Os meus, os seus e os nossos

É com certa angustia que acompanho o noticiário sobre as investigações do assassinato da menina Isabella. Principalmente por conta das muitas reviravoltas, de provas e depoimentos, impedindo que se mantenha uma opinião formada a respeito por mais de vinte e quatro horas. Também tento, há dias, escrever sobre esse fato e acabo desistindo. Mas hoje, ao acordar, mais cedo, ansiosa por saber se surgira alguma nova prova ou depoimento definitivo para a elucidação do crime, percebi que era inevitável tocar no assunto. Ainda mais que as notícias davam conta do enorme aparato policial armado para proteger de um provável linchamento o pai e a madrasta da menina, principais suspeitos do assassinato. Então, pensei, a comoção é geral. E é mesmo revoltante e parece incompreensível que um pai possa matar ou ser cúmplice da madrasta no assassinato da própria filha, uma criança de cinco anos, tendo ainda dois outros filhos menores com esta mulher.

No entanto, esse pode ser mais um episódio da história das paixões humanas que se reproduz ao longo da própria história da humanidade. Nós todos sabemos, de maneira intuitiva ou intelectualmente elaborada, da capacidade que tem uma mulher de arrancar das camadas mais profundas e obscuras o que há de mais bárbaro na alma de um homem. Sabemos também que o homem primitivo é mais macho do que pai, sendo a mulher jurássica mais mãe do que fêmea. Juntem-se, então, na mesma casa, filhos de ambos os lados e está feita a desgraça, no mínimo, a confusão. E não venham me dizer que sórdidos abusos não ocorrem a toda hora. Não ao extremo, talvez. Mas de forma ligh, são freqüentes até nas melhores famílias.

Ao longo da vida assisti a muitos relacionamentos de casais com filhos de casamento anteriores e tenho um punhado de exemplos de como uma madrasta pode ser mesquinha e o próprio pai cruel. Uma vez, durante todo um final de semana, no campo, vi a dona da casa negar à enteada -sem motivo aparente - , um pouco do sorvete guardado na geladeira. A menina gozava de plena saúde, mas o pai era um grande paspalho e não esboçou reação. O próprio presidente Lula tem uma história similar envolvendo sorvete, a guloseima preferida de nove entre dez crianças. Ele conta que, ainda menino, veio do nordeste para São Paulo e saiu, pela primeira vez, para passear com o pai e os dois filhos do segundo casamento deste. A certa altura, eles pararam numa sorveteria e o pai deu sorvete apenas para os dois irmãos menores. Um deles estranhou o fato de o pai não comprar um sorvete também para o meio-irmão. O pai respondeu que não precisava porque o Lula era um matuto e não sabia o que era um sorvete. O presidente nunca mais esqueceu da crueldade paterna, tanto que conta essa história.

Temos todos nossas fraquezas, nossas emoções negativas, próprias da natureza humana. Por isso mesmo devemos fazer um esforço constante para tentar superá-las e contribuir tanto individual quanto coletivamente para um mundo mais justo ao nosso redor, no âmbito familiar e, sobretudo, no âmbito social. Principalmente quanto à criança que, sendo o lado mais fraco, é sempre a maior vítima na sociedade enquanto deveria ser protegida, não só como indivíduo, mas como entidade; para que se construa uma mentalidade universal de proteção ao nosso futuro. E assim, os seus, os meus e os nossos filhos e netos seriam favorecidos como um todo. Infelizmente ainda estamos longe deste ideal de fraternidade. Até mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente é, em muitos casos, omisso.

Um exemplo foi a fotografia estampada, esta semana, na primeira página dos jornais mais importantes do Rio. Nela, víamos um menor de rua, vestido só de bermuda, agachado entre as botinas altas de dois policiais militares. A legenda dizia “está dominado” e a matéria tratava de uma operação de combate à desordem urbana na Zona Sul. Nada contra ações para melhorar a qualidade de vida dos que pagam mais impostos. É justo. O que não pode é mostrar a foto de uma criança feito um bicho caçado nas ruas da cidade e exibido como troféu. Vale lembrar que, mesmo com o rosto desfocado, a imagem de uma criança simboliza a infância como um todo; tanto a abandonada pela família, pelo estado e pela sociedade, quanto a protegida pelo dinheiro e posição social.

Eu não sou de citar a Bíblia, mas nesse caso vale uma exceção. Lá está escrito que quem escandaliza uma criança deve ser lançado ao mar com uma pedra amarrada ao pescoço. É justo, também. E que esse crime hediondo contra uma menina de cinco anos, que tanto nos angustia e revolta, sirva, ao menos, para sensibilizar nosso olhar sobre todas as crianças da terra.


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