Noite Feliz

Eu ontem fui ao cinema assistir a um filme que me tocou imensamente, “O menino do pijama listrado”. Tanto que me fez mudar de idéia quanto ao artigo que iria escrever para marcar a data de hoje, dia do Natal. Trata-se de uma fábula, sobre um dos mais horrendos acontecimentos da história da humanidade, contada com tal delicadeza que leva o espectador a enfrentar, desamparado, a brutalidade das situações apresentadas. O cenário é a Alemanha, em plena Segunda Guerra Mundial. A narrativa começa com a promoção e transferência de um oficial para um novo posto de comando. Com isso, sua família, que vivia numa confortável casa em Berlim, vai descobrir, na nova morada, e na própria pele, toda a monstruosidade do holocausto ignominiosamente disfarçada na ideologia do progresso e da superioridade de uns sobre outros.

A começar pela nova residência, nos arredores de Auschwitz, de arquitetura fascista, imponente e opressora, o filme - baseado no livro homônimo do irlandês John Boyne - narra de forma quase que alegórica as transformações na vida de Bruno, de oito anos. De índole aventureira, o garoto se põe a explorar as proximidades e descobre que há uma fazenda ali perto, onde vive uma gente que usa pijama listrado. Curioso, ele escapole com freqüência da vigilância da família para ir ter com o menino do título, que mora do outro lado da cerca de arame farpado. A partir daí, o curso dos acontecimentos irá mostrar que tanta crueldade só foi possível com o apoio da indiferença de uma maioria silenciosa.

Quando saí do cinema e me deparei com a cena corriqueira de uma família dormindo na rua, a metáfora de “O menino do pijama listrado” se materializou no meu íntimo. E a cerca de arame farpado se fez presente, ali, em plena Avenida Visconde de Pirajá. Entre mim e aquele garoto de aproximadamente oito anos, dormindo com a cabecinha no chão, havia um obstáculo intransponível, erguido pelo hábito da minha indiferença. O que fazer? Como viver num mundo com essa monstruosa desigualdade? Ainda mais agora que sabemos o quanto de dinheiro foi disponibilizado para resolver a crise financeira. Enquanto as crises humanitárias – como a do Zimbábue que já dura sete anos - são praticamente ignoradas.

Mas eu não quero ir tão longe. Aprendi que a preocupação com a fome em outro continente pode ser uma forma de escape. Em “Os irmãos Karamázov”, comentando os fundamentos da doutrina cristã, Dostoiévsky faz uma reflexão da maior relevância para nós aqui e agora. Entre outras belas e próprias digressões teológicas, o gênio da literatura russa comenta que amar o distante é fácil, difícil mesmo é amar o próximo. E o próximo não é a minha mãe, não são meus filhos, meus irmãos, meus sobrinhos e afilhados. Esses são os meus, assim como há os seus. Próximo é o garoto de rua da nossa rua; são os mendigos da porta do nosso escritório; é a população das favelas, com quem lidamos com irresponsável desdém. Assim, eu desejo a todos os que sabem o que significa uma Noite Feliz, um esforço para além da indiferença cúmplice. Vamos começar lançando ao nosso redor um olhar solidário. E tentar construir um mundo de paz e amor para os meus, os seus e o próximo.


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