Anacoluto

Há males que vêm pra bem é um ditado popular no qual eu sempre levei fé. Outro dia mesmo eu pude confirmar o quanto há de verdade nessa proverbial contradição ao cruzar, no saguão do cine Odeon, com uma moça que não via há alguns meses. Nosso último encontro fora numa ilha de edição para finalizar um curta-metragem do qual nós duas participávamos. Estávamos ali agora para assistir a um ciclo de debates sobre filosofia e cinema que abriria com a exibição do filme “Di-Glauber", do cineasta baiano. Minha surpresa foi enorme ao revê-la transmudada, assim, em tão pouco tempo. Pra começar, a moça estava mais magra uns quinze quilos. Não fosse o tom alegre da voz e o largo sorriso com que me saudou, teria pensado o pior.

Pior só doença, em sua própria opinião, que ainda me corrigiu garantindo ter perdido, mais precisamente, doze quilos. Quis saber o que acontecera. Sem hesitar por um segundo, num desabafo relâmpago, ela declarou protagonizar um caso de separação muito pouco amigável. Fiquei consternada, pois ela e o marido formavam um casal aparentemente adorável e separação, convenhamos, é quase sempre má notícia. Para mim que sou romântica, que acredito no casamento como a melhor maneira de viver uma relação de amor, botar aliança no dedo é sinônimo de final feliz.

Como o evento demorava a começar, e percebendo que a moça precisava com urgência falar mais sobre as agruras do rompimento amoroso, convidei-a para um café. Nesta altura do atraso, mais gente teve a mesma idéia e acabamos por dividir a mesa do bar contíguo ao cinema com dois renomados cineastas. A conversa girou em torno do filme no qual Glauber Rocha registra o funeral de Di Cavalcanti - que foi ganhador do Prêmio Especial do Júri em Cannes, em 1977, apesar de ter a exibição no Brasil proibida por muitos anos a pedido da família do pintor. No meio do papo, entre um palpite e outro, vi que a minha amiga, antes uma pessoa tímida, evoluía suas opiniões com desenvoltura. Era visivelmente movida por um impulso de se “colocar”, que de forma alguma me pareceu inconveniente.

Pelo contrário. Na verdade ela adquirira um charme antes insuspeitado. E parecia mais leve de corpo e alma, ainda que radicalizando na transformação. Pra começar, tirou a jaqueta e apresentou uma deslumbrante tatuagem de flores que lhe cobria o ombro esquerdo. “Novíssima”, contou-me, afirmativa, sem buscar aprovação. Os óculos também novos, ou melhor, velhos porque comprados em brechó, eram do tipo gatinho, com estampa de onça pintada pra ficar mais descolado. E o assessório redundante ia muitíssimo bem com o seu rosto mais afilado. A lente, transparente, mostrava as olheiras colhidas, como diria o poeta, num jardim de sofrimentos recentes; e até a voz, talvez pelo uso excessivo, soava com requintada rouquidão.

Mas que mudança! Pensei. Ou seria uma questão de reconstrução de auto-estima? Pois sendo o marido professor universitário e ainda por cima um gato, é provável que ela tenha se espremido para caber-lhe na sombra, e acabou por transbordar em peso o que teve de conter na afirmação da sua personalidade. Estava, assim, com os meus botões, quando ouvimos o vozerio comentando que a sessão iria enfim começar. Fomos, então, todos alegres e contentes para a sala de projeção assistir a cenas de velório e sepultamento.

Uma contradição que se explica pela oportunidade de ver a homenagem de adeus a um dos maiores artistas plásticos do modernismo na lente de um cineasta genial.

Já no caso da minha amiga, os fatos confirmam o anacoluto lá em cima, pela desconcertante constatação de que, em determinadas circunstâncias, até que um desgosto cai bem.

****************************

Nenhum comentário: