Terno Novo

Foi só ouvir o nome dela para o coração bater descompassado. Não era um nome comum. Ninguém a chamava assim. Para todos era Clozinha a boneca de pernas roliças e axilas despudoradamente côncavas por onde enfiava a cabeça, primeiro o cocuruto, depois a testa e ia virando as narinas bem abertas até intoxicar a alma com o cheiro misto de suor e alfazema. E chegava em casa sempre antes do banho dela, antes que fossem pelo ralo, diluídos na água do chuveiro, indícios de traição, fragmentos de desvios lúbricos, rastros inconfundíveis de luxúria, provas do adultério adivinhado a cada dia de trabalho.

Maldito trabalho. Rival covarde e inimigo traiçoeiro que se esgueira pelas vias da virtude e vai, enfatiotado de dignidade, levar para os braços de alguém a mulher do próximo. Perverso trabalho, a infringir-lhe todos os dias o flagelo da desconfiança. “Quantas visitas foram hoje?, com quantos homens subiu e desceu elevadores?, em quantas salas se sentou, a valise das amostras sobre o colo, sobre a fronteira vertiginosa entre a saia miseravelmente curta e o início das cochas rosadas?” Era quase física a dor de imaginar Clozinha metida em consultórios “com algum médico tarado a deitar-lhe olhos fúlgidos de fera enjaulada, sequiosos de carne farta e fresca.”

E o tormento começava logo cedo. À mesa do café, esperava Clozinha sair do quarto vestida para o trabalho. “Teria esquecido a calcinha?” Apertava os lábios temendo, num rompante, revelar os legítimos cuidados. Esperava silencioso o fim da refeição para passar-lhe a mão na bunda na hora da despedida. Seguro da compostura íntima, deixava-a sair e se embrenhar pelas ruas da cidade. Logo inventava itinerários escabrosos, imaginando-a em visitas suspeitas por edifícios mal-afamados. Salteava saídas de incêndio, galgava escadas propícias a práticas escandalosas. Penetrava labirintos de corredores insidiosos, com portas vazando nas frestas o fedor das sevícias consentidas.

Um lampejo de lucidez mostrou-lhe a loucura à espreita. Era pegar no batente ou botar fora o próprio negócio. Chegou tarde ao escritório. Mergulhou na contabilidade e embaralhou aos números a idéia de por fim à vida dela. Ter Clozinha só para si era o céu. Se não podia atingir as alturas, condenava os dois ao inferno. Certeza de ser traído não tinha, tampouco estava certo do contrário. Argumentos de valor absoluto nas contas de um facínora imaginário. O diabo era ter que pagar pelo crime, ou dar fim à própria vida. Sofria ao admitir-se covarde. Arrancou-o do martírio o alvoroço do contínuo dando conta do sinistro num motel da redondeza.

Na sala ao lado, o rádio berrava as últimas notícias: “...vazamento de gás matou o casal que se hospedara pela hora do almoço. Fulano de Tal, comerciário, branco, casado, tinha trinta e oito anos. A mulher era Clotilde...” E mais não pode ouvir, ensurdecido que ficou com as batidas do coração que vinham desabaladas, subindo por dentro do peito. Pegou o paletó e foi pra rua. Misturou-se aos transeuntes com desenvoltura. Ligeiro atravessou a avenida, cruzou duas travessas, cortou em diagonal a praça e foi tomar um chope no balcão apinhado de gente. Bebeu tudo de uma só vez, as duas mãos apertando a caneca.

No segundo chope, lembrou-se que não bebia na hora do expediente. No terceiro, sentiu o mundo afrouxar. A voz do garçom chegou amiga oferecendo mais um, veio o burburinho do fundo do bar, o barulho do trânsito, o apito do guarda, as sirenes, os sinos da Ave Maria... Era corno, sim. Sempre soubera. Vingado pela justiça divina, estava livre de sentir-se covarde e ainda redimido de qualquer intenção dolosa. Sem cometer desgraça maior, chegara ao desfecho triunfal. E no enterro da infame, haveria mais que fingidos pesares. Receberia dos amigos contidos cumprimentos de louvor. Da família, o abraço em regozijo pelo ente vingado. Foi comprar um terno novo.

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Um comentário:

Carlos Neves disse...

Leila,

A vida tem caminhos estranhos, não? Nunca havia entrado no teu Blog e somente o fiz após um artigo teu a respeito do Fausto Wolff no JB.
O teu artigo aguçou a minha curiosidade sobre o que andava fazendo aquela mulher que, para mim, sempre foi apenas um belo rosto nas telinhas da TV.
E eis que me deparo com tuas linhas tão gostosas de se ler.
Esse teu `Terno Novo` é uma narrativa tão simples que toca a beleza que somente reside na simplicidade.
Por mais que a gente tente sofisticar os nossos processos mentais, você coloca claramente como são simples e claros os nossos sentimentos.
Muitas vezes, no redemoinho que faz com que pensemos ser mais do que realmente somos, os pensamentos do teu personagem passam por nossa cabeça sem nos darmos conta disso.

Simples e bonito, Leila.

Carlos Alberto Neves
carlnevesrj@hotmail.com