguio de manequim e modelo lembra Cleo de 5 às 7, a obra-prima de Agnes Varda.

A comida também é boa, e os pratos são servidos em pequenas porções, o que proporciona uma diversão a mais, pois são dispostos no meio da mesa para que os comensais possam se servir de tudo um pouco. Ontem éramos quatro e pedimos duas rodadas de três pratos entre costelinhas caramelizadas, vol au vent de rabada, linguicinhas com molho de maracujá, bacalhau com cebolas e tapenade, panquecas de figo seco com pato desfiado e brulé de Grana Padano. Tudo uma delícia. Mas um contraste radical com o universo de Guimarães Rosa, de escassez e simplicidade. E aí, devo fazer uma confissão: tenho a maior dificuldade com o universo de Guimarães Rosa, que é um dos nossos maiores escritores, e nisso não ponho dúvidas. Mas o negócio é que não me agrada a temática da roça, a simplicidade em demasia, a precariedade dos costumes, a falta de polidez, a sinceridade exagerada, a estética de valorização dos elementos primordiais e as fabulações meio brutais do sertanejo.

No entanto, acabei de ler Os Sertões, de Euclides da Cunha, para o programa em homenagem aos 100 anos de morte do escritor. E adorei o livro. Um ensaio científico, um tratado antropológico, um épico sobre a Guerra de Canudos, um emocionante drama da nossa história. E o autor conta essa história, na qual os heróis são, na verdade, os vencidos, com tal poder de comunicação que é impossível, mesmo ao leitor mais relapso, não se envolver ao ponto de não querer largar o livro.

Eu fiquei obcecada pela narrativa meio jornalística, meio romanesca, da luta dos jagunços de Antônio Conselheiro contra o exército republicano, armado até os dentes e em número extraordinariamente superior. E a paisagem da caatinga descrita de forma expressionista, com galhos retorcidos, ramagens espinhentas, o céu abrasador e um chão que foge aos passos.

São coisas que me agradam, principalmente na literatura. Agora, aquela “vida besta”, da qual nos fala Drummond... tô fora. Eu gosto mesmo é da vida movimentada dos grandes centros urbanos, de teatro, de cinema, de bares cheios de gente; de tomar um cafezinho com ovo colorido num botequim do centro, de traçar um sanduíche de carne assada no balcão do Lamas, de virar um chope na calçada do Belmonte, dos shows no Teatro Rival e dos cabarés da Lapa.

Dizem que isso é coisa de homem. No entanto, quase todos que eu conheço, quando começa a esquentar o namoro vêm com a conversa de que seu sonho é viver num lugar tranquilo, fugir da cidade grande, ter uma pousada no sul da Bahia e coisas ainda mais esdrúxulas, como comprar uma de terrinha na Amazônia e criar gado pro resto da vida. São veleidades, eu sei. Mas veleidades tipicamente masculinas, pois eu nunca ouvi mulher dizer que quer morar no mato. Ao contrário, as mulheres quanto mais amadurecem mais querem movimento, festas, restaurantes cheios; querem mais é consumir, de cultura a sapatos.

Eu desconfio que a intenção deles é passar a mensagem de maneira subliminar de que estão prontos para arranjar um amor e sossegar, por fim às farras, criar raízes, viver na base de um para o outro... papo de encomenda para amolecer o coração da mulherzinha romântica que há dentro de todas nós, e nos fazer ficar macias com a ilusão de que ele está pronto para um compromisso sério, e que para isso só falta encontrar a verdadeira companheira.

Da minha parte, não gosto de ser iludida. Mas como também não quero enganar ninguém, digo logo que gosto mesmo é da metrópole e, se dependesse de mim, o mundo girava acordado noite e dia. Eram 24 horas no ar.

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Blind Date

Não adianta o quanto eu resista à idéia, os amigos continuam empenhados em me arranjar um namorado. Desta vez foi um blind date, coisa que eu só conhecia de ouvir falar, como a música do Zeca Pagodinho com o caviar. E também das comédias românticas do cinema. Inclusive uma das minhas preferidas é Blind Date (Encontro às escuras), do Blake Eduards, um craque no gênero cujo maior sucesso foi Víctor ou Victória, a história de um gangster que se apaixona por um travesti, o qual na verdade é uma vedete disfarçada para atrair público a um cabaré às voltas com dificuldades financeiras. Enredo narrado de maneira leve e sofisticada, na melhor tradição de Hollywood, desde Lubitch e Wilder.

Blind Date é mais recente, porém distante o bastante para apresentar um Bruce Willis com mais cabelo e menos do muito charme que vem colecionando desde então. Ela é a eternamente linda, sexy e talentosa Kim Bassinger. E o filme é um tesão. Imagine o cara precisar de uma acompanhante para fazer par com ele num jantar de negócios com empresários japoneses super tradicionais, acompanhados de suas esposas meio gueixas. Um colega de trabalho lhe arranja o telefone de uma garota gente boa que topa a parada. Porém, ele não sabe que a moça tem um problema neurológico, daqueles que potencializam o efeito do álcool no cérebro. Acontece que antes do jantar, por um contratempo, ela fica sozinha na sala de espera de um hospital com uma garrafa de uísque na mão, enquanto ele visita um amigo internado. Ele demora, ela se embriaga e está feita a confusão. É claro que os dois acabam se apaixonando, não sem antes derrubar tabus, desmentir verdades absolutas, trombar meia dúzia de carros e quebrar uma cama (o melhor do filme).

Impossível não se divertir com uma fita dessas. Que ainda adverte o espectador para os perigos de um encontro às escuras. Coisa que ignorei e acabei aceitando um convite para jantar com um empresário colega de academia de boxe do meu melhor amigo, que faz tempo vem mandando recadinhos insinuantes para mim. E como não iria aceitar sabendo que se tratava de um cinquentão bem educado e de porte atlético. Assim, depois de uma boa conversa por telefone, combinamos o encontro para o fim de semana seguinte. Fomos a um bistrô perto de casa, atendendo à minha conveniência. Diferente de qualquer restaurante no Leblon, no Empório Santa Fé você não topa com três mesas de gente conhecida logo na entrada. E um casal que está saindo junto pela primeira vez é facilmente reconhecido como tal. Além do mais a comida lá é gostosa e tem uma carta de vinhos bem legal, segundo os entendidos. Eu estava decidida a beber pouco e prestar mais atenção. Ele bebeu pouco também. Mas falou muito. Muito mesmo. Contou a infância, a juventude e a vida mais recente. Fazia digressões elaboradíssimas, ocasiões em que me lançava uma pergunta. Porém, eu mal ensaiava uma consideração era interrompida sem a menor cerimônia. E o empresário ainda perguntou se eu me incomodava de ser interrompida. Isso com um certo desdém, como se não gostar de ser interrompida fosse um capricho pueril.

Fazer o quê? Eu ali, de testa para um homem bonito, forte, inteligente, bem-sucedido que não esquecia por um momento disso tudo e só falava de si. E falava pelos cotovelos. Falava tanto que o jantar já estava quase terminando e eu não conseguira encaixar um assunto sequer. Foi quando ele pediu licença para ir ao banheiro, ficou em pé e, enquanto aproximava sua cadeira da mesa, olhou para mim e mandou um beijinho. Eu sorri e lhe disse que fosse tranquilo, pois eu iria aproveitar aquela oportunidade para falar um pouquinho de mim.

E assim terminou o meu blind date.

Tudo bem, o pior mesmo foi ouvir no dia seguinte do meu melhor amigo que o meu mal é não ter a mínima paciência. Sinceramente, não tem condições.

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Tranquila, até o próximo luar

Foi só eu reclamar que senti falta de um namorado na noite em que a lua deu um show de cores e brilhos sobre a baía de Guanabara, defronte ao meu terraço, para os amigos se empenharem em me arranjar um pretendente.

Foi assim que aceitei o encontro com o advogado cinquentão, bem apessoado, boa altura, corpo esguio e conservado na corrida diária, mais três aulas de ginástica por semana. Convidou-me para jantar. Eu já o conhecia de vista, de festas de casamento e aniversários. Tivemos primeiro uma longa conversa por telefone e marcamos um encontro para o sábado seguinte. À hora marcada ele veio me buscar na porta de casa e fomos ao meu restaurante preferido em Ipanema. A conversa não foi encantadora, mas ele fala corretamente e come com educação, dois pré-requisitos indispensáveis para um namoro vingar. Na volta, ao me deixar em casa, pediu um beijo de boa noite. Gostei, nem tanto do beijo, mas da elegância de observar as regras de um primeiro encontro. Pedir um beijo é uma maneira de homenagear a dama, de dizer-lhe que a saída foi agradável e que, com todo o respeito, gostaria de ir além. E antes que eu saltasse do carro, convidou-me para uma caminhada, no dia seguinte, no calçadão. Aceitei e me arrependi. Foi chato e cansativo, pois ele manteve um ritmo acelerado, demonstrando que não terminar o percurso em tempo determinado seria um transtorno. E ainda teve que ir de ponta à ponta da praia, até tocar a mão na pedra do Arpoador, como que para celebrar a chegada, cumprindo o que me pareceu ser um ritual. Quer dizer, o cara é um sistemático.

Mas o pior foi a volta. Para me deixar em casa, ele pegou o caminho mais longo possível, botou um samba enredo no som do carro e veio cantando a música de lá até a minha porta, nos mínimos detalhes, com todas as letras, inclusive o repique do refrão. Um porre!

Mas desta vez não teve nem beijo, nem beijinho. Dei um tchau e saí do carro que nem um foguete. Não teve sequer um aceno, de longe, e, sinceramente, vim pra casa na esperança de que ele não me ligasse nunca mais. E se ligar, não atendo, pois tirei o som tanto do aparelho fixo quanto do celular.

Volto correndo para a leitura dos Contos Latinoamericanos Eternos. E é na companhia deste livro que pretendo passar o resto do meu domingo. São 23 histórias escolhidas entre o que há de melhor na obra dos maiores escritores da região. E ao final do volume, há uma pequena biografia dos autores, com comentários sobre a obra de cada um e indicação de seus livros mais importantes. Desta forma, fica-se sabendo que foi o mexicano Juan Rulfo (1918-1986) que apresentou na obra-prima Pedro Páramo, de 1955, os fundamentos da narrativa que passou a ser conhecida como realismo mágico, depois enriquecida por outros brilhantes escritores hispano-americanos.

