Bukowiski em cena

Pão com Mortadela, a adaptação para o teatro do romance Misto Quente de Charles Bukowski, entra hoje nas duas últimas semanas em cartaz, no Rio de Janeiro. Confesso que passei a temporada toda deles no Espaço Sesc, um teatro que gosto e costumo freqüentar, desdenhando a montagem do diretor João Fonseca. Tinha cá com meus botões que uma companhia com atores em torno de vinte anos de idade não poderia se aventurar pelo território devasso do “mosca de bar” a ponto de poder representá-lo em cena.
Bukowiski foi um dos heróis dos anos 70 e 80, com suas histórias autobiográficas de bebedeiras, trepadas, brigas e vadiagem. Conseguiu transformar em literatura os fatos mais corriqueiros da sua vida. Fez da adversidade o leitmotiv de sua poesia. Tratou angustias e dramas pessoais com tal crueza de imagens que logrou converter desventuras em aventuras muito engraçadas, cheias de bobagens geniais.
Como essa garotada de hoje – do mundo pós-aids, submetido à ditadura do politicamente correto – poderia entender o universo depravado e desbocado do “velho safado”, era a pergunta subjacente ao pouco crédito que eu dava ao espetáculo.
Na verdade, só aceitei o convite para ir à Casa da Gávea, às oito da noite do domingo passado, debaixo de chuva forte, porque a proposta era, depois da peça, dividir uma picanha no Hipódromo que fica em baixo do teatro e é para mim um dos melhores bares/restaurantes da cidade. Pra resumir a estória, fui ao teatro com o estômago e saí da peça de cabeça feita.
O elenco dá conta do recado; transita pelo universo do autor com desenvoltura e acerta quando opta por uma interpretação histriônica em algumas passagens, que levam a platéia a boas gargalhadas. O cenário é funcional e elegante. O figurino é agradável e eficiente, na medida em que dá suporte discreto a interpretação sucessiva de muitos personagens.
A dramaturgia de João Fonseca é feliz ao transpor para o palco as agruras da infância e adolescência de Henry Chinaski (alter ego de Bukowski, presente em quase toda a sua obra) em esquetes bem construídos, com equivalência cênica, respeitando a ordem cronológica da narrativa e dando o destaque devido a cada personagem na construção da história. Com isso e com o bom desempenho das interpretações em conjunto, a montagem de Pão com Mortadela garante a unidade do espetáculo e o prazer do espectador, do início ao fim.

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