Evolução dos costumes

Um amigo meu contou que um amigo dele foi fazer um programa com uma garota num desses prédios do tipo balança mais não cai, onde as paredes são tão finas que se pode ouvir o som da televisão no apartamento vizinho. Lá, durante a transa, a moça começou a falar cada vez mais alto: “Gostoso, gostoso...” Ao que ele, receoso de um escândalo, pediu: “Fala baixinho.” Ela então não teve dúvida; e emendou aos berros: “Baixinho gostoso, baixinho gostoso...”

É sabido que as mulheres têm essa capacidade quase instintiva para agradar aos homens visando alguma recompensa pecuniária, social, ou afetiva. Não raro, testemunhamos manifestações de adulação exemplares, como a piada aí em cima, ainda que em circunstâncias diferentes. Outro dia, num jantar para poucos convidados, ouvi a jovem namorada de um sessentão declarar que chegou a chorar num show de Michel Legrand, ao qual os dois assistiram juntos para comemorar o aniversário dele. Se ainda fosse a Edit Piaff, vá lá. Mas é difícil acreditar que alguém da geração que se esbaldou ao som de Madonna agüente duas horas da música hiper-sentimental do compositor mais meloso do cinema, ao ponto de verter lágrimas de emoção.

Pode ser que a prerrogativa feminina para fingir prazer sexual seja automaticamente estendida a outras facetas da relação com o sexo oposto. Oposto, sobretudo, nesse quesito, em que o homem, ao contrário da mulher, é limitado pela própria natureza.
Talvez o aspecto fisiológico combinado à pesada repressão da mulher no curso da História tenha impedido a prostituição masculina de se desenvolver e estabelecer. Porém, acredito que, com a crescente emancipação feminina, exista hoje uma demanda cada vez maior por serviço sexual masculino. Já que há cada vez mais mulheres sem disponibilidade, circunstancial ou não, para investir em relacionamentos onde teriam que modelar suas personalidades para se ajustar aos pretendentes.

Umas porque já são obrigadas a proceder desta forma no trabalho, e trabalham justamente para não serem submissas na vida pessoal. Outras porque pagaram um preço tão alto por sua independência que não suportariam capitular nessa altura do campeonato apenas para ter um homem pra chamar de seu. E há também as solteiras convictas ou viúvas que acreditam ter uma vida plena ao se dedicar em tempo integral à profissão, à família e aos amigos. Esperando ou não o parceiro ideal, mas sem fôlego para investir em aliança de compromisso, elas poderiam, no entanto, ter uma vida sexual ativa.

Não estou aqui fazendo a apologia da prostituição, bem entendido. Penso, contudo, que assim como há homens que não se sentem à vontade com o contrato comercial que o sexo profissional exige, há mulheres que, ao contrário, gostariam simplesmente de poder usufruir de tal conforto. Mulheres independentes e desimpedidas que por motivos conjunturais ou de temperamento mesmo preferem satisfazer seus desejos e fantasias sem envolvimento afetivo. Nada mais justo. Além disso, a igualdade de opção para ambos os sexos só pode gerar maior equilíbrio na relação entre eles. E aí, as insuspeitadas afinidades eletivas é que mais contribuiriam para a decisão de os dois juntarem os trapinhos. Até porque não é toda mulher que agüenta passar os fins de semana ouvindo free jazz se o negócio dela for samba na veia.


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Aconteceu? Virou Manchete!

Acabo de receber um e-mail de um amigo querido que mora em Israel, o Salomão Azaria, comentando sobre o livro “Os Irmãos Karamabloch”, do Arnaldo Bloch, sobre a ascensão e queda da Manchete e a saga da família do seu fundador Adolfo Bloch. Mas antes de dizer que “pelo que escreveram parece um livro interessante”, Salomão faz a ressalva cuidadosa: "sei que eles ainda devem a você".