O livro, organizado por Alicia Ramal, é uma viagem pela criação e imaginação de uma penca de gênios, como Jorge Luis Borges e “O Alefh”, uma de suas mais fascinantes histórias; Julio Cortázar (1914-1984) e as atmosferas inquietantes que cria, e onde a realidade se dissolve, o insólito se instala, e o mistério reconstrói o verossímil. É o que acontece em “Casa Tomada”: personagens comuns que vivem numa monotonia que virá a ser a sua próproa desgraça. Também tem o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) e uma das mais surpreendentes e criativas histórias de seu repertório. “Viagem à Semente” é uma narrativa contada de trás para a frente com uma extraordinária riqueza de imagens e um labirinto de palavras que se deslocam através do tempo, num fio de acontecimentos e emoções que ligam vida e morte.

Para terminar essa postagem que já vai longa, como a cantoria do pretendente dispensado mais acima, destaco o lirismo do conto “Minha vida com a onda”, de Octávio Paz (1914-1998). Ali, no homem que leva uma onda do mar para casa, há uma maneira muito particular de ver o mundo. Só mesmo um poeta, e da qualidade do ganhador do Prêmio Nobel de literatura de 1990, para escrever essa história pontuada pelo inesperado.

E assim, no aconchego do meu lar, dispondo de quase tudo o que preciso para ser feliz, vou passar tranquilamente o restante do domingo. E seguir em frente sem pretendente, mas sem carências e sem remorsos, pelo menos até o próximo luar.


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Inútil paisagem

Estou tão em falta com este blog e nem sei o que fazer para me redimir da pouquíssima assiduidade com que venho escrevendo aqui. Não vou repetir a ladainha das postagens anteriores, fiquem tranqüilos. Contudo, continuo mergulhada em livros e pesquisas, porém isso só deveria servir de estímulo para conversar ainda mais com vocês e comentar as minhas descobertas, como a da semana passada. Foi no programa que fiz sobre a “Virada Russa” na literatura, aproveitando a oportunidade da exposição em cartaz no CCBB.

Seguindo a linha dos curadores da mostra de 123 obras do Museu Estatal de São Petesburgo – que faz um panorama das artes plásticas na Rússia de 1890 a 1930 –, busquei para discussão no estúdio autores que se identificassem com os movimentos literários do mesmo período. Assim, escolhi para o período pré-revolucionário Máximo Gorki, um dos maiores mestres da prosa de ficção russa que, além de ser o primeiro a dar voz ao homem comum, fez da literatura um instrumento de luta, conscientizando milhões de leitores para as injustiças sociais da política absolutista do czar.

A conversa sobre o autor de “A Mãe” teve direito a um trecho do filme do mesmo nome, de 1926, do diretor Vsevolod Pudovkin, um dos grandes nomes do cinema de vanguarda russo, já anunciando o que viria a seguir.

Para esmiuçar o movimento conhecido como vanguardas russas, que trouxe novas propostas estéticas e conceituais em pintura, poesia, teatro e cinema, constituindo um ambiente de grande efervescência ideológica e artística na Rússia do início do século XX, escolhi Maiakóviski, é claro. Ele que foi ao mesmo tempo emissário e propagandista da Revolução de 1917, crítico radical da desigualdade social e ainda, com sua poesia revolucionária, propôs novas formas para um conteúdo novo e engajado.

Essa decisão era pule de dez, pois eu bem sabia que o autor de “A Nuvem de calça” colocou-se com ardor a serviço da revolução, e em colaboração com artistas construtivistas pôs a arte a serviço da propaganda dando início à arte aplicada ao mundo moderno, inventando o que viria a ser o design.

Mais demorado foi o processo de escolher um escritor que se identificasse com o período posterior à Revolução de Outrubro, o realismo socialista. Em conversa com um colega, o pesquisador Fernando Madeu, conhecedor da língua e literatura russas, decidi-me por “Cavalaria Vermelha” de Isaac Babel.

Que formidável foi descobrir um escritor que transformou sua experiência nas batalhas contra a cavalaria polonesa, na Guerra Civil de 1920, em um livro de contos breves de extraordinário romantismo bélico, com as cores ardentes do sangue e do fogo, mas também com os suaves lilases de um pôr-do-sol de outono. Babel faz do dia a dia nos acampamentos e trincheiras um épico, transformando pessoas simples em heróis, e passagens corriqueiras e prosaicas em momentos sublimes.

Bem, nem é preciso dizer que o programa foi um sucesso, com inserções do cinema de vanguarda russo e uma visita guiada à exposição “Virada Russa” com o crítico de arte Fernando Cochiarale.

Portanto, sexta-feira, finda a jornada semanal, exausta, mas satisfeita com o reusltado do trabalho, cheguei em casa, fiz um uísque duplo e fui para a varanda aproveitar a sensação de missão cumprida. Foi quando me deparei com a enorme lua em meia-taça despejando sobre a baía de Guanabara uma faixa de luz cor de prata, larga e volúvel ao movimento das águas. Continuei a tomar meu drinque languidamente em minha poltrona preferida, mas sentindo pela primeira vez em meses a desconcertante falta de um namorado. Lembrei-me de Tom Jobim e de sua Inútil paisagem.


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Continuo mergulhada em livros

Continuo mergulhada em livros, mas já dando minhas braçadas e chegando sem sufoco à outra margem, que para mim significa mais um programa no ar. O bom de tudo isso são os livros, é claro. O prazo é que é exíguo. Porém, como tenho a prerrogativa de pautar o assunto e os autores, vou aproveitando para conhecer um pouco mais sobre tudo aquilo que sempre despertou minha curiosidade. Foi com esse objetivo que realizei essa semana um programa sobre crônica esportiva focada em futebol, um gênero que ajudou a construir a nossa identidade como nação e por isso mesmo me interessa. Desta forma, escolhi três livros para serem discutidos ao longo de uma hora: Futebol ao sol e à sombra, de Eduardo Galeano; À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues e Histórias do Futebol, de João Saldanha.

Nem precisa dizer que os livros dos dois últimos são maravilhosos, por bastante conhecidos. Foi Nelson Rodrigues quem deu dimensão épica aos jogos de futebol, descrevendo as partidas como sagas, que narrava como verdadeiras aventuras de heróis salvadores da pátria. O outro, João Saldanha, foi um dos homens mais inteligentes que conheci, e aqui abro um parêntese: tive a sorte de ser contemporânea de João sem medo, como era chamado o comentarista e técnico de futebol (por enfrentar o poder da ditadura militar, mas isso já é outra história)na extinta Manchete, e chegamos a trabalhar juntos na mesma bancada de telejornal. Ele tinha uma coluna no programa no qual comentava política ou qualquer outro assunto de interesse nacional. Era uma novidade (na carreira do João) inventada por Nelson Hoineff, e que deu muito certo por pouco tempo, pois em menos de um ano o escalador do time tricampeão da copa de 70,no México, ficou doente e não pode mais trabalhar naquele horário, tarde da noite.

O livro de Eduardo Galeano foi uma dica do meu amigo Salomão Azaria, que lá de Israel, pelo Skype, sugeriu a pauta do programa. O escritor uruguaio eu já conhecia de entrevistas nos jornais e pelo Livro dos Abraços, uma espécie de leitura de cabeceira para quem curte textos curtos e geniais. Futebol ao sol e à sombra tem formato semelhante; textos de 25 a 35 linhas que passeiam pela história do futebol, de seus primórdios ao início do terceiro milênio, passando pelos grandes craques do século em todo o mundo, em prosa poética saborosíssima.

O livro também contém informações preciosas, como quem inventou o jeito brasileiro de jogar bola, por exemplo. Foi Artur Friedenreich, um atleta de “pele cor de café”, filho de alemão com uma lavadeira negra. Ele fez o gol da vitória brasileira contra o Uruguai na disputa do campeonato sul-americano de 1919; e mais gols do que Pelé em toda a sua carreira no futebol profissional. Não acredita? Pois pode pesquisar. Melhor ainda é ler o livro.

Bacana também nesse trabalho é a oportunidade de travar contato com gente inteligente e agradável. É o caso de alguns entrevistados, como Bráulio Tavares, um poeta, compositor, ensaísta e escritor desassombrado que eu conhecia de ler seus contos, aqui outro acolá; namorava a sua escrita, mas nunca havia lido por completo um de seus livros. Pois ele deu um show no estúdio, respondeu a todas as perguntas, inclusive as dos telespectadores, com uma categoria de admirar a elite de qualquer academia.

Outra surpresa agradável foi a participação do escritor Jorge Viveiros de Castro no programa. Editor, tradutor e portador de uma simpatia calma que vai se transformando, sem afetação, em carisma irresistível na medida em que o papo rola (no caso, futebol), sem nunca travar a bola, e devolvendo-a redondinha, quando ele mesmo não faz o gol.

Digo que eles são bacanas e rendem muito numa entrevista porque não são, apesar da competência, pessoas de ego descomunal. Daquelas que sempre se colocam como o centro do universo, que fazem marketing pessoal o tempo todo, e nunca estão a fim do papo descompromissado, mas de autopromover-se.

Pra mim isso é muito desagradável. Porém, como o jornalismo cultural virou mesmo meio de promoção de artistas e “artistas”, criou-se, em conseqüência, a cultura da celebridade. Resultado: a coreógrafa não quer falar de dança, mas da “sua coreografia”; não interessa ao ator falar de teatro, mas do “seu” personagem na peça que está em cartaz; e ao artista gráfico não importam os traços e cores de culturas e movimentos artísticos que não aqueles que influenciaram esse seu último trabalho, que ele quer divulgar. E por aí a coisa vai numa chatice tal que não dá espaço à reflexão alguma, nem mesmo à velha e boa conversa fiada.

Mas talvez eu esteja errada. Vai ver que a razão está mesmo com o Xangô da Mangueira, que diz (como saiu hoje na coluna do Ancelmo Gois) no samba Moro na Roça:
“Eu compro jornal da manhã / é pra saber das novidades”.
E fim de papo.

