Mar Morto

O Mar Morto povoou meu imaginário de criança desde os filmes bíblicos que via na televisão, nas tardes mornas de Semana Santa. Eram histórias impressionantes, cheias de malícia – talvez até impróprias para menores, se inseridas em contexto mais mundano – como as de Sodoma e Gomorra, cidades que teriam existido naquela região e desapareceram, punidas com a ira divina pela corrupção moral e perversão sexual de seus habitantes.

Assim, quando me convidaram para o Festival de Cinema Brasileiro em Israel, vibrei, acima de tudo, com a possibilidade de conhecer o mar da antiga Galiléia. Depois, fui correndo acessar o Google Earth para ver a exata localização do acidente geográfico na crosta do globo terrestre. E lá estava ele, um grande e misterioso retângulo negro encravado na divisa entre Israel e Jordânia. Cliquei na descrição técnica e li que o Mar Morto é na verdade um lago de 80 quilômetros de comprimento por 18 de largura, e fica a 280 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. É extremamente salgado ao ponto de matar instantaneamente peixes e outras formas de vida que chegam a ele pelo rio Jordão; daí o nome sinistro e o motivo de ninguém afundar nas águas que cobrem o ponto mais baixo do planeta Terra.

Mas, ao contrário do que possa parecer, a crueza das informações prévias não diminuiu o impacto de estar lá, em carne e osso, alguns dias depois. Ao vivo, a visão do Mar Morto correspondeu inteiramente às minhas expectativas infantis, ao revelar-se uma das paisagens mais bonitas que já vi; cercada de penhascos escarpados, mesclados em tons derivados do branquíssimo calcário ao vermelho do arenito, surge a imensa superfície lisa, rivalizando em azul com um céu pleno de luz e vazio de nuvens.

E para melhorar o que já estava bom, ali perto fica o Parque Nacional Qumran, uma antiga colônia essênia, onde foram encontrados, entre 1947 e 1956, os manuscritos do Mar Morto. Passeando pelas escavações arqueológicas, penetrando grutas e cavernas, onde pastores beduínos acharam os primeiros pergaminhos escondidos em jarras de barro por quase dois mil anos, minha fantasia de criança foi superada e, como não há interferência de civilização ao redor das escavações, acabei por fazer, em pleno deserto da Judéia, uma fantástica viagem no tempo, imaginando no cenário épico ações em Cinemascope.

Delírios turísticos à parte, o passeio acabou por despertar minha curiosidade sobre a descoberta fantástica, no Mar Morto, de cerca de 850 documentos, inclusive textos do Antigo Testamento. Pesquisando, aprendi que eles têm valor inestimável para os israelenses. Escritos em hebraico, entre o século II a.C. e o primeiro século da era cristã, os pergaminhos são praticamente os únicos documentos bíblicos judaicos existentes daquela época. E, além de explicar o contexto político e religioso do início do cristianismo, revelam a validade do esforço de um grupo de judeus para resgatar a língua de seus antepassados.

O “Great Isaiah Scroll”, o mais bem preservado e completo manuscrito bíblico do Mar Morto, está em exibição especial, neste verão, no Museu de Israel, pela primeira vez em 40 anos. “Nação não deve levantar a espada contra nação, e ninguém mais deve aprender a guerrear”, diz uma passagem do texto de 2.100 anos, que pode ser lido por gente comum que visita o “Santuário do Livro”, salão do museu onde os documentos estão expostos.

Dois séculos depois dessa mensagem de paz ser escrita, a história judaica se dispersou, os judeus foram para o exílio, e o hebraico deixou de ser falado nos mil e setecentos anos seguintes. Seu renascimento representa um dos maiores feitos do sionismo e foi capitaneado por Eliezer Bem-Yehuda, um lituano que emigrou para a Palestina em 1881. As escrituras clássicas continham palavras para conceitos como justiça, perdão, amor e ódio, mas foi Bem-Yehuda que começou a atualizar o hebraico, inventando palavras novas - como meias e escritório, por exemplo – colhidas de raízes bíblicas e padrão arcaico.

O projeto de reviver a língua da Torah despontou, então, rapidamente na Palestina e, em 1914, pioneiros sionistas tomaram a decisão de adotar somente o hebraico nas escolas judaicas. Quando o estado de Israel foi fundado, em 1948, uma geração inteira de israelenses já falava o hebraico como língua nativa.

Hoje, o moderno hebraico é a primeira língua de milhões de israelenses que entendem o valor inestimável da conexão lingüística com o passado para o sentimento de identidade nacional. Não é pouco, num país que vive em estado constante de insegurança quanto a sua sobrevivência.


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