Fico agradecida pela delicadeza do amigo, mas devo dizer para o bem da verdade que quem me deve (e apenas dinheiro) é a empresa que ficou com o espólio da antiga emissora. Coisa que raramente me lembro por estar o processo caminhando na lenta justiça trabalhista brasileira. Processo que entreguei a Deus e aos meus advogados; e ponto final. Agora, quanto à Manchete, tenho as melhores lembranças dos anos em que trabalhei lá. Talvez, alguns dos melhores da minha vida.

Para começar, aprendi a escrever com o Justino Martins, grande jornalista e editor-chefe da revista Manchete na qual eu trabalhava como editora de moda. Toda semana, fechávamos juntos as cinco páginas de matéria assinadas por mim. Justino era um gentleman, corrigia meu texto com grande generosidade, dando-me ótimas dicas e incentivando minhas aspirações profissionais.

O ambiente era ótimo nos prédios gêmeos da Editora Bloch. Duas torres de mármore, assinadas por Oscar Niemeyer, de frente para a Baia de Guanabara. Os funcionários tinham livre acesso aos donos da empresa, almoçávamos todos no mesmo restaurante, num espaço deslumbrante, à beira da piscina, em mesas redondas de jacarandá e tampo de carrara, com talheres de prata e bufê do Severino. O mesmo chefe que fazia as festas da família e que supervisionava pessoalmente o serviço dos garçons, os quais, impecáveis, vinham às mesas servir água gelada em pesadas jarras de prata. E Severiano ficava por ali, o tempo todo observando se a refeição estava do nosso agrado.

Da família Bloch em geral, tenho ótimas lembranças. De alguns tenho muitas saudades. A minha maior amiga era a divertidíssima Eveline, filha do Oscar e da Inês, de quem fui madrinha de casamento, numa cerimônia digna da mais autêntica realeza. Eveline já se foi, deixando um cantinho vazio e triste no meu coração. Assim como a irmã dela, Cláudia, de quem eu gostava muito também. De Carlinhos, o irmão, guardo um terno carinho.

Além da casa do Oscar e da Inês, freqüentei o apartamento do Adolfo e da Anna Bentes, no edifício Chopin. Eles me convidavam sempre para jantares em pequenos grupos onde pontificavam mulheres bonitas e homens inteligentes. Algumas dessas noites foram memoráveis.

Já na televisão, me aproximei mais do Jaquito, pois o Adolfo não gostava nem de pisar no quarto andar, onde funcionava o jornalismo da emissora. Diziam que ele dizia que na televisão só tinha ladrão. Mas se para a maioria dos funcionários o sobrinho do dono era uma pessoa complicada, para mim era um camarada. Nossa relação era firmada na base de respeito e consideração. Lembro de ter ido um dia tomar café da manhã na casa dele, no apartamento da Avenida Atlântica. Lá, com a Dóris, sua esposa, e toda a família à mesa, inclusive o pequeno Boris, o caçula, conversamos sobre as dificuldades pelas quais já passava a Manchete, com o atraso dos nossos salários e tudo o mais. Era desta forma que os Bloch tentavam resolver as coisas.

Depois rolou muita água por baixo da ponte. A empresa fechou e eu me mudei para Curitiba. Fui trabalhar na CNT, onde estava feliz, ganhando bem e, exatamente por isso, não quis voltar quando a Manchete reabriu. No mais, guardo a melhor lembrança daqueles anos dourados e dos grandes colegas que me ajudaram a conquistar um enorme sucesso junto ao público e à crítica.

De todos, destaco a generosidade de Ronaldo Rosas, um estupendo apresentador de telejornal e uma das companhias mais agradáveis que tive na vida. Nunca flertamos, mas também, nunca nos estranhamos. Tínhamos a mesma posição político-partidária e nos intervalos das matérias nossas críticas e opiniões eram de uma coincidência impressionante. Acho até que a nossa amizade era alvo de ciúmes dos diretores de jornalismo e alguns colegas de trabalho.

Outro companheiro inestimável foi o Miele. Homem de elegância singular, tem o dom de transformar o trabalho em prazer. Foram dois anos de programa juntos e eu só vi o Miele (que também era o diretor) se zangar com a equipe uma única vez. Em seguida ele foi ao meu camarim se desculpar de algum mau modo que por ventura tivesse feito na minha presença. Ele e sua Anita formam um casal adorável que sempre me encanta rever.