Mergulhada em livros

Ando mergulhada em livros. É o meu trabalho atual. Devo ler uma média de quatro por semana, e mais as pesquisas sobre os respectivos autores, e ainda teses e dissertações sobre o assunto que os reuniu e que será tratado no próximo programa da série que criei e que apresento na televisão. Quando paro de ler, está na hora de escrever. Aí é o roteiro do programa ao vivo, o roteiro das entrevistas externas gravadas, os espelhos dos roteiros, e mais um arrazoado sobre o tema, relatórios e atas de reuniões, a pauta..., reportagens... Ufa, está certo que eu gosto de ler e escrever, mas o volume de textos a construir e consumir é tal que outra noite me peguei sonhando com letras que subiam e desciam, formavam caminhos que se transformavam em labirintos. E eu, distraída, acabava me enveredando pelas alamedas de fícus frondosos e compactos, quase maciços, podados em linhas retas formando paredes intransponíveis, cada folha uma letra compondo com as mais próximas, para cima ou para baixo ou ainda para os lados, as palavras que junto a outras construídas da mesma maneira e nas mais variadas direções compunham o enigma a ser decifrado, a minha linha de Ariadne, a chave para a saída daquele bosque cubista assustador, que a essa altura pareceu-me ainda mais tenebroso, pois senti alguma vibração ao meu redor, primeiro muito sutil, umas folhas-letras se movendo levemente, parecendo vibrar ao movimento da minha respiração, mas logo percebi que mais à frente outro grupo de folha-letras se movia e as palavras que eu já havia construído e selecionado para justapor a outras, de maneira a fazerem juntas algum sentido, começavam a se embaralhar. E eu perdia o fio da meada. Segui, o pé no chão frio de terra, os olhos atentos aos significados, mais um grupo de folhas-letras se moveu, separando-se da parede verde compacta, e pude ver os galhinhos se insinuando para a frente, crescendo, num movimento ainda lento, porém contínuo, um geotropismo negativo e irregular. Ora um ramo, ora outro, e mais outro, como se fossem parte de um organismo que começava a despertar. Vou em frente, tenho pressa, já não procuro letras, não há como formar palavras, tento imaginar outra maneira de tudo fazer algum sentido quando um galho mais robusto se levanta, e vem rápido em minha direção, sua extremidade em garras estaca em frente aos meus olhos, meu coração bate forte, devo me acalmar, é só o vento. Vejo as plantas que já começam a se libertar das formas rígidas, já não formam mais um muro como os de uma prisão, porém a respiração da coisa aumenta e nesse momento o céu escurece, depois torna a clarear, olho para o alto e vejo a lua fugir das nuvens numa corrida frenética, um vai-e-vem maluco, sua luz relampejando sobre os galhos que já começam a crescer mais rapidamente e as folhas se movem chacoalhando letras que se apagam de verde escuro, muito escuro, e os galhos cada vez maiores, e o labirinto vai se transformando num bosque, um emaranhado de galhos que se fecha mais à frente e eu me volto assustada, tenho muito medo, quero retornar, mas pressinto que a coisa está me observando, talvez tenha alma de fera, quem sabe se assanha com o cheiro de pavor. Paro. Tento me controlar, quero raciocinar, buscar uma saída, penso em rezar, mas não há tempo, nem palavras de oração. Nessa hora a lua se liberta e eu vislumbro adiante uma clareira, decido ir naquela direção, me agacho e passo por entre as sebes que agora se fecham atrás de mim; vou rastejando, sempre em frente... Não é possível retornar. Essa convicção me dá um certo alívio, não há mais dúvida, não há o que decifrar, é seguir, seguir por entre as árvores agora formando unidades independentes, delineadas, com tronco e copas frondosas, crispadas, a me aterrorizar. Crio coragem, quero enfrentar suas formas tenebrosas, claudico. Uma baforada de ar quente sopra em minhas costas, viro-me para trás, sinto um cheiro ácido e úmido. É hálito, é coisa viva, não sei se é ainda pior, nem sei bem o que pensei, pois nesse momento o chão começa a se mover para cima e eu sou empurrada para a frente, obrigada a apressar o passo, e corro, corro muito, sentindo a coisa se avolumar e sua sombra quase me alcançar, e reúno forças, e corro ainda mais rápido, meus pés descalços sobre a superfície lisa da luz, olho para traz e a coisa já forma um rolo compressor de escuridão, vem devorando tudo, engolindo a própria sombra, eu ganho distância, ganho chão iluminado, olho novamente para trás, vejo a coisa-escuridão se consumindo no próprio breu, mais compacta, mais densa, a se concentrar em si mesma até desaparecer em trevas.

Agora tudo é luz, meus rosto inundado de luz branca e intensa...

A luz da luminária acesa na mesa de cabeceira, o livro aberto sobre o peito, meus óculos caídos no chão... Respiro fundo, vejo as horas no relógio à minha frente, são quatro da manhã. Ajeito os travesseiros, puxo a coberta mais para cima, ponho os óculos e começo a ler a segunda parte de “A espinha dorsal da memória”, o livro de Braulio Tavares. É o melhor entre os escolhidos para o próximo programa sobre ficção científica.


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Fatos e Fotos

Aí em baixo são fotos da entrevista que fiz com Moacyr Luz sobre os sambistas que fizeram a crônica da cidade. Gravamos em Santa Teresa, numa linda tarde de verão. As locações são (na ordem) o Bar do Mineiro e a Casa de Cultura Laurinda Santos Lobo. O programa vai ao ar na próxima quinta-feira, na Band Rio, e eu espero que vocês gostem.
Outra coisa que eu quero contar é que só volto a escrever neste blog daqui a uma semana, pelo menos. Peço desculpas, mas o fato é que estou com um probleminha de LER, vocês sabem, quando isso acontece é preciso evitar usar o computador por um período de tempo, fazer acupuntura e exercícios de alongamento. Prometo que vou me esforçar para ficar logo boa. Abraços.



São fotos da entrevista que fiz com Moacyr Luz sobre os sambistas do Rio. Vai ao ar no programa desta semana. Quinta-feira, às 14.00hs, na band.

Copacabana engana

Copacabana engana quem acredita que vida noturna bacana no Rio só a da Lapa ou do Leblon, para ficar nos dois extremos de gosto que fazem desses pólos de lazer e gastronomia os preferidos da mídia e, por conseguinte, os mais visitados por turistas dos outros estados do Brasil.

Ipanema há muito que anda desanimada. Quando acaba o verão, depois das seis da tarde, o bairro, facilmente comparável ao paraíso durante o dia – a praia deslumbrante com as pessoas mais bonitas, alegres e charmosas ao redor – , cai numa escuridão de dar medo. Com exceção da Farme de Amoedo, a única a enfileirar bares e restaurantes, as ruas ficam desertas e alguém em seu juízo perfeito não se arriscaria a cruzar seus quarteirões com os pertences à vista.

Botafogo conta com um bom número de bares e restaurantes. Tem cinema e teatro também. Porém distantes entre si. Não dá para ir de um lugar a outro sem ouvir soar o alerta de “perigo, perigo, perigo...”, como diria o simpático robô de Perdidos no espaço.

Já Copacabana, desprezada como opção noturna nas últimas décadas, entre outras coisas por causa da onda dos “baixos”, celebrizados em outros bairros pela juventude boêmia decidida a esticar até o dia seguinte a féerie da noite anterior, está batendo um bolão em relação aos seus congêneres da Zona Sul. Vou aqui reproduzir meu programa de ontem à noite pra você avaliar se há exagero na premissa desta crônica.

Fomos ao Espaço Sesc, um prédio moderno e confortável, na rua Domingos Ferreira, assistir à peça Espia uma mulher que se mata. Para assegurar dois lugares na récita das 21:30hs chegamos uma hora antes ao local. Estacionamos o carro bem pertinho e rapidamente compramos os ingressos ao preço módico de dezesseis reais a inteira. Fomos então fazer a horinha que faltava no Cafeína da Constante Ramos, a poucos metros dali. Lá, tudo é gostoso. Eu escolhi um capucino médio, servido com financier. Meu amigo pediu um rocambole de morango com suco de laranja (não há nada como malhar duas horas por dia para liberar o apetite). Um lanche perfeito para cada qual segurar a fome até depois da sessão.

Gostamos da peça, uma releitura de Tio Vânia, de Tchekhov. O texto do argentino Daniel Veronese mantém o sentido original de crítica à decadência de uma família da aristocracia rural, na Rússia do final do século XIX, no momento em que questiona o esforço para garantir a inútil pompa intelectual de um dos seus membros, que vive na cidade às custas do trabalho árduo dos que administram a propriedade no campo.

Roberto Bomtempo, na pele de Tio Vânia, mostra um belo amadurecimento como homem e ator. O resto do elenco me pareceu apenas correto. Com exceção de Mirian Freeland que faz Sônia, a sobrinha. Papel sempre cobiçado por jovens atrizes estreantes, representa uma garota romântica, ingênua e resignada, mas que tem na força de caráter um grande apelo junto ao público. A atriz desperdiça as possibilidades do personagem com uma interpretação caricata. É um detalhe que incomoda mas não chega a comprometer a direção do também argentino Marcelo Subiotto. E o melhor foi conferir a quantas anda o teatro dos “hermanos”. Vai bem, obrigado.

Às onze da noite saímos do teatro e fomos a pé escolher na redondeza um lugar para beber, comer e conversar sobre a peça. Foi quando nos surpreendemos com a quantidade de opções num mesmo quadrilátero. Logo na primeira esquina tem a pizzaria Caprichosa. Já na Avenida Atlântica, há o bar do Hotel Pestana, aberto para o mar e com uma iluminação muito bonita. Indo mais à frente tem o tradicional Dom Camilo, com a parte fechada e mesas no calçadão. Juntinho, o Copa Café, mais escurinho e bem mais sofisticado. Ao lado, o novo Devassa com o seu público jovem habitual. Aí já estávamos na esquina com a Bolivar... Então, é só voltar em direção à Avenida Copacabana para encontrar o Belmonte que, além de um chope pra ninguém botar defeito e um caldo verde dos legítimos, tem sempre lugar pra mais dois. Como se vê, boas opções para todos os gostos, propósitos e poder aquisitivo. E ainda há os restaurantes tradicionais de Copa, como o Caravelle. Tudo em dois quarteirões com os botequins repletos de gente bebendo e conversando nas calçadas. Quando Voltamos para o carro, já passava de meia-noite, foi aí que lembramos que andando na direção contrária ao mar, há na Constante Ramos a mais autêntica crêperie da cidade. Deixamos para a próxima, que sempre haverá uma oportunidade para curtir, numa boa, a princesinha do mar.


