O samba e a crônica carioca

Moacyr Luz fez que nem botão; entrou em casa e foi logo pra janela. Depois abriu as portas da sacada ao lado, estendeu os dois braços, empunhou a balaustrada de ferro, olhou para o céu e deu um longo suspiro. Era a última cena da matéria que gravamos para uma série de TV sobre literatura. Estávamos dois andares abaixo, na calçada do tradicional Bar do Mineiro, em frente à pousada onde mora o compositor desde que se separou. Aproveitávamos o último aceno de sol sobre as ruas de Santa Teresa, ainda agitadas com o calor atordoante do dia.

Nosso encontro foi no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, na Rua Monte Alegre. Moacyr chegou pontualmente às quatro da tarde, portando seu violão. Elegante, como de hábito, vestia calça sarouel de algodão estampado em motivos étnicos com camiseta branquinha da silva. No pescoço, dois colares de contas de madeira e pedras coloridas. No pátio do palacete construído no início do século passado, e à sombra de uma mangueira centenária, travamos conversa saborosa sobre os sambistas cariocas, cronistas por excelência que, como os de jornal, foram buscar no cotidiano da cidade, no papo na esquina, nos morros, nos subúrbios e na vida boêmia dos botequins assunto pra fazer poesia.

Moacyr contava que um amigo lhe contara que os primeiros compositores de samba foram descendentes diretos de escravos vindos da África muçulmana; que por conhecerem a escrita e terem um nível razoável de politização eram aproveitados nos serviços domésticos da corte. Eles teriam dado origem a uma linhagem de artistas cariocas como Sinhô, Donga e Pixinguinha, entre outros, que, apesar da pouca instrução formal, tinham referências ancestrais para criar letra e música de qualidade. E tanta que o samba carioca acabou por forjar a identidade cultural do país nos idos de 1930.

Para ilustrar esse papo meio cabeça, Moacyr cantou o primeiro samba gravado no Brasil, “Pelo telefone”, de Donga. Aí tudo começou a fazer sentido, até o calor senegalês.
Lembrei que, graças a Deus, estávamos à sombra de uma frondosa mangueira, e ele atacou de “Folhas secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Depois, falando do amor no samba e sua conseqüência natural, o ciúme, Moacyr atacou de “Sem compromisso”, de Geraldo Pereira. E por aí foi a conversa, desfiando um rosário dos sambas que fizeram a crônica da vida e da mentalidade carioca desde os tempos do “bota abaixo” – a modernização da cidade comandada por Pereira Passos no alvorecer do século XX.

Pra terminar, eu pedi ao compositor que se pronunciasse com a belíssima “Saudades da Guanabara”, um hino de amor à cidade, de sua autoria em parceria com Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. Foi um epílogo e tanto. Teve gente da nossa equipe que chorou, vieram me contar no dia seguinte.

Mas antes disso, conversamos sobre suas histórias de boêmio registradas em dois livros de crônicas: Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos (2005) e Botequim de bêbado tem dono (2008). Falamos também do gosto de ver a juventude curtindo as rodas de samba da cidade, que tem duas delas comandadas por Moacyr: o Samba Luzia, no Clube Santa Luzia, atrás do Aeroporto Santos Dumont, e o Samba do Trabalhador, No Clube Renascença, no Andaraí. Falamos ainda de suas nobres parcerias como a nata da MPB e do seu dia-a-dia em Santa Teresa, o bairro dos artistas e do meu coração.

Só me esqueci de perguntas ao Moacyr Luz se aqueles colares, sua marca registrada, são guias de São Jorge, santo protetor do músico, compositor, cantor, cronista e boêmio; legítimo representante de uma constelação que tem em Noel Rosa e Cartola algumas de suas estrelas mais brilhantes. Se for, vou incluir o santo guerreiro em minhas orações, para ver se ilumina minha escritura com um pouco da luz que Moacyr tem desde o nome.

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