Roberto Carlos Querido

Para mim, este foi o natal mais movimentado dos últimos anos. Começou já na terça-feira, dia 23 de dezembro, com os preparativos para a ceia. Enquanto eu me encarregava das sobremesas, meu filho mais novo assava o peru, que ele mesmo escolheu, comprou, temperou e recheou com farofa de miúdos. É formidável notar como esses programas de “chefs” dos canais de TV a cabo estimulam os homens a ir para a cozinha. Pois meu filho acima de tudo surpreendeu com o resultado; o peru de natal foi o maior sucesso da nossa ceia do dia 24. Mesmo competindo lado a lado com outros pratos típicos desta época do ano que, seja pelas receitas especiais ou pelo capricho com que são preparados, costumam arrancar suspiros dos comensais. E como boa ceia de natal é sempre muito farta, no dia seguinte ainda teve o enterro dos ossos, que durou a tarde toda, entrou pela noite e só acabou quando saiu o último convidado, quase às dez e meia da noite. Aí, eu só tive tempo de tomar um banho e correr para ver o especial de fim de ano do Rei.


Cheguei a tempo de assistir ao melhor do programa: Roberto Carlos e Caetano Veloso esbanjando no palco seu charme irresistível de homens maduros, seguros, bonitos e muito bem tratados. Juntos interpretaram as belíssimas "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", que Roberto Carlos fez em homenagem a Caetano e entregou ao baiano quando foi visitá-lo no exílio, em Londres; e "Força Estranha", que Caetano compôs e deu para o Rei gravar. E ainda teve um tostãozinho de "Teresa da Praia", de Tom Jobim, com o duo afetando uma deliciosa malícia, meio cafajeste e tão carioca. Quanto talento, meu Deus! Como eles cantam bem, e compõem melhor ainda, ou seria o contrário? Tanto faz. Importa mesmo que os dois iluminaram a cena com sua cumplicidade brejeira. E demonstraram um carinho recíproco tão espontâneo e contagiante que, mesmo do lado de cá da tela, me fez sentir afagada...


E assim, quase em transe, lembrei-me de um episódio ocorrido há muitos anos, nesta mesma época, num balcão da antiga Mesbla, no Passeio. As filas dos caixas estavam quilométricas, depois de pagar, o cliente ainda deveria ir a outro balcão pegar as compras e a outro mais se as quisesse embrulhadas para presente. Pois justo na minha vez de ser atendida, chegando ao último estágio do sacrifício consumista natalino, começou a tocar no alto-falante da loja o novo LP do Roberto. A balconista então não teve dúvidas; largou minhas compras sobre as folhas de papel estampadas de Papai Noel, soltou os braços, levantou o rosto, fechou os olhos e, depois de um longo e profundo suspiro, declarou em alto e bom som: “Ah..., Roberto Carlos querido, como eu te amo”.


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Noite Feliz

Eu ontem fui ao cinema assistir a um filme que me tocou imensamente, “O menino do pijama listrado”. Tanto que me fez mudar de idéia quanto ao artigo que iria escrever para marcar a data de hoje, dia do Natal. Trata-se de uma fábula, sobre um dos mais horrendos acontecimentos da história da humanidade, contada com tal delicadeza que leva o espectador a enfrentar, desamparado, a brutalidade das situações apresentadas. O cenário é a Alemanha, em plena Segunda Guerra Mundial. A narrativa começa com a promoção e transferência de um oficial para um novo posto de comando. Com isso, sua família, que vivia numa confortável casa em Berlim, vai descobrir, na nova morada, e na própria pele, toda a monstruosidade do holocausto ignominiosamente disfarçada na ideologia do progresso e da superioridade de uns sobre outros.

A começar pela nova residência, nos arredores de Auschwitz, de arquitetura fascista, imponente e opressora, o filme - baseado no livro homônimo do irlandês John Boyne - narra de forma quase que alegórica as transformações na vida de Bruno, de oito anos. De índole aventureira, o garoto se põe a explorar as proximidades e descobre que há uma fazenda ali perto, onde vive uma gente que usa pijama listrado. Curioso, ele escapole com freqüência da vigilância da família para ir ter com o menino do título, que mora do outro lado da cerca de arame farpado. A partir daí, o curso dos acontecimentos irá mostrar que tanta crueldade só foi possível com o apoio da indiferença de uma maioria silenciosa.