Por tudo isso, só posso agradecer um dia ter conhecido a família Bloch, e desejo um grande sucesso para o livro do Arnaldo, que foi meu colega de redação na TV Manchete e que é hoje, na minha opinião, um dos melhores colunistas da imprensa brasileira.

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Seu João e a eleição americana

Quando na manhã da quarta-feira passada, depois de uma noite acompanhando a evolução das eleições nos Estados Unidos, abri a porta para o entregador do mercado entrar com as minhas compras, pensei: em que a vitória de Barack Obama vai mudar a vida deste homem? Seu João é brasileiro, negro e pobre. Não tem casa própria, não teve educação formal, sabe quando muito escrever o próprio nome, não tem carteira assinada e muito menos dinheiro na bolsa de valores. Que lhe importa se o presidente dos Estados Unidos saberá ou não lidar com uma economia em colapso se seu João vive do trabalho informal e se mantém na esperança de que pior do que está não pode ficar? Quando muito seu João se preocupa com a saúde da família. Aqui, ele votou no candidato que prometeu unidade de atendimento na favela onde mora. Os dois filhos do seu João não precisam mais de creche e a escola pública ele sabe que não vai faltar. Mesmo que eles não aprendam muito vão passar de ano e sempre saberão mais que seu João e a mulher, que lava roupa pra fora e faz diária em casa de família duas vezes por semana. Grandes drogas também para o seu João se o homem que vai governar os Estados Unidos é contra ou a favor do terrorismo. Logo pra ele que tem apenas uma vaga noção de que a torres existem para comandar os aviões e, se houve desastre, decerto foi com essa coisa de aquelas serem gêmeas, que isso sempre dá confusão. Ser contra ou a favor da proliferação nuclear também não diz respeito ao entregador do mercado, pois por mais que se esforce não consegue entender nem pronunciar os dois nomes em seqüência. Às vezes seu João está tão aporrinhado com o pouco dinheiro, a péssima condução, a magreza das crianças e a feiúra da mulher que quer mais é que o mundo se exploda. Seu João acha também que a mudança na política ambiental não lhe diz respeito, pois não dá a mínima se a exploração da indústria madeireira está acabando com a floresta tropical na Indonésia, não se preocupa com o aquecimento global e muito menos se a Monsanto ameaça a segurança alimentar do planeta. Seu João já vive no sufoco para garantir o arroz com feijão na hora da janta, e transgênico para ele é coisa de quem quer virar a mão. Acima de tudo seu João está se lixando para o fim das guerras americanas, pois a única guerra que tem a ver com o seu João é a do tráfico, que vez por outra o impede de chegar em casa depois de duas horas sacolejando num ônibus, ao cabo de um dia inteiro carregando peso e levando bronca do patrão. Além do medo de ver um dia os filhos metidos na bandidagem, de arma na mão.

Enquanto eu via na minha cozinha aquele homem, negro retinto, retirando produtos orgânicos do engradado de plástico verde, pensei em lhe dizer que pela primeira vez na história um casal com a cor da pele igual a dele, com duas crianças da mesma idade das dele, iria morar na Casa Branca, e seria recebida nos mais belos e ricos palácios do mundo, e estaria protegida pelo maior aparato de segurança do planeta, e com isso transformaria para sempre o imaginário universal, seu João levantou a cabeça e me deu o sorriso humilde de sempre. E eu pensei que a melhor coisa que poderia fazer com a minha euforia era caprichar na gorjeta do seu João.

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Publicado no Jornal do Brasil em 9/11/2008

Conexões Urbanas

A expressão “visão suburbana” com conotação pejorativa pinçada de uma conversa particular do candidato foi parar nos jornais e o crivo ideológico do politicamente correto vetou qualquer possibilidade de justificativa para o que não tem mesmo conserto. No entanto, pela votação maciça que teve nas regiões mais abastadas, dá para concluir que esse eleitorado tratou com indulgência o velho cacoete de menosprezar o povo que mora “do outro lado” da cidade. Ainda bem que a qualidade do homem público foi avaliada pelo conjunto da obra e não por um momento fortuito de desabafo mal humorado e mal-educado. Pois está certo que a biografia de Fernando Gabeira, entre outras características louváveis da sua campanha, pesou no resultado da eleição mais disputada do Rio de Janeiro.

