O Outro Lado

Esta semana coloquei o ponto final no meu primeiro roteiro de longa-metragem. É ainda o primeiro tratamento – o que quer dizer que há muito trabalho pela frente. Para se ter uma idéia, o roteiro de Amores Brutos só foi filmado depois do vigésimo sétimo tratamento. No caso de Central do Brasil, dizem que foram dezessete tratamentos. Então, depois de meses (o último principalmente) dedicada quase que integralmente a este projeto, ainda há muito que burilar na história de amor entre um travesti e um jovem feirante filho de portugueses católicos fervorosos que se cruzam nas madrugadas de domingo, quando a feira da Glória é montada de um lado da rua, enquanto do outro os travestis fazem ponto. A trama é costurada pelas aventuras de um menino de rua às voltas com drogas e furtos e é localizada nos arredores do Centro, na Glória, na Lapa e no Bairro de Fátima, região onde vive, em sua maioria, uma gente oprimida ou desvalida. Pois se de um lado é a classe média remediada e baixa que sofre o rigor das convenções sociais enquanto é constantemente atormentada pelo desejo de ascensão econômica e social. Do outro, é a população de rua, com grande concentração naqueles bairros, como sempre abandonada à própria sorte.

A escolha do tema e da região onde a história se passa foi a oportunidade que encontrei para chamar a atenção para uma realidade tão próxima fisicamente e ao mesmo tempo tão distante da mentalidade exclusivista da Zona Sul carioca, totalmente voltada para o seu próprio umbigo e por isso mesmo esvaziada de qualquer expressão cultural e artística relevante. Podem alegar que uma trama ambientada em uma favela do Rio atingiria o mesmo objetivo: bombardear a egemonia dessa mentalidade nos meios de comunicação e o descomunal poder político de sua classe correspondente em detrimento do discurso, da mobilidade e do bem-estar das populações menos favorecidas.

A diferença é que esta região central, de aspectos singulares e bastante interessantes, é acessível a qualquer hora do dia para qualquer pessoa. É só lembrar que na Lapa há transporte coletivo para todos os municípios do Rio de Janeiro, o que proporcionou inclusive que o lugar se transformasse em berço do hip hop carioca; que ali se misturou ao samba, ao reggae e ao rock, conferindo identidade ainda mais cosmopolita e contemporânea ao lugar. Assim, foi possível que eu me aventurasse pelas ruas desses bairros em diferentes horas do dia e da noite para conhecer melhor os personagens que há muito namoro, desde os tempos em que morava em Santa Teresa e fazia da Lapa minha passagem obrigatória. Personagens aos quais me dedicarei ainda por um bom tempo, com a pretensão de representá-los em toda a sua complexidade e poesia. Para isso, vou tentar seguir o lema que escolhi para guiar minhas ambições de crescimento pessoal, e que consiste em acreditar que a verdadeira misericórdia é ser solidário com o fracasso do próximo, é olhar com piedade para aquilo que no outro lhe parece mau, ruim, errado. Que Deus me ajude!

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