Conexões Urbanas

A expressão “visão suburbana” com conotação pejorativa pinçada de uma conversa particular do candidato foi parar nos jornais e o crivo ideológico do politicamente correto vetou qualquer possibilidade de justificativa para o que não tem mesmo conserto. No entanto, pela votação maciça que teve nas regiões mais abastadas, dá para concluir que esse eleitorado tratou com indulgência o velho cacoete de menosprezar o povo que mora “do outro lado” da cidade. Ainda bem que a qualidade do homem público foi avaliada pelo conjunto da obra e não por um momento fortuito de desabafo mal humorado e mal-educado. Pois está certo que a biografia de Fernando Gabeira, entre outras características louváveis da sua campanha, pesou no resultado da eleição mais disputada do Rio de Janeiro.

Mas o soluço de preconceito, amplamente divulgado pela imprensa, e explorado de maneira previsível pela campanha adversária, calou fundo no coração do subúrbio e, na reta final, prejudicou o desempenho do candidato que já não era o do seu coração. E não poderia ser diferente, pois os moradores das regiões que mais sofrem com o abandono do poder público também se ressentem com a má vontade com que costumam ser recebidos na orla da Zona Sul. Via de regra, como aqueles que vão invadir sua praia. Daí para descontar nas urnas o sentimento – geralmente camuflado, mas nesse caso insuflado – de vítimas de segregação foi um pulo.

O flerte com o apartheid social existe mesmo e é realimentado sempre que representantes das comunidades carentes reverenciam modas e modismos das regiões mais abastadas. Um fluxo incrementado pelo poder que têm os formadores de opinião, invariavelmente instalados ali. Por isso, vale investir cada vez mais no refluxo, que ocasionalmente acontece de maneira espontânea, como no caso da música que sai dos guetos e ganha o mercado. Agilizar a troca de informação entre os dois lados do front com o objetivo de transformá-la em via de mão dupla é a tarefa a que se dedica o novo programa de TV originário da vontade de incluir as comunidades de baixa renda e o subúrbio carioca nos roteiros dos grandes eventos da cidade.

Idealizado e apresentado por José Júnior, líder do Afro Reggae, “Conexões Urbanas” foi definido por ele como um braço televisivo do movimento sócio-cultural que quer juntar e fortalecer os movimentos surgidos nas comunidades. Agora, com a divulgação na TV a cabo (todas as segundas-feiras, às 21.45h, no canal Multishow), o AfroReggae dá mais um passo em direção à integração cultural, no Brasil e no mundo, pois o programa ultrapassa as fronteiras nacionais para mostrar iniciativas de transformações sociais bem-sucedidas na América Latina, Europa e Ásia.

A realidade da periferia de regiões tão diferentes mostrada por quem fala do assunto com propriedade – José Junior lidera mais de 70 projetos sociais do Grupo Cultural AfroReggae, no Brasil e no exterior – deve funcionar como antídoto para o preconceito que quase sempre nasce da desconfiança pela falta de conhecimento do outro, do diferente. Além disso, ajuda a entender que pode estar dentro de nós parte do problema que atormenta a todos, e romper com a indiferença é uma das maneiras de começar a resolvê-lo.

Acima de tudo, “Conexões Urbanas” é bom entretenimento. Tem projeto gráfico atraente, assim como roteiros bem construídos e coerentes com a proposta do programa. Apresenta experiências relevantes de resgate da cidadania em ações sociais alternativas, e mostra que o fenômeno da “cidade partida” não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, mas um reflexo perverso da desigualdade econômica e social espalhada por todas as regiões do planeta. O conteúdo é valorizado pela qualidade técnica, e há criatividade na captação de imagens dispostas em edição ágil.

Por tudo isso, torço para que “Conexões Urbanas” seja bem-sucedido e lhe desejo vida longa. Só faço uma sugestão para reforçar seu espírito de congraçamento: em vez de escolher um local ícone de uma turminha descolada da Zona Sul, como aconteceu na festa de lançamento do programa, que a próxima data comemorativa seja festejada em uma das inúmeras casas noturnas da Lapa.

Porque o tradicional bairro boêmio está localizado na região central da cidade, onde há transporte coletivo para todos os bairros e outros municípios que formam o Grande Rio. Característica que proporcionou ao lugar se transformar em berço do hip hop carioca; que ali se misturou ao samba, ao reggae e ao rock, conferindo-lhe a legitimidade necessária para representar a conexão simbólica entre as pontas mais afastadas deste nosso sonho feliz de cidade.

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Publicado na Gazeta Mercantil em 7 de novembro de 2008

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