Mas o soluço de preconceito, amplamente divulgado pela imprensa, e explorado de maneira previsível pela campanha adversária, calou fundo no coração do subúrbio e, na reta final, prejudicou o desempenho do candidato que já não era o do seu coração. E não poderia ser diferente, pois os moradores das regiões que mais sofrem com o abandono do poder público também se ressentem com a má vontade com que costumam ser recebidos na orla da Zona Sul. Via de regra, como aqueles que vão invadir sua praia. Daí para descontar nas urnas o sentimento – geralmente camuflado, mas nesse caso insuflado – de vítimas de segregação foi um pulo.

O flerte com o apartheid social existe mesmo e é realimentado sempre que representantes das comunidades carentes reverenciam modas e modismos das regiões mais abastadas. Um fluxo incrementado pelo poder que têm os formadores de opinião, invariavelmente instalados ali. Por isso, vale investir cada vez mais no refluxo, que ocasionalmente acontece de maneira espontânea, como no caso da música que sai dos guetos e ganha o mercado. Agilizar a troca de informação entre os dois lados do front com o objetivo de transformá-la em via de mão dupla é a tarefa a que se dedica o novo programa de TV originário da vontade de incluir as comunidades de baixa renda e o subúrbio carioca nos roteiros dos grandes eventos da cidade.

Idealizado e apresentado por José Júnior, líder do Afro Reggae, “Conexões Urbanas” foi definido por ele como um braço televisivo do movimento sócio-cultural que quer juntar e fortalecer os movimentos surgidos nas comunidades. Agora, com a divulgação na TV a cabo (todas as segundas-feiras, às 21.45h, no canal Multishow), o AfroReggae dá mais um passo em direção à integração cultural, no Brasil e no mundo, pois o programa ultrapassa as fronteiras nacionais para mostrar iniciativas de transformações sociais bem-sucedidas na América Latina, Europa e Ásia.

A realidade da periferia de regiões tão diferentes mostrada por quem fala do assunto com propriedade – José Junior lidera mais de 70 projetos sociais do Grupo Cultural AfroReggae, no Brasil e no exterior – deve funcionar como antídoto para o preconceito que quase sempre nasce da desconfiança pela falta de conhecimento do outro, do diferente. Além disso, ajuda a entender que pode estar dentro de nós parte do problema que atormenta a todos, e romper com a indiferença é uma das maneiras de começar a resolvê-lo.

Acima de tudo, “Conexões Urbanas” é bom entretenimento. Tem projeto gráfico atraente, assim como roteiros bem construídos e coerentes com a proposta do programa. Apresenta experiências relevantes de resgate da cidadania em ações sociais alternativas, e mostra que o fenômeno da “cidade partida” não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, mas um reflexo perverso da desigualdade econômica e social espalhada por todas as regiões do planeta. O conteúdo é valorizado pela qualidade técnica, e há criatividade na captação de imagens dispostas em edição ágil.

Por tudo isso, torço para que “Conexões Urbanas” seja bem-sucedido e lhe desejo vida longa. Só faço uma sugestão para reforçar seu espírito de congraçamento: em vez de escolher um local ícone de uma turminha descolada da Zona Sul, como aconteceu na festa de lançamento do programa, que a próxima data comemorativa seja festejada em uma das inúmeras casas noturnas da Lapa.

Porque o tradicional bairro boêmio está localizado na região central da cidade, onde há transporte coletivo para todos os bairros e outros municípios que formam o Grande Rio. Característica que proporcionou ao lugar se transformar em berço do hip hop carioca; que ali se misturou ao samba, ao reggae e ao rock, conferindo-lhe a legitimidade necessária para representar a conexão simbólica entre as pontas mais afastadas deste nosso sonho feliz de cidade.

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Publicado na Gazeta Mercantil em 7 de novembro de 2008