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Outono no Rio

A tempestade desabou justo na hora de sairmos para o show do João Donato no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico. Havíamos combinado ir juntas naquele mesmo dia à tarde, quinta-feira passada, feriado de São Jorge. O espetáculo começaria daí a uma hora e só mesmo invocando o santo guerreiro para nos proteger da chuva torrencial e do vento forte que soprava sobre o Rio de Janeiro. Pensei que o programa tinha micado, mas em menos de meia hora o tempo melhorou. Por via das dúvidas calcei botas e, munida de guarda-chuva, fui buscar Fafá em Laranjeiras.

No carro, fomos conversando assuntos relacionados ao show que iríamos assistir, como as histórias que João Donato me contara um dia, numa entrevista. Uma delas relatava o fato de ele ter trocado o acordeon pelo piano, lá atrás, quando veio do Pará e tocava na orquestra do Goldem Room do Copacabana Palace. Na época, ele e João Gilberto eram camaradas e costumavam se encontrar depois do expediente para beber e tocar pelo Beco das Garrafas e boates da Avenida Princesa Isabel. Acontece que João Donato passava da conta e só no dia seguinte dava falta do instrumento, largado em algum inferninho visitado na noite anterior. Foi João Gilberto quem lhe sugeriu, pelas razões óbvias, e ele concordou, num rasgo de sensatez, que o melhor seria tocar piano. E foi assim que graças à contração da inteligência minimalista de João Gilberto com o talento descomunal de joão Donato, somos brindados há décadas com o teclado suingado do músico paraense.

A essa altura, a chuva arrefecera ainda mais, porém o trânsito não estava nada bom. O jeito era continuar jogando conversa fora. Lembrado que estávamos a caminho do Espaço Tom Jobim, Fafá contou que conhecera o músico há muito tempo, quando, no frescor dos seus dezessete anos, acompanhava vez por outra o tio boêmio pela noite da cidade. Uma vez, já bem tarde, no Degrau, o dono do restaurante desceu a porta de correr que dava para a rua decretando a lotação da casa. De repente, ouviu-se uma batida na ondulação reverberante do aço e em seguida a voz do lado de fora dizendo que era o Antônio. Imagina se vão abrir a porta para um Antônio qualquer?, pensou Fafá. Mas o dono foi até lá e deu passagem a Antônio Carlos Jobim que adentrou o recinto calmamente e, para alegria da jovem, sentou-se ao seu lado. Fafá conta que o maestro só falava de Shakespeare, por quem andava obcecado ultimamente. Foi chato?, perguntei. De forma alguma, respondeu Fafá. Inclusive minha amiga guardou por muito tempo um guardanapo onde o compositor de Garota de Ipanema reproduzira os versos do bardo inglês de que mais gostava. Estava claro que aquela fora mais uma das célebres obsessões passageiras de Tom Jobim. Chato é o sujeito que fica com a mesma mania a vida inteira, concluímos rindo gostosamente enquanto estacionávamos o carro dentro do Jardim Botânico.

Pensei até que encontraria uma plateia vazia, pela facilidade que foi encontrar uma vaga sobre o chão de pedrinhas britadas, entre as árvores frondosas da alameda que leva ao teatro. Pois o moderno auditório, amplo e todo revestido de madeira (com selo de boa procedência, é claro) estava lotado. Sentamo-nos na última fila de cadeiras super confortáveis, também de madeira, desenhadas por João Bird, um arquiteto amigo de Fafá. A luz logo se apagou e, sob aplausos entusiasmados, os músicos tomaram seu lugar no palco. João Donato, ao piano, apresentou o grupo: nada menos do que Luiz Alves no baixo e Robertinho Silva na bateria. Tinha ainda percussão, saxofone, flauta e trompete. Eles atacaram de Amazonas, Café com Pão e Tardes de Verão. Que delícia! Donato anunciou um bolero que acabara de compor em parceria com Nelsinho Mota. A letra é fraquinha, mas o que importa a letra no som de João Donato? Como se tivesse me ouvido e quisesse dirimir minha dúvida, o músico mandou em seguida seu clássico Bananeira.

Mais algumas pérolas e Paulinho Jobim entrou no palco, pegou o violão, e disse que iriam tocar uma música inédita que ele havia encontrado no baú do pai, feita em parceria com João Donato, que nem se lembrava do fato. Quando eu me lembro... é o nome da canção, anunciou Donato às gargalhadas fazendo alusão a suas conhecidas distração e falta de memória. Ótima de letra e música. Saiu Paulinho Jobim, entrou Jacques Morelembaum que tocou lindamente. Chamaram ao palco Paula Morelembaum. Aproveitei para ir comprar amendoim... Quando voltei, a cena era desconcertante. Ao som da hiperdançante Porque nasci para bailar, Paula e Paulinho cometiam passos, os mais desengonçados, enquanto faziam o vocal justamente do refrão ( "Porque nasci, nasci para bailar...") De quem foi a idéia? Desta vez não houve resposta. Mais duas músicas e um único bis deram por encerrado o show que abriu as comemorações de 60 anos de carreira de João Donato que, na minha opinião, faz disparado o melhor som da MPB. A clássica mistura de bossa nova e jazz, aperfeiçoada na longa temporada em que morou nos Estados Unidos, com forte influência da música caribenha, região que frequentou por anos, tocando em navios de cruzeiro, no início da carreira.

Saímos andando devagarzinho junto com a audiência que parecia estar de alma lavada. Via-se pela calma nas atitudes e leveza das fisionomias ao nosso redor que a música de João Donato além de boa faz bem. Fomos nos dirigindo para o carro, respirando o ar puro com cheirinho de mato e terra molhada do Jardim Botânico. Na volta pra casa, quase não falamos. O que dizer depois de curtir uma autêntica noite de outono no Rio de Janeiro?

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Para Augusto

O TriBoz fica na cabeceira da Lapa, e como tal se comporta. Não é mais uma casa de samba, como outras tantas e boas que proliferam nas transversais da Mem de Sá, a verdadeira coluna vertebral do bairro boêmio do Rio. Localizado na esquina da Rua Conde de Lages com a Rua Taylor, portanto mais para a Glória do que para o Centro da Cidade, o bar, que também tem nome de Centro Cultural Brasil-Austrália, é um lugar de Jazz e Bossa Nova.

Que novidade! Um programa mais leve, pra quem quer sair com os amigos, tomar um drinque e conversar, sem a azaração e a superlotação costumeiras dos bares daquela região nos fins de semana. E sem trânsito atravancado para os que vêm da Zona Sul. Mas com o charme de estar no Rio Antigo, de passear pelas balaustradas centenárias de ferro batido do Largo da Glória, sob as luminárias em estilo colonial, por entre o casario da redondeza, com suas fachadas de pedra de cantaria. Porque ir para este lado da cidade à noite já é parte do programa. Penetrar em suas ruas sombrias, reduto tradicional dos travestis que desfilam sobre os paralelepípedos úmidos de sereno a sua elegância indiscra, de humor barato e picardia afiada, é curtir, já no caminho, o folclore do lendário bairro carioca.

E faz bem quem vai de taxi, pois apesar de ter estacionamento rotativo bem próximo ao local, ninguém está livre de se deparar na volta com uma blitz da Lei Seca que anda rondando o Centro do Rio em qualquer dia da semana. E também ninguém merece encarar um bafômetro como anticlímax de um programa tão legal. Ainda mais sábado à noite, como a de ontem, quando fui encontrar amigos para ouvir o piano personalíssimo de Mávio Ceribelli junto com uma turma de bons músicos, e a canja de jovens cantoras que salpicavam a noite com brilhos na roupa e na voz.

O dono do TriBoz é o Mike Ryan, um músico australiano PhD em Etnomusicologia, pela Universidade de Sydney. Sua tese de doutorado foi sobre contribuições da música e cultura brasileiras para a Austrália, no período de 1971 a 1984. Pesquisa de campo realizada entre imigrantes brasileiros em Sydney. Mike mora desde 1991 na mesma Rua Taylor onde montou seu bar, foi professor da Escola de Música da UFRJ, que fica pertinho dali, e desenvolve programas sociais de oficina de músicas com a comunidade local.

Além disso, Mike é bom trompetista e cantor afinado, com suingue e tom aveludado na voz de tenor. Ele recebe pessoalmente cada freguês na entrada até a lotação da casa por volta de dez da noite. Depois, é aproveitar o som, mas sem fanatismos. Dá pra conversar à vontade durante os longos e gostosos sets de repertório variado entre standards americanos e o melhor da MPB. E a postura dos frequentadores é bem essa. Nada de psius dos aficionados de jazz. Mas também sem a irreverência estúpida do público de churrascaria. O TriBoz é um lugar elegante, com um bom ar-condicionado, serviço ágil, cardápio adequado (só frios), mesas e cadeiras confortáveis e decoração leve. Se eu tivesse que mexer em alguma coisa ali, diminuiria um pouco a luz. E só.

Por tudo isso, o programa foi um sucesso. Ao final da noitada, estávamos todos muito alegres por curtir um bom som, e satisfeitos em botar o papo em dia. Fomos embora prometendo voltar lá pra semana. Não sei se o faremos, mas nossa expressão foi sincera e o desejo mais do que justificado; pois quem trabalha de segunda a sexta, seu sábado não pode e não vai desperdiçar.


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O coração pode se regenerar !