Quando saí do cinema e me deparei com a cena corriqueira de uma família dormindo na rua, a metáfora de “O menino do pijama listrado” se materializou no meu íntimo. E a cerca de arame farpado se fez presente, ali, em plena Avenida Visconde de Pirajá. Entre mim e aquele garoto de aproximadamente oito anos, dormindo com a cabecinha no chão, havia um obstáculo intransponível, erguido pelo hábito da minha indiferença. O que fazer? Como viver num mundo com essa monstruosa desigualdade? Ainda mais agora que sabemos o quanto de dinheiro foi disponibilizado para resolver a crise financeira. Enquanto as crises humanitárias – como a do Zimbábue que já dura sete anos - são praticamente ignoradas.

Mas eu não quero ir tão longe. Aprendi que a preocupação com a fome em outro continente pode ser uma forma de escape. Em “Os irmãos Karamázov”, comentando os fundamentos da doutrina cristã, Dostoiévsky faz uma reflexão da maior relevância para nós aqui e agora. Entre outras belas e próprias digressões teológicas, o gênio da literatura russa comenta que amar o distante é fácil, difícil mesmo é amar o próximo. E o próximo não é a minha mãe, não são meus filhos, meus irmãos, meus sobrinhos e afilhados. Esses são os meus, assim como há os seus. Próximo é o garoto de rua da nossa rua; são os mendigos da porta do nosso escritório; é a população das favelas, com quem lidamos com irresponsável desdém. Assim, eu desejo a todos os que sabem o que significa uma Noite Feliz, um esforço para além da indiferença cúmplice. Vamos começar lançando ao nosso redor um olhar solidário. E tentar construir um mundo de paz e amor para os meus, os seus e o próximo.


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Pra dançar...

E lá fomos nós, um grupo de cinqüentões, assistir ao show da Madonna no Maracanã. Somos todos amigos de longa data e já dançamos muito ao som da cantora americana, desde os idos dos anos oitenta, nos tempos da explosão do videoclipe. Época em que sua imagem loiríssima invadiu telas e telões do mundo todo instigando imaginários femininos e masculinos com sua sensualidade agressiva, e abismando os puristas do rock com sua postura assumidamente pop. Ainda que nenhum de nós seja fã de carteirinha de Madonna, fomos todos influenciados de alguma maneira por seu discurso iconoclasta. Isto aconteceu antes da ditadura do politicamente correto, portanto, um tempo em que era permitida alguma transgressão, o que nos faz de certa forma cúmplices tardios da “Material Girl”.

Éramos cinco amigos entre mulheres e homens, e cada qual tinha comprado seu ingresso em dias e locais diferentes, portanto, quando nos encontramos para “esquentar os tamborins”, antes de partir para o estádio, foi que percebemos que os horários marcados nas entradas eram diferentes. Aí começou a cisão no grupo, estava na hora se o show fosse às oito da noite, porém cedo demais se o espetáculo só começasse às nove. Em nome do coleguismo todos cederam e depois de mais uma “saideira” nos enfiamos em dois taxis que nos deixaram em frente às filas, que andavam em sentidos contrários ao redor de todo o Maracanã.

O que parecia confusão era, na verdade, organização espontânea do público que seguia disciplinadíssimo para as arquibancadas. Essas, por sua vez, estavam divididas em 1 e 2, o que para o nosso grupo foi um transtorno inesperado. Acontece que, até então, nenhum de nós sabia que o ingresso da arquibancada 1 não daria acesso à arquibancada 2. E estaríamos irremediavelmente separados nas horas seguintes não fosse a farta venda de bilhetes em frente ao Maracanã. E não eram apenas os cambistas em ação, havia gente como um casal jovem que queria vender dois bilhetes por um quarto do preço original. Com jeitinho, conseguimos que eles trocassem os seus (de nº 1) pelos nossos (de nº 2) por uma gorjeta de vinte reais. E assim entramos todos juntos, agora com bilhetes iguais.

Ainda era cedo e deu para pegar lugar em baixo da marquise. O que foi muito bom porque, dez minutos antes do show, a chuva, que ameaçava cair desde as primeiras horas da tarde, despencou sobre o estádio e não deu trégua até Madonna deixar o palco, às dez e meia da noite. Não dá pra dizer que o mau tempo não atrapalhou. É claro que ter um assistente protegendo a cantora o tempo todo com um guarda-chuva tirou um pouco da magia cênica do espetáculo que é um pouco como o “Cirque du Soleil”. Mas com uma incansável Madonna capturando os sentidos do público, como um prestidigitador que transforma em ilusão a visão de toda uma audiência.

