São Sebastião

Outra noite, na última lua cheia, saí com amigos para um passeio na Urca. O bairro, exclusivamente residencial, construído ao pé do Pão de Açúcar, passou por polêmica recente por conta das transformações que, segundo muitos moradores, iriam descaracterizá-lo como um dos lugares mais tranqüilos e seguros para se morar no Rio de Janeiro. A discussão foi em torno das obras de restauração e adaptação do prédio do antigo Cassino da Urca para abrigar a filial carioca do Instituto Europeu de Design (IED), escola italiana de artes visuais que já existe em São Paulo desde 2005. Quem é contra, teme pelos transtornos que o movimento de centenas de alunos trará ao cotidiano pacato do lugar.

Na cola do IED, que será inaugurado em março, veio a filial de um dos botequins mais freqüentados da cidade, dando início a outra cisão ente os moradores. Dizem que metade da Urca era contra, argumentando que sua tranqüilidade estaria irremediavelmente comprometida se a associação de moradores permitisse tamanha sandice. A outra metade abriu os braços para o despertar da vida boêmia no bairro, adormecida desde 1947, com a proibição pelo presidente Dutra dos jogos de azar no país. Dizem ainda que as solteironas foram as que mais apoiaram a idéia do chope gelado transbordando, junto com os fregueses, das mesas para as calçadas do bar. Ao que a turma conservadora desdenhava, acusando “as velhas assanhadas” de quererem ambiente para arrumar namorado.

Já a nossa intenção era conferir in loco as novidades. A noite estava fresca. O bairro, de casas suntuosas e prédios baixos, mantinha-se mergulhado em silencio de cidade do interior. Só na orla havia movimento, em muito aumentado pela freguesia do novo botequim que veio se juntar aos dois já existentes. Cercada por uma murada de pedras debruçada sobre a Baía de Guanabara, a Urca tem uma paisagem deslumbrante. Mas naquela noite, com a lua imensa despejando luz dourada sobre o mar, estava de perder o fôlego. Depois de jantar, fomos nos sentar na murada. Estávamos embevecidos com a beleza da cidade quando nos demos conta de que fora ali que tudo começou.


Pela entrada da barra, no encontro do oceano com as águas plácidas da Baía de Guanabara, Estácio de Sá chegou há 444 anos para expulsar os franceses. Junto com seus homens, o sobrinho de Mem de Sá acabou de vez com a malograda tentativa de Villegagnon criar a França Antártica no Brasil. E decidiu ele mesmo fundar, onde hoje é a Urca, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. No local, foi erguida uma capela de sapê para abrigar a imagem do santo padroeiro.

Hoje, a estátua do mártir fica na Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca, de onde sai todos os anos, no dia 20 de janeiro, em procissão pelas ruas do Centro. O feriado – que não é concedido nem ao 1º de março, dia da fundação da cidade – leva milhares de pessoas a seguir o andor com a imagem do belo jovem seminu amarrado a uma árvore, com o corpo flechado. Por ter escapado com vida da tortura dos romanos, São Sebastião, que era da Guarda Pretoriana e foi acusado de traição por ser cristão, é cultuado em quase toda a América Latina como o santo protetor contra a pestilência, simbolizada pelas flechas.

Na terça-feira passada, foram mais de trinta mil pessoas acompanhar a procissão. Este ano, mais do que nunca, o carioca teve motivos para reunir todo o seu fervor numa prece a São Sebastião. Com certeza foi pedir que o santo iluminasse a nova gestão da administração municipal, fazendo com que o prefeito que acaba de tomar posse não meça esforços para evitar mais uma epidemia de dengue na cidade. No ano passado, a doença matou 106 pessoas no Rio de Janeiro, a maioria crianças.

Que o ex-prefeito leve um tanto desse peso nas costas, e que o novo prefeito traga a esperança de erradicar o mosquito transmissor como um estandarte de seu governo. Para que o verão na cidade volte a ser apenas a época dos chopes gelados à beira mar, e se apague para sempre da nossa memória a cena macabra de pais fechando pequenos caixões infantis.

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