“Não vou à festa hoje. Acordei machucada, com os olhos inchados e corpo doído; minha alma ralada já purga o afeto desfeito em inúmeras tentativas de se tornar amor. Não suportaria, com a moral assim surrada, ver seus olhos caçadores. De sentidos aguçados pela dor, rapidamente descobriria sua próxima presa para em seguida invejá-la, ainda que sabedora de seus prováveis futuros infortúnios.

E na festa haveria a contradança que não poderia aceitar com os sentimentos desse jeito estropiados pela memória de outras baladas de passos acertados, rostos colados e desejos prometidos que não se entrelaçariam na coreografia estéril de corações agora desencantados.

E se a tudo sobrevivesse, trazendo no rosto um sorriso simulador da indiferença postiça recorrente nos salões, ainda assim não teria fôlego para enfrentar a emoção de sentir nossos corpos compatíveis para em seguida experimentar a vertigem abismal da indiferença afiada do seu humor excêntrico.

Sinto uma tristeza imensa... “


Uma declaração como a do texto transcrito acima mostra um coração partido. O tom é exagerado, como é exagerada a emoção das pessoas normais no momento em que percebem que tudo acabou e a relação não tem volta. “Have a broken hart? Brake it again”, disse-me, um dia, um calejado conhecedor das dores do amor. Pois não é que ele estava absolutamente certo, como um vencedor de “O céu é o limite", de Jota Silvestre. Se ainda me restava alguma dúvida a respeito do cínico ditado anglo-saxão, dissipei-a ao ler no jornal de ontem o seguinte título: SUECOS DESAFIAM DOGMA E MOSTRAM QUE O CORAÇÃO PODE SE RENOVAR. A matéria, na página de Ciência do Globo, diz que foi quebrada a convicção da medicina de que o músculo cardíaco é incapaz de produzir novas células. Afirma ainda que cerca de metade delas são trocadas ao longo da vida, e conclui que o coração, diferentemente do que se imaginava, é capaz de se regenerar.

Desta forma, e respeitando a metáfora que associa o órgão vital à sede dos sentimentos, saúdo a todos os que não pouparam emoção ao longo da vida e, por intuição ou mesmo condição existencial, apaixonaram-se a valer. Por terem aproveitado ao máximo o potencial de recuperação das suas células afetivas, convoco-os a regozijar-se agora. Propondo ainda que, de cabeça erguida, digam aos que um dia os acusaram de ser volúveis como a roleta, que nesses tempos de pós-tudo a vida é mesmo assim; morre-se hoje mil vezes. E com a certeza de que terão amanhã o coração renovado, convido-os a cantar comigo o clássico de Cole Porter: Let’s do it, let’s fall in love”


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Blecaute ecológico

Escrevo às vinte e uma horas e dois minutos. Acabo de voltar da varanda do apartamento, de onde vejo o bairro da Urca e Niterói. Embaixo, o parque do Flamengo está inteiramente às escuras e me parece tenebroso nesta noite chuvosa. A Urca tem cerca de oitenta por cento das luzes apagadas, e vê-se que o pessoal que mora no finalzinho do bairro, o mais animado, é antenado com os movimentos de conscientização ecológica como o desta noite, pois os últimos prédios da Avenida João Luiz Alves desapareceram na escuridão. Os moradores da Avenida Portugal, a primeira da orla e onde mora o rei Roberto Carlos, também aderiram totalmente ao apagão da ecologia deixando um rastro de breu aos pés do Pão de Açúcar, que vejo às escuras pela primeira vez.

Adoro essas mobilizações cívicas e além de me engajar - sempre de leve e sem pregação, é claro - gosto de ver tanta gente com o mesmo sentimento, em congraçamento, um aconchego até. É como se dissessem uns aos outros: "Hei, você não está sozinho, bicho!"

E por falar em bicho, volto da varanda, de onde fui me certificar de que Niterói (terra dos queridos minhocos, além de Araribóia) arrebentou na Hora do Planeta. Normalmente, vistas daqui, Icaraí e Itaipú formam duas meias-luas de brilhantes, de tão intensa que é a luz na capital fluminense. Pois para governo dos indiferentes ao aquecimento global e à crise de energia que se avizinha, as duas praias estão totalmente apagadas. Só se vê a tênue iluminação pública. UM show!(mesmo que às avessas)

Bem, vou me despedindo por aqui porque não quero perder o espetáculo das luzes acendendo todas ao mesmo tempo. Até mais.

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Viagem

Uma das coisas que gosto de fazer é navegar no Google Earth. Passo horas descobrindo os lugares mais distantes e interessantes. Quando leio nos jornais ou em algum livro o nome de uma cidade ou país desconhecido, ou ainda se alguma informação renova em mim o interesse por um lugar já visitado, vou ao programa que permite ao internauta um passeio instantâneo mundo afora. Faço isso à noite, com as luzes apagadas, tendo apenas a tela do computador como janela de onde parto para a misteriosa viagem pelo espaço sideral. Dali, mergulho em direção ao planeta Terra. Detenho-me a certa distância, de onde posso admirar o recorte dos continentes pousados sobre a superfície imóvel dos oceanos. Aos poucos vou me aproximando enquanto giro o globo terrestre para localizar meu destino; encontro o país desejado e vou descendo mais, devagarzinho, no intuito de conhecer a divisão política, divisar os estados ou províncias, observar os acidentes geográficos, as montanhas e os rios, alguma escarpa, o litoral, se houver. Desço mais um pouco até que apareçam os nomes das cidades, parto para a escolhida e me ponho a flanar por entre ruas, alamedas e praças. Procuro tenazmente os chafarizes – meus monumentos preferidos por alegres e generosos que são. Se encontro um espelho d'água me encanto com a imagem das nuvens duplicada, um pedaço do céu no chão.

Há ainda as estações de trens; prédios largos com dois ou três andares e frontispício imponente. Fico cismando com tudo o que pode acontecer ali; as tramas de alegrias e tristezas trançadas em chegadas e partidas, a desolação de quem fica e a angústia da espera – a dor da separação; a atmosfera de humores diversos, fusão de medo e cansaço, e o cheiro perturbador de ansiedade no ar. Mas sempre haverá mais encontros do que desencontros numa estação de trens. Essa convicção me anima a seguir as grandes avenidas para ver onde vão dar. Nos bairros suburbanos há os parques e florestas, os campos de futebol, os terrenos baldios e as casas com quintal. Diviso a única com uma árvore frondosa nos fundos. Dentro dela mora um homem solitário de hábitos frugais e modos silenciosos. Quantos amores penou, que segredos esconde, quais memórias rumina em sua poltrona puída de saudade e solidão? Prefere os licores aos destilados; tem os olhos secos, os punhos cerrados, o coração corroído de desgostos e a boca torta de tanto negar? Se algum acesso me permitisse esgueirar-me por entre as carcomidas paredes desse mundo, entraria solene em sua fortaleza de indiferenças e o tiraria pra dançar.

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O samba e a crônica carioca

Moacyr Luz fez que nem botão; entrou em casa e foi logo pra janela. Depois abriu as portas da sacada ao lado, estendeu os dois braços, empunhou a balaustrada de ferro, olhou para o céu e deu um longo suspiro. Era a última cena da matéria que gravamos para uma série de TV sobre literatura. Estávamos dois andares abaixo, na calçada do tradicional Bar do Mineiro, em frente à pousada onde mora o compositor desde que se separou. Aproveitávamos o último aceno de sol sobre as ruas de Santa Teresa, ainda agitadas com o calor atordoante do dia.

Nosso encontro foi no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, na Rua Monte Alegre. Moacyr chegou pontualmente às quatro da tarde, portando seu violão. Elegante, como de hábito, vestia calça sarouel de algodão estampado em motivos étnicos com camiseta branquinha da silva. No pescoço, dois colares de contas de madeira e pedras coloridas. No pátio do palacete construído no início do século passado, e à sombra de uma mangueira centenária, travamos conversa saborosa sobre os sambistas cariocas, cronistas por excelência que, como os de jornal, foram buscar no cotidiano da cidade, no papo na esquina, nos morros, nos subúrbios e na vida boêmia dos botequins assunto pra fazer poesia.

Moacyr contava que um amigo lhe contara que os primeiros compositores de samba foram descendentes diretos de escravos vindos da África muçulmana; que por conhecerem a escrita e terem um nível razoável de politização eram aproveitados nos serviços domésticos da corte. Eles teriam dado origem a uma linhagem de artistas cariocas como Sinhô, Donga e Pixinguinha, entre outros, que, apesar da pouca instrução formal, tinham referências ancestrais para criar letra e música de qualidade. E tanta que o samba carioca acabou por forjar a identidade cultural do país nos idos de 1930.

Para ilustrar esse papo meio cabeça, Moacyr cantou o primeiro samba gravado no Brasil, “Pelo telefone”, de Donga. Aí tudo começou a fazer sentido, até o calor senegalês.
Lembrei que, graças a Deus, estávamos à sombra de uma frondosa mangueira, e ele atacou de “Folhas secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Depois, falando do amor no samba e sua conseqüência natural, o ciúme, Moacyr atacou de “Sem compromisso”, de Geraldo Pereira. E por aí foi a conversa, desfiando um rosário dos sambas que fizeram a crônica da vida e da mentalidade carioca desde os tempos do “bota abaixo” – a modernização da cidade comandada por Pereira Passos no alvorecer do século XX.

Pra terminar, eu pedi ao compositor que se pronunciasse com a belíssima “Saudades da Guanabara”, um hino de amor à cidade, de sua autoria em parceria com Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. Foi um epílogo e tanto. Teve gente da nossa equipe que chorou, vieram me contar no dia seguinte.

Mas antes disso, conversamos sobre suas histórias de boêmio registradas em dois livros de crônicas: Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos (2005) e Botequim de bêbado tem dono (2008). Falamos também do gosto de ver a juventude curtindo as rodas de samba da cidade, que tem duas delas comandadas por Moacyr: o Samba Luzia, no Clube Santa Luzia, atrás do Aeroporto Santos Dumont, e o Samba do Trabalhador, No Clube Renascença, no Andaraí. Falamos ainda de suas nobres parcerias como a nata da MPB e do seu dia-a-dia em Santa Teresa, o bairro dos artistas e do meu coração.