Nas duas horas de espetáculo a loura não parou em cena. Eu diria até que se há alguém no mundo capaz de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo deve ser Madonna. Como pode uma mulher de cinqüenta anos pular corda durante um tempão e sair cantando com o mesmo fôlego de antes, sem nem uma desafinadinha? Não que o show seja apenas um espetáculo de malabarismo. Também não é uma banda de rock. Mas tem atitude de sobra, pois Madona põe uma pitada de sacanagem em tudo o que faz. Quando a malícia não está explícita, vem no subtexto. Além disso, as projeções dialogam com a cantora o tempo todo; os efeitos visuais são deslumbrantes; os figurinos são de um tremendo bom gosto; os bailarinos são um show à parte e a música... ah, a música é pra dançar, ora bolas. E Madonna deu conta do recado: fez o público sacudir por duas horas sem parar. Ao final, fomos todos embora, inclusive o grupo dos cinqüentões, com alma de adolescentes.



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Al mare

Não sei se deu para perceber por outros textos deste blog que eu moro debruçada sobre a Baía de Guanabara. Vivo num décimo sexto andar, num ângulo tal da Avenida Rui Barbosa que o meu terraço, embora pequeno, funciona como um posto avançado sobre o mar. Daqui, vejo todos os dias a águas agitada do oceano entrar pela barra e vir calmamente se aninhar aos pés do Pão de Açúcar. Por isso, eu mesma tenho quase que como uma obrigação ir, a cada intervalo entre uma tarefa e outra, conferir o movimento no acidente geográfico mais bonito do Brasil. E como quase tudo desde esse ângulo privilegiado se transforma num acontecimento extraordinário - porque só a beleza da paisagem aqui já é um acontecimento extraordinário - , imagine você com o movimento dos barcos, os navios saindo e entrando na barra, as mudanças de luz, os efeitos climáticos e os fenômenos astronômicos.


E não é para me esquivar da inveja do leitor que vou me abster de descrever o espetáculo que a lua cheia resolveu fazer bem defronte da minha sacada neste final de semana. É principalmente porque o meu talento de escritora fica muitíssimo aquém do mínimo necessário para dar conta do recado. E também porque tenho agora uma coisa mais urgente pra contar.

Voltando ao meu posto avançado, faz tempo que venho observando o aumento da freqüência de barcos de passeio turístico às voltas pela Baía de Guanabara. Antes, havia apenas um que saía aos domingos e vinha apitar bem em frente aqui de casa, às dez da manhã em ponto. Era de amargar, para mim e todos os boêmios da vizinhança, porque madrugar num dia consagrado ao descanso deixa qualquer um de bofes virados. Mas, passado o mau humor involuntário (com devem ser todos os maus humores, suponho), eu ia para o terraço com a minha xícara de café e deslumbrada pela paisagem, começava a criar coragem para ultrapassar o dia internacional da angústia e tentar chegar, sem maiores danos, à segunda-feira.

Com o tempo, começaram a aparecer outros barcos desse tipo por aqui. Primeiro passavam apenas durante o dia, e isso nunca me comoveu de todo. Mas quando começaram os passeios noturnos, com música alta, feito festa de embalo, aí minha curiosidade se aguçou e tive uma vontade enorme de estar lá, nem que fosse como uma mosquinha, ou outro inseto qualquer que, por sua característica insignificância, pode bisbilhotar nos meios mais impróprios. E aí, eu podia estar aqui escrevendo, ou conversando ao telefone, ou distraída nas páginas de um romance qualquer que, bastava ouvir o som da festa no barco, ia correndo lá pra fora devanear com o que poderia estar acontecendo naquela que eu imaginava uma orgia de prazeres sem igual.

Pois na sexta-feira eu mesma era um dos convidados da festa num barco que sairia às dez da noite da marina da Glória e seguiria seu itinerário num passeio pela orla da Baía de Guanabara até as duas e meia da manhã. Foi a festa de final de ano de uma empresa para seus clientes e fornecedores do Rio e de São Paulo. Eu fiz parte da turma dos amigos do dono que, naturalmente, contribuiu para tornar o ambiente a bordo menos formal. Se bem que num barco, em fim de ano (e um ano desses!), não há formalidade que resista a três rodadas de uísque. E assim foi que saiu uma lua do tamanho de um bonde sobre nós e a festa rolou com dança e jantar e muito papo, e a confraternização foi geral entre paulistas e cariocas, e às quatro da manhã estávamos desembarcando na marina os cerca de cem convidados mais alegres que eu já vi. Foi uma festa careta, como vocês puderam perceber. E isso é muito legal porque eu não precisei ser mosca pra comparecer, bastou um longuinho de jérsei, uma pashimina e uma rasteirinha pra me divertir a valer. E o melhor: não teve marchinha de carnaval!
Ainda bem, porque o fim de semana é de Madonna, e eu vou ficando por aqui, pois devo estar no Maracanã as oito horas em ponto. Até lá, torço para o tempo firmar!

