Sapatilha nova nos pés

O tio piscou pra mim, depois veio ao meu encontro, pegou a minha mão e, juntos, atravessamos o salão até a porta do apartamento, deixando para trás a família reunida. Os adultos, entretidos em conversas animadas por fartas dozes de uísque com gelo ou guaraná, discutiam, exaltados, um mundo de soluções para tirar o país da crise. Os meninos se esgueiravam por entre os mais velhos para alcançar nas mesinhas, repletas de copos suados e cinzeiros entulhados, as tigelinhas de amendoim, munição por excelência para os ataques, primeiro entre eles e em seguida contra as meninas. Elas disputavam com certo recato o melhore lugar na janela que dava para a praia de Copacabana. Do décimo segundo andar, viam lá embaixo a Praça do Lido coalhada de gente. Todos pareciam esperar um grande acontecimento.
E a nossa escapulida ninguém nunca percebeu. De mãos dadas, cruzamos o hall do elevador na direção da escada. Subimos lado a lado, minha cabeça na altura da perna do tio. Presa ao cinto, a bolsinha de couro marrom que ele abriu num clique, tirou dali os óculos escuros e colocou-os no rosto sem largar a minha mão. Coisa estranha, pensei.
No fim da escada, o céu. A luz sobressalente inundou meus olhos. Aos poucos me dei conta do espaço ao meu redor. Antenas de televisão por toda a parte, as máquina dos elevadores, o pára-raios e muitos, muitos pombos no chão, nos telhadinhos, na fiação, nas menores reentrâncias do terraço do edifício. De tudo eu queria saber, e a tudo o tio respondia com paciência de tio. Os pombos eu já conhecia, só quis saber por que tantos e nunca mais quis saber de pombos. O tio levantou a voz e, parecendo zangado, disse que eram bichos imundos, verdadeiros ratos voadores que, infestados de piolhos, levavam doença para onde quer que fossem. “Uma praga”, repetia brandindo uma das mãos, com a outra me puxou pra mais perto dele.
De mãos dadas cruzamos o terraço em direção ao grupo de pessoas que observava preparativos de evidente importância. De novo, um brilho intenso ofuscou minha visão. Apertei os olhos para ver melhor a enorme motocicleta refletindo na superfície cromada as múltiplas cores do dia. Entendi que um grande espetáculo iria mesmo acontecer, mas tudo me parecia meio fora do lugar. O tio percebendo meu embaraço de pronto me levou ao colo e, do parapeito, apontou para o cabo de aço esticado dali até o terraço de outro edifício, do outro lado da praça. Vi, então, o enorme vão entre os dois prédios, riscado no ar, o caminho da morte. Abracei forte o pescoço do tio. No chão, ele pegou a minha mão e não largou mais. Todos falavam muito, falavam alto e ao mesmo tempo quando chegou o moço de botas de couro e calça justa. Vestia camisa branca de mangas largas bufantes. Era magro e menor que o tio. Na testa, o topete lustroso.
Atrás dele veio a moça de maiô vermelho brilhante, sapatilha nova nos pés. O cabelo negro puxado para o alto era preso num rabo de cavalo que descia desenhando-lhe nas costas brancas um longo ponto de interrogação. Na mão direita, a sombrinha. No rosto, estampado o pavor. Parecia muito frágil, com um tremor percorrendo todo o seu corpo, como se vibrasse apenas com a brisa vinda do mar. Os dois falavam baixinho, como marido e mulher. Calaram. E tudo se calou. Da praça, o alto-falante anunciava o espetáculo. Ele montou primeiro e fez roncar o motor. Ela, em pé na garupa, levou entre as pestanas grossas uma lágrima equilibrista. Minha garganta doeu. Quis saber tantas coisas, mas não soube perguntar. Apertei a mão do tio.

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