Só me esqueci de perguntas ao Moacyr Luz se aqueles colares, sua marca registrada, são guias de São Jorge, santo protetor do músico, compositor, cantor, cronista e boêmio; legítimo representante de uma constelação que tem em Noel Rosa e Cartola algumas de suas estrelas mais brilhantes. Se for, vou incluir o santo guerreiro em minhas orações, para ver se ilumina minha escritura com um pouco da luz que Moacyr tem desde o nome.

O bom selvagem é daqui !

Passado o carnaval, e curada a ressaca da festa mais popular entre os cariocas, o Rio de Janeiro entra em 2009 com uma programação que promete comemorar o Ano da França no Brasil comme il faut. E não é para menos, pois a relação entre os dois países, que data dos primórdios da nossa colonização, deixou marcas indeléveis na história da cidade e no coração dos franceses.

Pra começar, a França acreditava ter descoberto o Brasil antes da frota comandada por Cabral alcançar a nossa costa. Os franceses julgaram-se com direito às terras do Novo Mundo, alegando que Jean Cousin fora o primeiro navegador a chegar à América, quatro anos antes de Cristóvão Colombo. Mas o privilégio, no caso do Brasil, coube mesmo a Portugal que assinou com a Espanha o Tratado de Tordesilhas, dividindo entre as duas potências o continente recém descoberto.

No entanto, Lisboa estava mais interessada no comércio com o Oriente, e o nosso litoral ficou à mercê das incursões dos corsários europeus. Destes, os franceses eram os mais assíduos. Vinham negociar o pau-brasil com os indígenas em troca de ferramentas e bugigangas. O escambo era tão intenso que “durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos peros (portugueses) ou aos mairs (franceses)”, segundo Capistrano de Abreu. Junte-se a isso o interesse da França em construir um império colonial próprio e estavam dadas as circunstâncias que motivaram a expedição França Antártica.

Em 1555, Villegagnon desembarcava na baía de Guanabara, na ilha que hoje leva o seu nome, onde ergueu o forte Coligny. O lugar era ideal para a nova colônia, com um entreposto normando no continente e intérpretes de tupi para ajudar na relação com os índios. Porém, o próprio Villegagnon deu motivos para a primeira revolta ao proibir seus homens de se amancebarem com as índias. E não era pra menos, se observarmos que Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta, já difundia para a Europa a superioridade da beleza nativa: “uma daquelas moças era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como a dela.” Depois foram as disputas religiosas entre calvinistas e católicos da ilha que acabaram por inviabilizar a tentativa de colonização do Brasil pelos franceses.

Apesar de contar com o apoio dos índios, que segundo a narrativa deliciosa de Jean de Léry em História de uma viagem feita à terra do Brasil, eram “tão hábeis no manejo do tacape que dois dos nossos mais destros espadachins teriam dificuldade em vir-se com um tupinambá enraivecido”, a França Antártica durou apenas cinco anos. Quando em 1560, Mem de Sá e sua poderosa esquadra tomou o forte Coligny, Villegagnon já havia partido para a França e os habitantes da ilha tinham fugido para o continente e se embrenhado na mata.

O certo é que, mesmo efêmera, a epopéia da França Antártica provocou uma revolução na mentalidade européia. No contato com os índios, os franceses se depararam com uma organização social e postura de vida infinitamente mais livre e feliz. Foi nos relatos de viagem de integrantes da França Antártica que Montaigne colheu informações sobre a vida dos tupinambás para criar o mito literário do bom selvagem.
O Estado de Natureza encontrado no lugar onde nasceria a cidade do Rio de Janeiro, o modo de vida comunitário e a ausência da propriedade privada deu vida aos mitos antigos de uma idade do ouro da humanidade que iria irrigar, dois séculos depois, o pensamento de Jean Jaques Rousseau. Sua teoria da bondade do homem foi grandemente influenciada pela figura do índio brasileiro descrita por Montaigne. E suas teses em favor da natureza e contrárias à influência corruptora da sociedade acabariam por preparar a base ideológica da Revolução Francesa.

Do lado de cá do Atlântico, a recíproca é verdadeira. Outras invasões francesas, mais amenas, como a missão de artistas trazida por D. João VI que influenciou o estilo arquitetônico do nosso império, que por sua vez foi derrubado com as idéias do positivista Auguste Comte... Mas isso já é outra história. Bom mesmo é saber que se depender das celebrações da relação entre os dois países, durante um ano inteiro não vai me faltar assunto para escrever a coluna.


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Pirata de Confiança

A odalisca cruzou o terraço em minha direção. Meneava os quadris em ondas sucessivas, redesenhando no ar as calçadas de Copacabana. Era uma visão das mil e uma noites com os cabelos negros e soltos sobre os ombros de cetim, seios fartos e ondulantes como as dunas do Saara e o umbigo tão perfeitamente redondo no centro do ventre carnudo que um paraíso com trezentas virgens não valeria mais do que um giro pelo salão atracado àquelas ancas.

Chegou mais perto e pregou os olhos nos meus. Agora vinha devagarzinho, marcando com o andar a cadência da marcha-rancho amplificada. Levantei-me num pulo e me precipitaria em sua direção não fosse o sorriso meia lua e a ponta da unha vermelha indicando o seu lugar ao lado do xeique árabe, meu patrão. Afastei o corpo e abri espaço às fantasias proibidas. Não o bastante, nem o prudente, pois a odalisca riscou com o sutiã rebordado em pedrarias meu peito aberto de pirata.

Aluguei a fantasia em cima da hora, como foi o convite para a mesa da presidência. Planejara passar o feriado em brancas nuvens, nos braços da Nercília, minha doce namorada. Mas o Matias, diretor financeiro, proibiu-me a desfeita. E para completar, encheu-me os miolos de cobiça, descrevendo toda a pompa e circunstância dos salões do Copacabana Pálace em baile de carnaval. Lindas mulheres brancas, negras e eurasianas, com muito brilho e pouca roupa; orquestras se revezando no palco; bateria de escola de samba e champanhe de chafariz. Inventei uma desculpa pra Nercília.

Agora estava metido naquela sinuca de bico, ao lado do patrão e de frente pra odalisca de os olhos enviesados na minha direção, enquanto cochichava em francês com a melindrosa ao seu lado. O idioma eu conhecia das aulas no Pedro II, não dava para ouvir tudo, mas com certeza falavam de mim. E o xeique de araque, baforando um charuto na minha cara, contava conquistas extraordinárias no setor empresarial. Eu tentava mostrar inteligência, a despeito da bateria martelando no meu cérebro em linha direta com o meu coração. Salvou-me a volta da orquestra atacando um pot-pourri de marchinhas. Foi ouvir Linda Morena pra odalisca implorar ao marido que a levasse pra dançar. Sobrou pra mim, pirata de confiança.

Deixamos a mesa afetando indiferença, cruzamos o terraço com prudência calculada, entramos no Goldem Room com as mãos entrelaçadas, mergulhamos no salão trocando beijos de refrão. A odalisca nos guiava por entre os foliões eufóricos, ninguém nos conhecia, nem reconheceria a própria sogra; todos cegos para com as convenções. Fomos para o tapume atrás da orquestra e ali fizemos amor do jeito que amor é feito em noite de carnaval. Voltamos ao salão como dois colegiais, cantando sem resguardo um clássico samba-enredo.

Entorpecido de prazer, fui levado pelas mãos da odalisca de volta ao terraço, onde tudo começou. Tentei ainda prolongar a fantasia, pedindo um beijo que ela, intransigente, negou. O número do telefone? Coisa fora de questão. Marcar um encontro, quem sabe? Nem pensar na ousadia. Soltou minha mão anunciando o fim da brincadeira. Negava amor ao pirata? Tanto quanto ao marinheiro, no carnaval que passou.

Voltei pro Engenho de Dentro com cara de palhaço. Na Presidente Vargas, já vinham as primeiras pastoras arrastando as anáguas fartas com sutil dignidade. Na Praça Onze, flanavam clóvis equívocos tentando surpreender transeuntes com a alegria desengrenada dos que chegam muito cedo ou então já voltam bem tarde. Na altura de Vila Isabel, cruzei integrantes da Escola cantando a vitória antecipada das cores azul e branco, as mesmas da manhã que então se anunciava.

Passei pelo portão rezando pro cachorro não fazer alarde. Encontrei meu prato feito na mesa bem arrumada. Comi com gosto o repasto fazendo carinho no gato. Fui me deitar sem descobrir a gaiola dos passarinhos. Abri a porta do quarto com cuidado redobrado e me enfiei na cama quente do corpo de Nercília. A namorada se remexeu, resmungando um óbvio inaudível. Puxei-a pra mais perto, envolvi-a num abraço e encostei o meu nariz no seu dorso perfumado. O costume se sobrepôs ao avançado das horas, pois Nercília se aninhou no meu corpo com a insuspeitada cordialidade dos dois pezinhos colados.

Acordei com o café fumegando tranqüilidade. Arrisquei um bom dia, mesmo já sendo de tarde. Nercília abaixou o jornal e lançou-me um olhar indecifrável. Perguntei sobre as notícias, puxando assunto genérico. Bailes, desfiles e blocos, quase tudo o mesmo de sempre, mas o horóscopo, este sim, trazia grandes novidades. Fiz-me de interessado, sabendo que a moça considerava o assunto da maior seriedade. Dizia a astróloga, de prestígio na cidade, que para os nossos signos a fantasia ideal era a de marido, de esposa ou de casal. Marquei a data do matrimônio.

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Viver a vida em paz

“ Necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais...” , canta o urso Balu, no adorável “Mogli, o menino lobo”, longa metragem de animação produzido pela Disney, em 1967. Baseado no “Livro da Selva”, de Rudyard Kipling, o filme conta as aventuras de um menino criado por lobos em sua jornada rumo à civilização. A canção, na qual o urso bonachão procura transmitir sua filosofia de vida para tentar ajudar Mogli a sobreviver na selva, reflete, de certa forma, o ideário dos movimentos alternativos do início da década de 60, que pregavam a revisão dos valores constituídos e denunciavam a existência vazia numa sociedade movida pelo desejo de consumir.