Governo ou desgoverno?

Não sou chegada a uma sessão nostalgia, nem acredito muito nessa história de que recordar é viver. Mas quando vi no jornal, na semana passada, a fotografia de uma dona-de-casa lavando roupa na laje, no topo do Dona Marta, tendo ao fundo o corcovado redentor, senti uma tremenda saudade da cidade que o Rio de Janeiro foi um dia. Nem tanto o Rio que eu vivi, mas o Rio do meu imaginário, o “Rio, 40 Graus”, o Rio de “Orfeu do Carnaval”, o Rio dos anos dourados... da época do lotação... quando os porteiros mais antigos eram verdadeiras instituições na redondeza, e os mendigos eram poucos e folclóricos, cada bairro tinha o seu. Uma cidade na qual menino de rua era um status desconhecido da população. Tanto na Zona Sul quanto na Zona Norte, porque a Zona Oeste nem tinha propriamente população. Enfim, um Rio que não existe mais.

Saí do devaneio saudosista por um lampejo de otimismo trazido por outras notícias tão auspiciosas quanto a da ocupação que livrou o Dona Marta do tráfico de drogas. Uma foi o lançamento no Complexo do Alemão do projeto Território da Paz, com o objetivo de afastar os jovens da criminalidade e aproximar a polícia do dia-a-dia da comunidade. Outra é o esforço da Secretaria de Segurança para acabar com o crime organizado na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, e devolver a comunidade aos moradores de bem. Segundo dados da própria Secretaria, a operação, com início em 11 de novembro, já mostra uma diminuição pela metade, em média, dos crimes cometidos no bairro da Zona Oeste em relação ao mesmo período do ano passado.

Seria muito bom que esse estado de coisas se efetivasse, tanto para os moradores das favelas quanto para os dos bairros adjacentes. Porém há fatores a serem examinados, porque a ocupação social que deve substituir a policial só está prevista para o morro de botafogo, bem menor do que as outras comunidades supracitadas. Ora, o sucesso da operação no Dona Marta, com população de 4.500 pessoas, é resultado de um trabalho de inteligência que reuniu agentes das Polícias Federal e Militar combinado com patrulhamento ostensivo. No entanto, para ocupar as 700 favelas do Rio e Região Metropolitana seriam necessários 70.000 policiais, segundo Milton Corrêa da Costa, um especialista na área de segurança.

Não sei qual é o efetivo a PM hoje, mas com certeza é consideravelmente menor do que o indispensável para vencer a luta contra a violência na cidade. Logo, para dar prosseguimento à política de enfrentamento, o governo do estado já teria que estar concursando e treinando policiais a toque de caixa e em número expressivo. Além de promover programas de capacitação e implementar um plano habitacional para garantir aos policiais o acesso à casa própria - como forma de valorizar a profissão. Porém, nada vai funcionar sem que seja costurado um pacto entre executivo e judiciário no sentido de promover uma limpeza em regra nas forças policiais civis e militares do Rio de Janeiro, afastando os elementos corruptos e punindo-os de forma exemplar. Pois o que há de mais preocupante agora – e seria desolador para o carioca - é a possibilidade do governo tirar o tráfico das comunidades para entregá-las de mão beijada às milícias.

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Ménage à Trois

Se estivesse almoçando com minhas amigas num restaurante em Ipanema e o assunto surgisse, começaria por dizer que a-do-ro Woody Allen. Como já devo ter feito algumas vezes, ainda mais incentivada por taças e taças de Puilly-Fumé gelado, que um Sauvignon Blanc desses leva a gente ao exagero. E não estaria mentindo, mas cometendo o pecado da heresia, pois, segundo a minha avó – que a-do-ra-va cortar a minha onda –, adorar só a Deus. E graças a Deus as admoestações de vovó serviram para ajuizar minhas avaliações e me fazer levar em conta que quando a gente escreve, faz mais do que lançar palavras ao vento nas esquinas chiques da Visconde de Pirajá.

