Extrema delicadeza

Foi bonita a pré-estréia de Atabaque Nzinga, ontem, no território livre da Lapa, para uma platéia que em sua maioria mostrava na cor da pele a ancestralidade africana, despertada também no espírito da minoria branca na medida em que teve os sentidos seqüestrados pelo ritmo, pela música e a dança que ambientam a narrativa. Digo ambientam porque, apesar de Octávio Bezerra ter filmado em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro (além das imagens de arquivo da África), a ação se passa nesse espaço mítico, onde estão cravadas as raízes da cultura negra no Brasil, o verdadeiro umwelt do filme.
E quem nos guia nessa aventura sensorial é a batuta do mestre Naná Vasconcelos, um gênio da percussão e diretor musical da produção na qual se apresentam ainda o talento de Paulo Moura, Carmem Costa, Nelson Sargento, Lia de Itamaracá, Noca da Portela, Carlinhos 7 Cordas, e as performances contagiantes do Afoxé Ilê Aiê, Maracatu Estrela Brilhante, Balé da Cultura Negra do Recife, Neguinho do Côco e Jongo da Serrinha entre muitos outros nomes não menos importantes. São eles que tecem a trama por onde se embrenha a protagonista Ana (Tais Araújo). Com a bênção da Rainha Nzinga, que reinou na Angola do século XVI, a jovem, recolhida ainda menina num centro de Candomblé, empreende uma viagem em busca da sua identidade. Tal qual a Dorothy na ventura pelo mundo de Oz, acompanhamos Ana através do imaginário afro-brasileiro, compartilhando suas dúvidas, sonhos e desejos com os sete buracos da nossa cabeça. E com ela chegamos ao clímax de extrema delicadeza da história que começa em Angola e tem seu desfecho no Rio de Janeiro.
Ao final da projeção, num telão em baixo dos Arcos, havia menos gente do que no início da festa, quando o grupo de dança afro “Corpo e Ritmo” se apresentou, e agradou em cheio a audiência, levando as crianças a dançar no centro da praça, até altas horas, imitando os passos e a ginga dos bailarinos. Mas agora era possível sentir ainda melhor o quanto espetáculos de afirmação da cultura brasileira são bem-vindos para o verdadeiro grande público, ali presente em amostragem social. Além dos muitos meninos de rua que assistiram atentos todo o tempo do espetáculo – com um comportamento exemplar, diga-se de passagem –, havia os jovens boêmios freqüentadores da Lapa, os casais de mais idade vindos dos bairros adjacentes, os muitos casais com filhos pequenos, e até os mendigos fizeram a sua torcida organizada.
Para mim, o evento de ontem foi um bom exemplo de que, ao contrário do que pensa a grande mídia, a maioria do público brasileiro quer assistir aquilo que lhe diz respeito, de forma afirmativa e original. E foi justamente isso que Atabaque Nzinga mostrou com um filme que não apenas fala a nossa língua, mas, sobretudo, pesa na nossa língua, o português do Brasil.

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