Foi o tempo das grandes transformações de comportamento, do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e homossexuais, que lançaram sobre a Terra a ideologia do Paz e Amor. Pena que uma semente assim delicada não tenha encontrado terreno fértil para se desenvolver. Ao contrário, mirrou nas tormentas das crises do petróleo, no estio do individualismo crescente e na aridez humanitária da política neoliberal. Nem mesmo a prosperidade dos últimos anos pode ajudá-la a se transformar numa árvore frondosa de sombra e frutos para todos, pois acabou desperdiçada numa tremenda concentração de renda. Não fosse a luta dos movimentos ecológicos e a tenra plantinha, símbolo de um estilo de vida simples, sem desperdícios nem excesso de luxo e de lixo, sucumbiria de vez.

Mas acabou-se o que era doce e a crise global veio, entre outras coisas, proclamar uma nova era de austeridade, promover a mudança dos hábitos de consumo, dar fim à mentalidade perdulária vigente e apontar para a mais nova tendência da estação: o despojamento está na moda.

Nesta nova ordem, perde sentido tudo o que simbolize status e desperdício, como, por exemplo, esses carrões utilitários de alto consumo de combustível que, além de contribuírem para o aquecimento global, são totalmente inadequados para o tráfego nos centros urbanos. E, acima de tudo, estão associados à arrogância da lei do mais forte, à ansiedade de chegar na frente e ao desdém pelo outro.
Bacana agora é andar de bicicleta, ainda mais em cidades com engarrafamentos permanentes. Legal é descartar o supérfluo e viver com mais tempo. Supimpa é promover uma revisão dos hábitos de consumo e substituir a gastança pelo comedimento. Ninguém precisa mais mostrar que é melhor que o outro porque tem mais dinheiro. Essa mentalidade já era. E não dá para duvidar da urgência de uma mudança de comportamento quando ela já se anuncia entre os mais conceituados economistas do mundo. Na semana passada, reunidos do Fórum Econômico Mundial, em Davos, eles tentavam entender como, em apenas 36 horas, foram queimados 600 bilhões de dólares nas bolsas de valores ao redor do planeta e, em vez do caviar e lagosta costumeiros, contentaram-se com o trivial queijo com presunto nas recepções do evento.

É bom mesmo que os economistas sintam a crise na pele e tratem de queimar a mufa para resolver a equação que se lhes apresenta na atual conjuntura. Pois se continuarmos comprando nos mesmos padrões de antes, pomos em risco a sobrevivência do planeta. Por outro lado, um freio no consumo representa redução da atividade econômica, desemprego e agravamento da crise. Para mim, a saída passa pela redistribuição de renda com redução do carga de trabalho e, consequentemente, o aumento da oferta de emprego e maior inclusão no mercado consumidor. Seria apenas o começo, para que um dia a gente possa imaginar todas as pessoas compartilhando o mundo todo, como queria John Lennon. E desfrutando tempo bastante para as coisas boas da vida, como prega o urso Balu:
“...necessário, somente o necessário / Por isso é que esta vida eu vivo em paz.”

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Questão de estilo

Estou trabalhando todo dia o dia inteiro na MultiRio, na nova programação da produtora que vai ao ar na faixa das duas da tarde na Band Rio. Já trabalhei na empresa de multimeios da prefeitura antes, quando tive a oportunidade de desenvolver programas voltados para a construção do universo cultural dos telespectadores, com atenção especial às necessidades dos professores da rede municipal de ensino. E muito me orgulho do caráter meritório de tudo o que foi produzido naquela época, sob a batuta da doutora educadora Cleide Ramos, que volta à presidência da empresa para uma nova gestão.

Dito isto, e bem entendido que o mais importante é o que vai do lado de dentro da cabeça, vou passar para o lado de fora. Ainda bem que estou com o cabelo bem resolvido, meio caminho andado quando a gente deve cumprir uma jornada de horário integral, pois muitas vezes tenho que ir do trabalho diretamente para um compromisso, uma vernissage, por exemplo. Isso quer dizer que devo sair de casa às nove horas da manhã já arrumada para a noite. Um cabelo bem resolvido é meio caminho andado, não apenas no aspecto estético, mas no prático e, sobretudo no psicológico. Eu falo de cadeira, pois trabalhei vinte anos com o meu rosto na telinha e sei a neura que é ter que estar todos os dias com o penteado impecável. É dose, podem crer.

Mas o que é um cabelo bem resolvido?, você há de perguntar. Pra mim, é um cabelo natural, com um bom corte que combine com nosso tipo físico, com estilo definido e com o qual a gente não tenha que brigar. No meu caso, optei por usá-lo longo e naturalmente cacheado. Desta forma, posso acordar, tomar banho, lavar a cabeça e ir trabalhar que o cabelo vai secando naturalmente e fica bom. Fácil, não? Parece mas não é, pois cabelo de mulher é uma coisa complicada e eu levei anos para aceitar que o ideal não é ter o cabelo que se quer, mas melhorar ao máximo aquele que se pode ter.

Vejam o caso de Michelle Obama. Tudo nela é bacana, menos o cabelo. Ela é bonita, veste-se bem, tem um belo porte, sabe se colocar ao lado do presidente sem se anular, nem chamar demasiadamente a atenção para a sua personalidade. Ao contrário, consegue, de maneira afirmativa, preservar a individualidade valorizando sua figura feminina de mãe e esposa. Eu diria que a primeira dama americana é tudo de bom, mas o cabelo... Por que a “chapinha”? Por que negar a raça e esticar os fios a “ferro e fogo”, quando poderia valorizar o seu tipo físico com um estilo mais de acordo com a sua natureza. Que me desculpem os que idolatram o novo casal vinte da América. Eu admiro Barack Obama por tudo o que representa ter um negro na Presidência dos Estados Unidos, e pelos compromissos que ele assumiu na campanha e já começou a cumprir. Mas que o cabelo da Michelle é colonizado, ah isso é.

Entendo que pode ser o caso de um desejo recôndito e remoto, um sonho de menina não realizado. Quem me abriu os olhos para essa possibilidade foi a Daúde que, além de ser uma grande artista, é uma das minhas melhores amigas. Uma vez, conversando aqui em casa, eu comentei que ela tinha acertado quando optou por usar o cabelo bem curtinho, à la garçone, marcando bem o seu estilo que se tornou invonfundível. É claro que tem uma série de cuidados alí. Um creme relaxante, uma henna de tratamento e etc. Mas não tem forçação de barra, combina com o tipo físico dela, tem estilo, e ainda por cima é sexy à beça. Enfim, Daúde tem o cabelo bem resolvido.

Foi eu fazer esse elogio para minha amiga contar uma passagem da sua infância emblemática de tudo o que foi dito anteriormente:

“Uma vez, quando eu era pequena, aos cinco anos mais ou menos, um amigo do papai foi jantar lá em casa. Querendo agradar a todos e fazer graça comigo, a menorzinha dos irmãos, ele disse que era mágico, e começou a tirar moedas da manga da camisa e fazer adivinhações. Eu prestei bastante atenção naqueles truques manjados e assim que ele parou de se exibir eu lhe perguntei à queima roupa:

- Você é mágico mesmo, então faz o meu cabelo balançar ? ... ”

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São Sebastião

Outra noite, na última lua cheia, saí com amigos para um passeio na Urca. O bairro, exclusivamente residencial, construído ao pé do Pão de Açúcar, passou por polêmica recente por conta das transformações que, segundo muitos moradores, iriam descaracterizá-lo como um dos lugares mais tranqüilos e seguros para se morar no Rio de Janeiro. A discussão foi em torno das obras de restauração e adaptação do prédio do antigo Cassino da Urca para abrigar a filial carioca do Instituto Europeu de Design (IED), escola italiana de artes visuais que já existe em São Paulo desde 2005. Quem é contra, teme pelos transtornos que o movimento de centenas de alunos trará ao cotidiano pacato do lugar.

Na cola do IED, que será inaugurado em março, veio a filial de um dos botequins mais freqüentados da cidade, dando início a outra cisão ente os moradores. Dizem que metade da Urca era contra, argumentando que sua tranqüilidade estaria irremediavelmente comprometida se a associação de moradores permitisse tamanha sandice. A outra metade abriu os braços para o despertar da vida boêmia no bairro, adormecida desde 1947, com a proibição pelo presidente Dutra dos jogos de azar no país. Dizem ainda que as solteironas foram as que mais apoiaram a idéia do chope gelado transbordando, junto com os fregueses, das mesas para as calçadas do bar. Ao que a turma conservadora desdenhava, acusando “as velhas assanhadas” de quererem ambiente para arrumar namorado.

Já a nossa intenção era conferir in loco as novidades. A noite estava fresca. O bairro, de casas suntuosas e prédios baixos, mantinha-se mergulhado em silencio de cidade do interior. Só na orla havia movimento, em muito aumentado pela freguesia do novo botequim que veio se juntar aos dois já existentes. Cercada por uma murada de pedras debruçada sobre a Baía de Guanabara, a Urca tem uma paisagem deslumbrante. Mas naquela noite, com a lua imensa despejando luz dourada sobre o mar, estava de perder o fôlego. Depois de jantar, fomos nos sentar na murada. Estávamos embevecidos com a beleza da cidade quando nos demos conta de que fora ali que tudo começou.


Pela entrada da barra, no encontro do oceano com as águas plácidas da Baía de Guanabara, Estácio de Sá chegou há 444 anos para expulsar os franceses. Junto com seus homens, o sobrinho de Mem de Sá acabou de vez com a malograda tentativa de Villegagnon criar a França Antártica no Brasil. E decidiu ele mesmo fundar, onde hoje é a Urca, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. No local, foi erguida uma capela de sapê para abrigar a imagem do santo padroeiro.

Hoje, a estátua do mártir fica na Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca, de onde sai todos os anos, no dia 20 de janeiro, em procissão pelas ruas do Centro. O feriado – que não é concedido nem ao 1º de março, dia da fundação da cidade – leva milhares de pessoas a seguir o andor com a imagem do belo jovem seminu amarrado a uma árvore, com o corpo flechado. Por ter escapado com vida da tortura dos romanos, São Sebastião, que era da Guarda Pretoriana e foi acusado de traição por ser cristão, é cultuado em quase toda a América Latina como o santo protetor contra a pestilência, simbolizada pelas flechas.