Então, voltando ao assunto, gosto muito dos filmes de Woody Allen, mas este último, Vicky Cristina Barcelona, é menos que uma bobagem. Vamos combinar que há bobagens e bobagens adoráveis, como “Bananas”, no qual Allen satiriza tanto a CIA quanto o ativismo político de esquerda. E “O Dorminhoco”, uma crítica hilária aos governos autoritários e à submissão do homem à tecnologia. E esta é justamente a grife do diretor: além de diálogos brilhantes, um olhar inusitado e crítico sobre os temas abordados em seus filmes. O meu preferido é “Noivo neurótico, noiva nervosa”, um tratado genial sobre os relacionamentos amorosos. Mas há outros ótimos disponíveis em DVD, para assistir no aconchego do lar, em boa companhia e, quem sabe, saboreando um Pinot Noir do Vale de Casablanca.

Agora, de volta ao xis da questão, menos que uma bobagem, “Vicky Cristina Barcelona” é uma chatice feita de encomenda para divulgar o turismo na região da Catalunha. Se bem que para apreciar as deslumbrantes locações da fita vale uma ida ao cinema numa quarta-feira, quando a entrada custa metade do preço. Já que o diretor colocou seu reconhecido dom de revelar fotogenias metropolitanas a serviço da cidade do título. E fez a arquitetura inspirada de Gaudí e a arte de Miró contracenar com atores bonitos que bebem vinho o tempo todo. Dá até vontade de abrir um ALTO, de Ribera Del Duero, aquele tinto com gosto de férias na Espanha.



De resto, o filme mostra uma gente que consome muito, e coisas caras. São hotéis de luxo, iates, carros conversíveis e até avião particular para contar a breve história de um triângulo amoroso pouco convincente. Pode-se dizer que Javier Barden dá conta do recado ao encarnar um pintor blasé dependente de companhia feminina. Scarlett Johansson (linda de morrer) faz o que pode para dar algum brilho à superficialidade da jovem americana em busca de aventuras mediterrâneas. Já Penélope Cruz (muito linda também), no papel da ex-esposa neurótica, consegue apenas fazer a caricatura da artista espanhola de sangue quente.

Pena que Woody Allen tenha desperdiçado a sua vez de abordar um tema que já foi tratado com maestria por alguns dos grandes cineastas. Para escolher apenas um, fico com Jules e Jim, de François Truffaut, com Jeanne Moreau na pele de Catherine, uma mulher para dois. Passado na Paris do início do século XX, o filme narra com poesia a evolução de um triângulo amoroso antes e depois da Primeira Guerra Mundial. E evoca, em menos de duas horas de projeção, desde as frivolidades da belle époque até as cicatrizes do pós-guerra. Não é só mais uma historinha de ménage à trois, como “Vicky Cristina...”. Ao contrário, é uma bela homenagem ao amor e à amizade. E os personagens de Truffaut, saídos do romance de Henri-Pierre Roché, não são feitos apenas de aparência e hedonismo. São alegres, sim, porém controvertidos, e capazes de sentimentos de renúncia e compaixão. Porque a vida é mais do que um pilequinho de Dom Pérignon num sarau ao luar.

Espetáculo carioca

O sol, enfim, apareceu para colorir as águas plácidas da Baía de Guanabara. O Pão de Açúcar despontou da neblina, enigmático e liso. Qual esfinge bruta, a pedra monumental montou guarda sobre a entrada da barra... Um cargueiro preguiçoso apitou sua chegada . A manhã já vinha alta. O horizonte limpo revelou a curva branca de Niterói para o Rio, que há dias jazia imerso em nuvens carregadas.

O albatroz cortou o céu de brilho transparente e convidou-me para um passeio à beira-mar. Aceitei o chamado da alegria e deixei todo o resto para depois. Vesti um biquíni estampado e fui sentir de perto o espetáculo carioca.

Atravessei o parque por entre as árvores de restinga... No deque da praia, o grupo dos mais velhos saudosos de sol cocoricava excitado, como fazem no terreiro as aves de vôo curto. Na primeira curva enrocada, encontrei Mara Mineira, catadora de mariscos, com sua cavadeira e luvas de operário. Ela me disse que entrava na briga das pedras contra o mar, contando tirar a féria de uma semana no primeiro dia de calmaria.

Caminhei pela beirinha, a água salgada gelando meus pés... Fui de um lado para outro vendo as crianças brincar... Passei pelo pescador de primeira viagem lutando com um caniço que teimava em esticar uma linha de todo má. Desviei rápido, para fugir da degola, e fui me esticar sobre a canga bem junto ao mar. Deitei de bruços e deixei maresia entrar pelos sete buracos da minha cabeça. Um avião riscou o céu levando meus pensamentos para Havana. Escrevi com a ponta do dedo o nome dele na areia, a onda veio e lambeu as quatro letrinhas de amor.

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