De Alma Lavada


Eu fui à sessão de “Deus e o diabo na Terra do Sol” em desagravo a Glauber Rocha, no auditório da ABI. Eu já havia me comprometido a comparecer a outro evento na mesma noite, a superfesta dos decoradores no Golden Room e mal teria tempo para passar em casa depois da sessão no centro da cidade, trocar de roupa, e seguir para o Copacababa Palace. Acontece que para a vida da gente ter sentido, precisamos ter um mínimo de aderência entre nosso discurso e nossas ações. E fiquei bastante contrariada, revoltada até, quando soube que um dos caras do Casseta e Planeta disse, outro dia, em um debate no cine Odeon, que “Glauber Rocha é uma merda”. É claro que O Globo fez questão de repercutir a grosseria ao máximo, e acabou provocando a reação de quem gosta de cinema, do cineasta, e do cinema nacional. Assim como exigiu dos parentes de Glauber uma justa ação na justiça.


Eu vinha acompanhando pela imprensa o desenrolar dos fatos até que ontem mesmo, pela manhã, estava no jornal uma matéria com a convocação para o ato de desagravo, e mais adiante, a fala do agressor dizendo que não adianta organizar esse tipo de protesto porque “ninguém vai”. Eu fui, também de pirraça. Ora, é por confiar na falta de iniciativa das pessoas que essas figuras nadam de braçada nas águas da debilidade cultural que inunda a programação das televisões privadas no Brasil. E, se por um lado, esse grupo de humoristas faz sucesso apostando no comodismo mental do telespectador médio, por outro, faz piada confiando na pusilanimidade de grande parte de seus pares. Pelo menos aquela que preza mais os laços empregatícios com o sistema Globo de comunicação do que zela por sua integridade artística e intelectual. Ou não é o caso de ter passado incólume no meio teatral o slogan do Casseta que diz “Vá ao teatro, mas não me chame”! Até camiseta com os dizeres eles mandaram imprimir.


Glauber Rocha libertou o cinema nacional da estrutura colonizada que impedia sua expansão artística e abriu espaço para a evolução da linguagem cinematográfica, influenciando a cinematografia mundial. Par se ter uma idéia do impacto de seus filmes na comunidade intelectual internacional é só ver a crítica de “Deus e o Diabo” em um artigo assinado por ninguém menos do que Alberto Moravia, por ocasião do lançamento do filme na Itália, e transcrita no site do Tempo Glauber.


Se é verdade que um Glauber hoje não chegaria a um multiplex, é verdade também que muitos dos bons cineastas não conseguem distribuidor para seus filmes justamente porque suas obras são paradigmas de uma expressão artística elaborada, inventiva, social e politicamente engajada.

Não sou daqueles que aplaudem tudo o que faz sucesso ou só reconhece o valor de artistas regularmente incensados pela mídia. Ao contrário, costumo até desconfiar de um filme que tem muita chamada na rede Globo, e, via de regra, ele não vale mesmo o preço do ingresso na bilheteria. Reconheço, sim, que a gente vive na era da “imbecilidade triunfante”, expressão cunhada por Euclides da Cunha e bem lembrada em um dos discursos dos que foram à ABI levar seu abraço aos familiares de Glauber Rocha. Eu também fui chamada a falar e dei o meu recado. Saí dali, passei em casa voando pra trocar de roupa, e fui à superfesta no Copacabana Palace, que tinha uísque de chafariz. Mas então, eu já estava com a alma lavada.

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Domingo de Páscoa

O menino é de rua, como se diz. Traz a qualificação colada no corpo feito etiqueta moral, a pele escurecida de sol e sujeira, a calça curta e rota cobre só o início das pernas finas como dois gravetos enterrados nos pezinhos frios e nus. A camisa é uma tira molambenta que serve ainda para enxugar o ranho verde e continuo escorrido do nariz. Vejo-o de dentro do carro, parado em frente à farmácia. Ele se demora olhando a fotografia afixada no display da entrada lateral. Foram dez, quinze minutos, talvez mais ...

Eu o observo preguiçosamente trancada em ar-refrigerado. Foi um dia de calor nesse domingo, com almoço de família, vinho e chocolate. Os pequenos procurando ovos de páscoa nos vasos de planta e atrás das cortinas, os adultos discutindo as notícias das próximas eleições, e os ânimos se entorpecendo de fartura até a hora das despedidas encharcadas de conformismo burguês.

