Faz sentido...

Sábado, à noite, eu fui fazer uma pesquisa de campo para um roteiro de longa-metragem que estou desenvolvendo. A história, em sua quase totalidade, se passa na Glória, com ações progressivas em bairros vizinhos como Santa Teresa, Lapa, Bairro de Fátima, e vai até São Cristóvão. Desta vez, eu tinha que ir à Lapa de madrugada. Pedi a ajuda de duas amigas e prometi pagar uma rodada de caipirinha em alguma casa noturna de sua preferência para convencê-las a chegar bem mais tarde que o convencional e ficar o máximo de tempo no lugar. Depois, teríamos que ir andando até a Glória, onde pegaríamos um táxi para voltar pra casa. Era justamente para esse "depois" que eu precisava de apoio.

A primeira parte do programa foi no Carioca da Gema, e aí não tem erro, é diversão garantida. Nem sei o que mais gosto daquela casa, talvez o fato de que uma mulher possa entrar lá desacompanhada e se sentir inteiramente à vontade. E essa é uma sensação de independência de valor inestimável. Eu sempre defendi a tese de que o movimento feminista levou as mulheres da cozinha para a sala de visitas, mas não promoveu uma emancipação tal que lhes permitisse o livre acesso à rua. Ou melhor, à noite, que é quase a mesma coisa no imaginário popular. E até o advento da Lapa contemporânea não havia casa noturna no Rio de Janeiro (imagine o resto do país) onde uma mulher pudesse chegar sozinha, tomar seu drinque, se divertir e ir embora sozinha sem se sentir constrangida, ou mesmo estigmatizada.

Na Lapa, há vários lugares com esse perfil libertário. Não que não haja assédio. Há sim, graças a deus, que ninguém quer patrulha contra a azaração. Quer é poder sair apenas a fim de se divertir, sem preconceito. E se aparecer alguém que lhe interesse, tudo bem. Se não, você mesma vai ao bar ou pede ao garçom sua bebida, não precisa mesa para ser bem servida, pode entrar sozinha, assistir ao show sozinha e dançar sozinha que naõ vai se sentir excluida e sim parte de uma multidão de gente diferente entre si que canta a mesma música, dança o mesmo ritmo e, provavelmente, está num nível etílico igual ao seu. Por que isso não acontece em boates da Zona Sul e da Barra da Tijuca, eu não sei. Eu não sei muitas coisas e com essa última visita à Lapa, acrescentei outro mistério ao meu cabedal de curiosidades.

Foi durante o passeio, anteriormente combinado, que incluiria rua principal, transversais e paralelas. Ainda na Mem de Sá, quase na esquina do Asa Branca (onde há seguidos inferninhos), vi o menino, de seus 12 anos, mulambento, descalço, perambulando em ziguezague no meio das pessoas que lotavam a calçada. Ele parecia bastante alterado, soltava uns grunhidos lamentosos, se esfregava pelas paredes, espiava pelas frestas das portas de vidro quase babando, e trazia com sigo uma garrafinha de refrigerante vazia, que vez por outra levava à boca para aspirar. A cena indicava um pivete cheirando cola no meio dos transeuntes que seguiam indiferentes àquele drama pessoal e social. Como tudo se parecia bastante com uma seqüência que eu havia escrito no argumento do filme (já apresentado e devidamente registrado na BN), segui-o de perto _ a despeito dos protestos das amigas que se mantiveram afastadas _ puxando conversa com ele até a esquina da Sala Cecília Meireles. E não é que o garoto não estava drogado. Ao contrário, conversou comigo numa voz limpa, respondendo com evasivas como qualquer um que fale com estranhos, mas com certa lógica. Seus olhos não estavam injetados e ele andava com passo firme. Além disso, não me pediu um tostão e, decidido a não responder mais ao meu inquérito, deu meia volta e se dirigiu calmamente ao palco central da Lapa enquanto reconstruia o personagem de pivete cheirando cola na rua.

Intrigadíssima, tive que seguir agora o plano traçado com minhas acompanhantes. Fomos a pé pela Joaquim Silva até a rua da Glória, onde descobri o Motel Ouro Preto, que só existe durante a noite, e cobra 30 reais a diária com café da manhã. Conversei ainda informalmente com um dos travestis que faziam ponto por ali. Ela foi muito simpática e me ajudou a checar horários e informações sobre o ritmo do movimento durante toda a noite. Confirmei ainda hábitos e costumes com um motorista de táxi parado mais adiante, fiz anotações, tirei fotografias e viemos embora.

É claro que vou ter que voltar lá – algumas vezes, espero – para continuar a pesquisa. Além disso, surgiu esta nova questão, com uma série de perguntas que preciso responder. Por que raios um pivete fica tirando onda de pivete drogado. Será que faz parte de algum golpe. E quem estaria por trás da trama e por quê. Ou será que se trata apenas de um artista de talento inato, índole autônoma e espírito independente, que vê a noite no bairro boêmio como a montagem de um grande espetáculo do qual quer ser um dos personagens principais, num esforço de imaginação para sentir-se de alguma forma incluído nesse teatro do absurdo que é a nossa cidade. Cidade esta que gasta muitos milhões num Pan pra favorecer a muito poucos, que guarda muito dinheiro em caixa, mas não tem hospitais nem postos de saúde suficientes para atender a população, e que, entre outras mazelas, já matou este ano mais de 50 pessoas de dengue, a maioria criaças. Pra mim, a segunda suposição faz um bocado de sentido.


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Um comentário:

Maria disse...

Me chama que vou com você.
beijos
Ah, pra vc não confundir, sou a Socorro da Darcy...é que às vezes sou Maria, aliás, nas melhores horas...rss
beijo