Para não virar a página

Está em circuito comercial no Rio e em São Paulo o filme Condor. Aproveito a ocasião para reproduzir aqui a análise crítica que fiz do documentário de Roberto Mader, publicada no livro O que o cinema vê, o que vemos no cinema; uma coletânea de depoimentos de diretores e análises críticas para estimular o debade dos filmes do
35º Festival de Cinema de Gramado.

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As ditaduras militares marcaram a ferro a história da América Latina na última metade do século passado. Sustentadas pelo interesse dos Estados Unidos em manter a hegemonia política e econômica na região, em plena guerra fria, constituíram regimes de exceção, amordaçando a imprensa, imobilizando parlamentos, rasgando constituições e cooptando a justiça e parte da igreja.

Foi um período marcado pela violência contra vozes dissonantes; pessoas eram presas, torturadas e mortas. No campo das idéias, a regra era manter o controle sobre o imaginário popular com hinos e slogans de cunho fascista. Até mesmo a semântica foi violentada no Brasil para chamar de revolução o golpe militar de 64. Ora, em uma sociedade submetida à força da repressão, só o reconhecimento da história oral possibilitaria a investigação legítima sobre o tema, suplantando o obscurantismo desejado pelas forças reacionárias.

Recuperar o passado sombrio e construir a memória dos anos de chumbo para as gerações que não tiveram relação direta com a dolorosa experiência das ditaduras militares foi a tarefa seguinte. A ela se entregaram intelectuais, escritores, jornalistas e cineastas. Nesse contexto, surgem filmes antológicos como A História Oficial, de Luiz Puenzo, e Batalha do Chile, de Patrício Guzmán, entre outros não menos importantes.

O documentário de Roberto Mader, Condor, é mais uma obra determinada a cumprir essa missão. Por muitos anos contestada pelas forças da direita, a parceria sinistra firmada entre os governos de exceção da Argentina, Uruguai, Chile e Brasil para esmagar a mais tênue articulação de esquerda no Cone Sul – sob os auspícios dos Estados Unidos, sabe-se hoje – foi confirmada quando parte da documentação da CIA sobre o assunto tornou-se pública. Com esse material e um cuidadoso trabalho de pesquisa, o escritor norte-americano John Dinges escreveu o livro The Condor Years.

O escritor é um dos depoentes do documentário, assim como políticos, militares e ex-militantes dos dois lados, garantindo o mínimo de isenção a que se pode chegar numa questão política. Isso é bom. Pode-se conferir, por exemplo, o cacoete de apropriação indébita nas hostes direitistas em uma fala de Jarbas Passarinho. A certa altura de seu depoimento, o ex-senador fala de “nossos mortos” referindo-se às vítimas da Operação. Nossos de quem? Podemos perguntar ao lado da avó de duas crianças contrabandeadas e dadas para adoção no Chile, depois de verem seus pais serem assassinados no apartamento onde moravam na Argentina.

Esse e outros episódios trágicos relacionados à Operação Condor são contados no documentário pelas próprias vítimas, em depoimentos contundentes e cheios de humanidade. Mader junta ainda provas e documentos para montar um painel do que foi aquele teatro do absurdo, onde as evidências eram desqualificadas e somente a persistência das famílias atingidas e a diligência dos comprometidos com a verdade permitiu trazer à luz fatos por tanto tempo recalcados, contribuindo grandemente para a reconstrução da memória dos países envolvidos.

Essa é uma página da história mundial, como tantas outras, de crimes contra a humanidade, que não se deve virar: ao contrário, são episódios que devemos pesquisar, que devemos perscrutar até onde preciso para por fim às dúvidas sobre fatos e responsabilidades. E depois lembrar o que não deve ser esquecido para que não se repitam os mesmos erros. Essa função cabe cada vez mais ao cinema com a capacidade que tem de envolver corações e mentes. E, sejamos justos, neste sentido, a chamada sétima arte tem dado uma contribuição de valor inestimável também para a história da humanidade.

Leila Richers

Um comentário:

gustavocarmo disse...

Olá, gostei do seu blog. Voltarei aqui outras vezes.

Quero divulgar o meu blog Tudo Cultural - www.tudocultural.blog-se.com.br

Tem contos, crônicas e resenhas. em fevereiro ele volta a ser atualizado. Por enquanto, vc pode curtir os textos antigos.

Atenciosamente
Gustavo do Carmo