Um homem superlativo

Conheci Fausto Wolff em Búzios, num verão do final dos anos 70. Estávamos hospedados na casa de um amigo em comum, na Praia do Canto; ele sozinho, eu com marido e dois filhos pequenos. A primeira impressão que tive de Wolff foi de um homem muito grande, com um rosto muito bonito, e a voz muito rouca. Um homem superlativo, como eu iria constatar depois. Era também o mais velho da turma. De resto, bem parecido com os outros amigos do dono da casa, todos muito falantes, cada qual querendo saber mais do que o outro.

Pela manhã, todos dormiam até tarde, menos eu e as crianças, que cedo queriam tomar banho de mar. Um dia, eu as vigiava enquanto tentava ler um livro, debaixo de um flamboaiã, bem junto à areia da praia. Fausto Wolff veio sentar-se ao meu lado e me perguntou o que eu estava lendo. Mostrei-lhe o livro “Pensamentos”, de Sully Prudhomme, que pegara ao acaso na biblioteca da casa, e que me interessou principalmente por trazer na contracapa a informação de que o autor fora o primeiro laureado com um Prêmio Nobel de literatura.

“Ah... Prudhomme. Um intelectual de direita!”, foi o que ele disse. Confesso que fiquei bastante intimidada com aquela afirmação categórica, pois se tratava de um assunto que eu não dominava e, por temperamento, não gosto de falar sobre o que não sei. Com sensibilidade bastante para perceber um misto de desconforto e curiosidade na jovem que largara os estudos muito cedo para casar e ter filhos, Fausto Wolff passou a vir ao meu encontro, pelas manhãs, durante toda a temporada, para conversar sobre literatura e política. Conversar, não, na verdade ele falava e eu era toda ouvidos, interessadíssima no breve curso de verão.

Nunca mencionamos nossos encontros matutinos para os outros hóspedes. Não que fosse segredo. Era apenas alguma coisa singela demais para ser comentada entre gente tão esperta, sabichona, e com fôlego (e sede) bastante para discutir qualquer assunto até altas horas da madrugada. Seguiram-se, assim, tranqüilamente, várias manhãs de prosa literária até que a temporada teve fim, votamos todos ao Rio de Janeiro, e eu nunca mais encontrei Fausto Wolff. Mas com certeza sob sua influência decidi ser jornalista, pouco tempo depois fiz vestibular e entrei para a Escola de Comunicação da UFRJ, onde me formei.

Essa história estava guardada naquele cantinho escondido que tem dentro de cada pessoa, como diz a música de Marisa Monte. Veio à tona em fevereiro deste ano, quando li o texto “Meus super-heróis”, na coluna de Fausto Wolff, no JORNAL DO BRASIL. É que em tempos frívolos como o nosso – em que até participante de BBB vira herói, e editoria de cultura dá agenda de modelo –, ser apresentada a um questionário sobre personalidades da cultura universal é alentador.

Pois naquele dia, Wolff propunha ao leitor que tentasse acertar qual figura ilustre das letras ou artes plásticas viveu os momentos de privação e infelicidade descritos por ele no texto. Com a intenção clara de lembrar-nos que nem sempre os mais brilhantes tiveram seu valor reconhecido a tempo de desfrutar as benesses do sucesso. Desta forma, contou breves histórias das desventuras de Edgard Allan Poe, Vincent Van Gogh, Lima Barreto e Auguste Rodin. Ora, estava ali uma lição com a impressão digital do meu fortuito professor.

Não fui ao velório de Fausto Wolff, nunca mandei uma carta para o jornal elogiando sua coluna, nem mesmo lhe enviei um simples e-mail de congratulações. E só conto essa história agora movida pela emoção de quem chegou tarde demais para o reencontro, tentando imaginar uma situação mais ideal do que aquela, à sombra de um flamboaiã.


Artigo publicado na Gazeta Mercantil e no Jornal do Brasil em 26/27/10/2008

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Um comentário:

Alice Monteiro disse...

Emocionante seu relato.Você retribuiu ao Fausto Wolff sua generosidade, deixando o registro de um sentimento guardado. Bjs, Alice Monteiro