Na volta para a casa, uma parada na Prado Júnior para comprar comprimidos digestivos. E ali está o guri, hipnotizado com a imagem enquadrada na parede. Ele fita a cena como quem vê um filme ou um programa de televisão. É uma cena aconchegante com o menino de cabelo curto e bem penteado deitado de olhos fechados sobre o travesseiro limpo, o lençol puxado até a altura do ombro e o pijama abotoado no último botão. Ao seu lado, velando o sono bendito, o rosto sereno da mãe. Seus cabelos são sedosos e bem penteados, o olhar transborda ternura. A mão delicada, de unhas levemente esmaltadas, está pousada sobre a cabeça do filho. Mais acima, está o nome do produto anunciado em letras garrafai, um analgésico qualquer. Eu me comovo e abaixo a cabeça culpada em participar deste teatro absurdo de concentração de renda e exclusão. Tenho no colo a revista semanal com o último escândalo da Alerj - deputados contratavem pessoas pobres com prole numerosa para embolsar seus respctivos salário e auxílio-educação.
Mais do que vergonhoso, é tudo tão nojento. Volto pra casa sem graça e sem esperança. O Brasil me entristece.

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Campanha Eleitoral nos EUA

Para quem está acompanhando a campanha eleitoral nos Estados Unidos, uma boa dica é assistir ao filme “Sob a Névoa da Guerra” (Fog of war), dirigido por Errol Morris, o mesmo de "Gates of Heaven". Vencedor do Oscar de melhor documentário de 2003, o filme – com montagem primorosa e ótima música de Filip Glass – passa em revista alguns dos momentos mais decisivos da história americana no século vinte, a partir de uma entrevista com Robert MacNamara, Secretário de Defesa dos governos do Presidente Kennedy e Lindon Johnson.

MacNamara foi uma figura controversa, porém altamente influente na política do seu tempo. Daí a importância que tem o seu relato sobre as decisões envolvendo o maior poderio militar do planeta na época da Guerra Fria. Em tom claro, direto, e as vezes intimista, o ex- Secretário faz confidências e revela fatos novos nos episódios já conhecidos e bastante explorados, como o bombardeio de Tóquio, a crise cubana dos mísseis e Guerra do Vietnam. As conversas gravadas no Salão Oval (arquivos oficiais posteriormente divulgados) avalizam o discurso de McNamara que, desta forma, torna-se um valioso informante para o espectador sobre não apenas as decisões tomadas na alta cúpula do poder norte americano, mas também sobre o próprio processo de decisão na Casa Branca que é, em última instância, de inteira responsabilidade do presidente.

É, portanto, interessante assistir ao documentário nesta fase em que se acirra a disputa entre os dois candidatos democratas à presidência dos Estados Unidos. Com certeza, “Sob a névoa da Guerra” vai ajudar o espectador a entender melhor a pressão da mídia e dos eleitores americanos sobre a necessidade de se saber quem realmente é cada concorrente e qual deles é o mais preparado para escolher os destinos da nação. Principalmente agora que os Estados Unidos enfrentam uma grave crise financeira depois de cinco anos metidos numa guerra que, segundo o pentágono, já custou aos cofres públicos, no mínimo, 600 bilhões de dólares.


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O NOVO DARLING DO CINEMA nacional é o jovem Felipe Sholl, o primeiro brasileiro a ganhar um Teddy, o prêmio de melhor curta-metragem da mostra gay do Fertival de Berlim. Felipe é carioca, tem 25 anos, e nunca havia segurado uma câmera até ser incentivado pelos diretores Karim Aïnouz, de Madame Satã e Jonathan Nossiter, de “Mondovino” a dirigir seu curta, como condição para ter um longa-metragem produzido pela dupla. Com esse apadrinhamento, a carreira do rapaz está garantida e, junto com o prêmio internacional, aumentam as possibilidades de captar recursos para suas próximas produções.

Ótimo para o Felipe, ex-aluno da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, e ótimo para mim e meus colegas da mesma escola, pelo prestígio que o prêmio nos estende. Mas não sei se isso é bom para o movimento gay, que numa outra ponta, menos glamourosa, luta contra a discriminação dos homossexuais e, portando, contra qualquer tentativa de colocá-los em guetos culturais, segmentos sexistas, isolamentos homofóbicos e etc. Também não sei se é justo que um prêmio em mostra segmentada seja tão festejado, enquanto outros cineastas, talvez melhores, não tenham as mesmas oportunidades por disputarem num universo infinitamente maior de concorrentes.

Pensei sobre tudo isso quando fui assistir ao filme, exibido na festa de abertura do ano letivo da Darcy e apresentado pelo próprio Felipe como uma história “sórdida e fofa”... E “Tá” é isso mesmo. O filme conta em 5 minutos o encontro de dois jovens, em torno de 25 anos, em um banheiro masculino. Eles cheiram cocaína e trocam carícias ousadas com o maior despudor – daí o “sórdido” –, e chegam à conclusão que tudo pode ser bem mais gostoso se começar ou terminar com um beijo na boca – daí o “fofo”.

Continuo com as mesmas questões colocadas acima, no entanto, tenho que tirar o chapéu para a naturalidade com que Felipe conta sua história, com diálogos enxutos, atuações exatas, e linguagem cinematográfica definida, marcada por forte identidade artística. Portanto, palmas para Felipe e atenção para que, no futuro, seus trabalhos dispensem as mostras segmentadas e, nessa hora, tratem seus personagens com a dignidade que eles mereceram quando foram construídos. Não importa que sejam mulheres, ou gays, ou homens, ou lésbicas, ou negros, ou brancos, ou jovens, ou velhos. Importa, sim, que sejam apresentados simplesmente como gente.

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Notícias do Front

Depois de uma semana fora do ar, não encontrei um assunto que me inspirasse uma postagem. Escrever sobre o quê? Qual o sentido de manter um blog com as minhas impressões e opiniões, qual a relevância disso e a quem interessaria assuntos em geral tão comezinhos?? Tentando escapar da crise de identidade que me acometeu, resolvi dar uma volta pelos blogs dos amigos, num último esforço para descobrir quais fatos os motivara a escrever e postar nos últimos dias. Constatei que a crise é geral! Desanimada, pensei em postergar a tarefa um pouco mais, quem sabe deveria primeiro botar a correspondência em dia; ou sair de casa um pouco; ou comer um sanduíche acompanhado de um copo de coca cola bem gelada... Mas antes mesmo de fechar a internet e desligar o computador cliquei – meio que de bobeira – no botão do Próximo Blog na barra superior. Foi assim que conheci Ali, médica do exército dos Estados Unidos em missão no Iraq.

Digo que conheci Ali porque ela está quase que de carne e osso em seu blog. Sem tentar revelar meandros das profundezas de sua alma, sem se valorizar como pessoa, sem pretensão literária, sem afetação, muito mais para manter uma correspondência com os seus e, talvez, reafirmar sua identidade de mãe esposa, filha, irmã e amiga ("I am a mom, wife, daughter, sister, friend and CRNA deployed to Iraq.", diz em seu perfil), num momento extremo de sua vida. No blog, Ali faz relatos freqüentes em textos bem construídos, enxutos, de leitura rápida e agradável sobre seu cotidiano na guerra. Fala das saudades dos dois filhos, de seis e onze anos de idade, do marido e da própria mãe. São poucas as informações sobre a vida no front, porém são informações preciosas para traçar um perfil mais humanizado de uma médica combatente no Iraq – mesmo que engajada no exército invasor.

Lendo o blog de Ali, podemos ainda fazer uma idéia mais precisa da impressionante capacidade logística americana nessa guerra do Iraq – ao ponto de os colegas de hospital conseguirem que um bolo confeitado viesse da Alemanha especialmente para a festa de seu aniversário. Além disso, o blog de Ali pode ser considerado uma peça emblemática de como o imperialismo americano se sustenta ao aliar o máximo de progresso capitalista ao aperfeiçoamento da democracia interna. É só ver que logo no subtítulo, revelando independência política e dispondo de liberdade de expressão, Ali assume pessoalmente um posicionamento e o torna público ao afirmar que suas idéias não refletem necessariamente as do exército americano. Coisa inaceitável, por exemplo, em qualquer instituição militar brasileira.

Enfim, Ali faz um blog objetivo, coerente e bom de ler porque escreve do mesmo jeito que vive suas experiências, com simplicidade.

* Para quem se interessar, o endereço de Ali na web é http://redsbogblog.blogspot.com


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