Na terça-feira passada, foram mais de trinta mil pessoas acompanhar a procissão. Este ano, mais do que nunca, o carioca teve motivos para reunir todo o seu fervor numa prece a São Sebastião. Com certeza foi pedir que o santo iluminasse a nova gestão da administração municipal, fazendo com que o prefeito que acaba de tomar posse não meça esforços para evitar mais uma epidemia de dengue na cidade. No ano passado, a doença matou 106 pessoas no Rio de Janeiro, a maioria crianças.

Que o ex-prefeito leve um tanto desse peso nas costas, e que o novo prefeito traga a esperança de erradicar o mosquito transmissor como um estandarte de seu governo. Para que o verão na cidade volte a ser apenas a época dos chopes gelados à beira mar, e se apague para sempre da nossa memória a cena macabra de pais fechando pequenos caixões infantis.

A melhor solução

Em agosto do ano passado, fui ao Festival de Cinema Brasileiro em Israel com um grupo convidado pela direção do evento. Chegamos a Tel Aviv depois de uma longa viagem com escala em Paris. O receio de todos nós da delegação brasileira, formada por diretores, produtores e atores dos filmes concorrentes, era o trâmite no aeroporto Ben Gurion. Ouvíramos contar as histórias mais cabeludas sobre filas quilométricas, revistas nos mínimos detalhes, interrogatórios massacrantes, e turistas retidos na imigração por muitas horas, às vezes mais de um dia. Por sugestão de um companheiro de viagem, cheguei a tirar do meu note book e jogar no lixo do aeroporto Charles de Gaulle um DVD sobre Jerusalém. Isto porque o filme, com legendas em inglês, era falado em árabe, e poderia comprometer todos nós.

Mas nada aconteceu como esperávamos. A Embaixada do Brasil enviou um funcionário para nos recepcionar desde a saída do avião e, conversando com ele, já a caminho do hotel, soube da ação diligente da nossa representação em Israel para que não houvesse detenções e nem mesmo revistas. Naturalmente que o fator preponderante foi não haver conflito declarado na ocasião. O fato foi sendo esclarecido durante a nossa estadia, na convivência com gente que trabalha no comércio e no turismo. Desta forma, percebi que onde são comuns os interesses econômicos entre israelenses, árabes-israelenses e palestinos, as relações são mantidas no nível da camaradagem. Porém, há uma tensão latente na região, e basta um incidente que possa dar início a um conflito armado para contagiar as relações de todos os tipos.

A reação a essa situação entre os israelenses nunca é ambígua, ao contrário, eles se declaram abertamente de direita ou de esquerda e defendem seus pontos de vista com veemência, e até xingamentos racistas em determinadas circunstâncias. É o que ocorre, por exemplo, entre as torcidas rivais dos times de futebol de direita, o Beitar Jerusalém, e de esquerda, o Poel Tel Aviv. Quando os dois se enfrentam, a violência verbal nos estádios é liberada, e mesmo que a peleja aconteça em uma cidade israelense de população árabe, nem Maomé é poupado, já que há jogadores árabes-israelenses nos dois lados.


De direita e de esquerda é como a opinião pública em Israel se divide entre os que apóiam a repressão aos territórios palestinos e os que são radicalmente contra ela. Os de esquerda, em geral artistas e intelectuais de formação humanista, formaram a grande maioria nas platéias das cinematecas de Haifa, Jerusalém e Tel Aviv, onde o Festival de Cinema Brasileiro acontece há oito anos. Em 2008, o filme “Tropa de elite”, de José Padilha, inaugurou a mostra nas três cidades. Eu compareci às noites de abertura e realizei entrevistas na saída das sessões para as reportagens publicadas na GAZETA MERCANTIL e no Jornal do Brasil. A reação quase unânime do público era de associação imediata entre os territórios palestinos e as favelas do Rio de Janeiro.

A idéia era a de que, lá como cá, existe uma população oprimida pela pobreza e falta de oportunidades, com os jovens sem perspectiva de futuro e sem opções de lazer. São todos moradores de regiões que sofrem a ação de uma organização terrorista ou do crime organizado dentro da própria comunidade, e ambos subjugados pela repressão violenta por parte do aparato policial militar do Estado, que por sua vez não lhes garante as condições mínimas de cidadania. Com algumas reações indignadas quanto à indiferença do nosso governo com a corrupção policial, o público em geral que compareceu aos debates após a exibição do filme firmava posição contrária à ocupação da Cisjordânia e o bloqueio de Gaza.

Imagino como essas pessoas estão se sentindo envergonhadas com a sangrenta ofensiva militar israelense contra a Faixa de Gaza que, até o momento em que escrevo, já matou mais de 100 crianças. São homens, mulheres, jovens e idosos que condenam a violência e reconhecem as injustiças históricas causadas ao povo palestino. Judeus que se declaram a favor de um Estado palestino convivendo com Israel ou um Estado binacional. Gente que ama seu país e por isso optou por viver na terra dos seus antepassados apesar do conflito. Mas gente que acredita, acima de tudo, que o mal não é e jamais será a melhor solução.

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De coração alforriado

Foi uma semana sem internet, justo quando mandei o laptop para uma revisão e os compromissos de fim de ano se amontoaram, com os irmãos e amigos queridos vindos de outros estados para passar as festas no Rio. Esse Rio que nunca decepciona, e recebe todo mundo com tempo bom e programação variada para atender a todos os gostos, principalmente os bons gostos, diga-se de passagem, pois falsa modéstia nunca foi o nosso forte por aqui. De forma que, impossibilitada tecnicamente, não publiquei a crônica de praxe, comentando o ano que passou e fazendo votos de Feliz Ano Novo. No entanto, quero agradecer aos meus poucos, porém fiéis, leitores pelos últimos doze meses de boa vontade, desejando contar com a sua generosidade pelos próximos 365 dias que, acreditem (e aproveitem!), passarão mais depressa do que os anteriores.

Por tudo isso, mais uma vez cumpri o ritual de passagem com tudo o que ele pode proporcionar, do fator psicológico ao emocional, para o bem e para o mal. Desta forma, compareci aos “chopinhos” com os diferentes grupos de amigos, o grupo da última viagem inclusive, fui aos almoços de confraternização de trabalho, às reuniões de família, e até a comemoração de fim de ano dos funcionários do prédio, com direito à feijoada no pratinho de papel. Fui também, como faço de uns anos para cá, à festa de Iemanjá, agora oficialmente comemorada no dia 29 de dezembro, em Copacabana. Festa que já foi a grande atração das noites de réveillon no Rio de Janeiro, mas aos poucos foi sendo empurrada para os cantos da praia, enquanto crescia a afluência para assistir à queima de fogos da meia noite do dia 31. Concentrada em minhas preces, comprei flores brancas em uma das muitas barraquinhas espalhadas ao longo da Avenida Atlântica e as ofereci à Rainha do Mar. Molhei o pé na água fria do Atlântico Sul e lancei às ondas os meus pedidos mais recônditos.

Dois dias depois, preparada para encerrar mais um ano, disposta a não olhar saudosa para trás, voltei à Avenida Atlântica para a noite de réveillon. E foi linda a noite de réveillon em Copacabana. Desta vez, com duas amigas paulistas hospedadas no Hotel Pestana, de frente para o mar, pude acompanhar a festa dede o início.


É mesmo um espetáculo sem igual. Você olha lá de cima, ainda com a luz do dia, e vê a larga faixa de areia branca, quase vazia. Em seguida vai o mar se aprofundando no azul. Parece tudo tão calmo... Aos poucos, enquanto escurece, vão chegando as pessoas vestidas de branco. Vêm também os navios transatlânticos, um a um, se enfileirar diante de nós. Com o relevo desenhado em luzezinhas decorativas, eles ficam ali parados, compondo com outros barcos, de todos os tamanhos e igualmente iluminados, um cenário que, de tão deslumbrante, parece até artificial.

Às nove horas, a praia já está lotada. Um amigo passou para me buscar para irmos juntos a um jantar. Abrimos a primeira garrafa de champanhe. Brindamos os quatro e saímos eu e ele antes da chuva rala que caía apertar. Fomos a passos largos pela Avenida Atlântica por três ou quatro quarteirões, buscando as marquises para nos proteger. Mais gente chegando. A ansiedade festiva no ar. Ambulantes vendendo de tudo na bagunça organizada que costuma ser a tônica desta celebração popular. Uma festa bem família a de Copacabana.

Chegamos sem muito nos molhar a um dos prédios mais tradicionais da beira mar. Um edifício imponente, em estilo neoclássico, batizado com o nome de Presidente Tancredo Neves. Subimos, entramos, cumprimentamos e ceamos. Fomos para a imensa varanda do apartamento assistir à queima de fogos de camarote, com outros oitenta convidados. Lá em baixo, a multidão de branco fervia. Meia noite! O show começou. Foi mais bonito do que nunca, com as balsas mais distantes da orla, permitindo uma visão melhor de qualquer ponto de vista. E havia novidades: contornando a linha da praia, os fogos saindo de dentro da água como chafarizes que desciam em cascatas luminosas se alternaram durante os vinte minutos da queima anual. Foi lindo!


Voltamos encantados. Na saída do prédio eu li outra vez o nome do ex-presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, mas que só tomou posse no coração dos brasileiros. Estavam ali brincando e bebendo muitos dos que choraram naquele distante ano de 1985. A morte de Tancredo foi um trauma para a nação. Mas passou, com o tempo tudo passa... No caminho de volta, despedi-me das tristezas do ano que terminou. Vou guardar para sempre a saudade, porém sem traumas e sem dor. E assim, leve e solto, meu coração alforriado foi atrás de um bloco de foliões prematuros que desfilava pela avenida. Fantasiados de anjos, com túnicas brancas e auréolas prateadas, já roucos e trôpegos, eles saudavam o Tempo com a tradicional cantiga: “Adeus ano velho / Feliz Ano Novo!”


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